Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

4/17/2021

Legitimidade passiva na impugnação de deliberações I

Enquadramento jurídico da legitimidade passiva
na impugnação de deliberações da assembleia de condóminos

1ª parte

Há quem sustente que a legitimidade passiva na acção de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos compete apenas aos condóminos que votaram favoravelmente as deliberações (cfr. art. 1433º, nº 1, do CC). Por outro lado, há quem sustente a tese de que a acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos deve ser intentada contra todos os condóminos.

A problemática da legitimidade passiva na acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos tem dividido a jurisprudência dos tribunais superiores (aqui com correntes mais díspares), bem como a doutrina.

Deve ser intentada contra os condóminos que votaram a favor da deliberação, como defendem uns? Ou contra todos os condóminos, na tese plasmada por outros? Ou ainda segundo outras duas teses plausíveis: contra o condomínio ou contra o administrador do condomínio?

No sentido de que têm legitimidade passiva os condóminos (sem especificação de quais), alinham-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 26.3.1998,  de 16.6.2005,  de 24.6.2008 com um voto de vencido, e de 29.11.2006. Perfilham o entendimento de que a legitimidade passiva radica nos condóminos que votaram favoravelmente à deliberação impugnada, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 20.9.2007 com dois votos de vencido, e de 6.11.2008, do TRL de 12.2.2009, de 13.7.2010 e de 31.3.2011.

No sentido de que a ação de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos deve ser intentada contra o condomínio, representado pelo administrador, destacam-se os acórdãos do STJ de 14.2.1991, do TRL de 14.5.1998, de 28.3.2006 e de 14.12.2006, do STJ de 29.5.2007, do TRE de 18.9.2008, do TRL de 25.6.2009, do TRG de 3.4.2014, do TRP de 11.5.2015 e de 13.2.2017. Registe-se ainda neste sentido o acórdão mais recente do TRL de 7.3.2019, em que é 2.ª adjunta a ora relatora (com um voto de vencido da 1.ª adjunta).

Na doutrina, no sentido da tese da legitimidade passiva na acção de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos compete apenas aos condóminos, pronunciou-se Abílio Neto, referindo que «Como demandados devem figurar nominativamente todos os condóminos que aprovaram a deliberação ou deliberações impugnadas, por serem estes que têm interesse em contradizer, embora representados seja pelo administrador, seja pela pessoa que a assembleia tiver designado para esse efeito (cfr. art. 1433º, nº 6 do CC).

Assim, tal acção não deve ser intentada contra os condóminos a título singular, nem apenas contra o condomínio, nem contra o administrador, uma vez que este apenas intervém como representante judiciário dos condóminos que, através da sua vontade individual, contribuíram para a formação da vontade colectiva» (in Manual da Propriedade Horizontal, Ediforum, 3.ª edição – Outubro 2006, pp. 348 e 349).

Ainda seguido o mesmo diapasão, Abrantes Geraldes escreveu o seguinte: «Já quanto à legitimidade passiva, diversamente do que ocorre com as sociedades, não pertence à entidade a quem a lei reconhece personalidade judiciária (condomínio urbano, nos termos do art. 6º al. e), do CPC), mas aos condóminos que tenham aprovado a deliberação, conforme resulta do art. 1433º, n.º 6, do CC» (in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra: Almedina, 2010, p. 109).

No sentido de o condomínio ter personalidade judiciária nestes casos, ainda que com matizes diversas, destacam-se os seguintes autores:

- Aragão Seia, que diz, a propósito, que «Face à actual redacção da al. e) do artigo 6º do CPC, em consonância com o nº 6 citado, diversamente do que acontecia antes da Reforma de 1995, o condomínio, ou seja, o conjunto dos condóminos, pode ser directamente demandado quando, designadamente, estejam em causa deliberações da assembleia, devendo o administrador ser citado como representante legal do condomínio – nº 1, do artigo 231º, do CPC –, embora a assembleia possa designar outra pessoa para prosseguir a acção» - Propriedade Horizontal in Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios –, 2.ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 216 e 217;

- Sandra Passinhas, ainda que referindo que a legitimidade passiva cabe ao administrador, entidade que, como é sabido, representa o condomínio, in A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina 2000, pp. 336 a 338,;

- Miguel Mesquita, in Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Setembro 2011, em artigo intitulado A Personalidade Judiciária do Condomínio nas Acções de Impugnação de Deliberações da Assembleia de Condóminos - anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de junho de 2009, pp. 41 a 56;

- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora 2014, p. 41, anotação 5.

Destas sortes, cumpre encontrar a rota mais apurada por entre vasta panóplia de razões, porquanto, não obstante as conhecidas divergências jurisprudenciais acerca da legitimidade passiva na acção de impugnação das deliberações do condomínio e da interpretação do disposto no art. 1433º, nº 1 e 6 do CC, afigura-se-nos que a única forma de garantir que a decisão do Tribunal produzirá o seu efeito útil normal é através da vinculação de todos os condóminos, que têm de ser parte na acção.

Uma vez que as deliberações são vinculativas para todos os condóminos (cfr. art. 1º, n.º 2 do DL nº 268/94 de 25/10) independentemente do seu sentido de voto, abstenção ou não comparência na assembleia, não faz sentido que uma deliberação do condomínio se mantenha válida e vinculativa para alguns - v.g. porque votaram contra e não se quiseram associar ao autor na propositura da acção, tendo-se conformado com a vigência da deliberação ou porque se abstiveram - e para os que a votaram favoravelmente esteja anulada por decisão cujo caso julgado os vincule.

Ou seja, não fazendo sentido que uma deliberação do condomínio seja simultaneamente válida e vinculativa para os condóminos que votaram contra ou se abstiveram – mas não foram autores na acção de impugnação - e não o seja para outros, que votaram favoravelmente e foram réus na acção - afigura-se que a decisão a proferir só produzirá o seu efeito útil normal se todos os condóminos forem parte na acção, tal como todos os contraentes têm de ser parte na acção em que se discuta a validade do contrato.

Assim, quem não for autor terá de ser réu.

A acção de anulação é uma ação constitutiva, operando uma mudança na ordem jurídica existente – art. 10º, nº 3, al. c) do CPC. “Se o pedido for procedente, a sentença cria novas situações jurídicas entre as partes, constituindo, impedindo, modificando ou extinguindo direitos e deveres fundados em situações jurídicas anteriores.” Uma acção de impugnação de deliberação do condomínio julgada procedente eliminará do ordenamento jurídico uma deliberação da assembleia do condomínio, a qual só deixará efetivamente de produzir os seus efeitos, na sua totalidade, se todos os destinatários dessa deliberação – todos os condóminos – estiverem abrangidos pelo caso julgado que se formará.

Face a esta necessidade de abarcar pela decisão a proferir todos os destinatários da deliberação cuja anulação se pede, conclui-se que a exigência do litisconsórcio natural se sobrepõe ao critério de legitimidade singular do interesse em contradizer, que a priori se verificará apenas naqueles que votaram favoravelmente a deliberação e por isso estarão, à partida, interessados em defender a sua manutenção.

Da letra da lei não resulta posição expressa sobre a legitimidade passiva, mas apenas quanto à legitimidade ativa, no nº 1 do art. 1433º do CC: “qualquer condómino que as não tenha aprovado”. O nº 6 refere-se-lhes apenas como “condóminos contra quem são propostas as acções”, nada referindo quanto à posição que esse condómino manifestou – ou não – quanto à deliberação posta à votação e aprovada. Pelo que, não havendo indicação da lei em contrário, tais condóminos poderão ser todos os demais.

Para reforçar o que acima se refere, note-se por exemplo a deliberação que fixa a quotização devida por cada condómino na comparticipação para os encargos e despesas comuns do prédio, e a deliberação vier a ser anulada, os condóminos que não tenham sido parte na acção continuam vinculados ao pagamento dos valores aprovados nessa deliberação, ao passo que os demais estão desvinculados. Os que foram parte na acção poderão ficar, porventura, e até à realização de nova assembleia, obrigados a pagar até então os valores que tinham sido aprovados na assembleia ordinária do ano anterior. 

Se os valores forem diferentes, existirá uma desigualdade injustificável entre os condóminos, que a imposição do litisconsórcio evitaria. Os condóminos poderão repor a igualdade da repartição dos encargos numa nova assembleia, fixando novos valores, por deliberação que não seja anulada, com efeitos retroativos, abrangendo o período temporal a que respeitava a deliberação anulada. 

O que evidencia à saciedade que a decisão de anulação da deliberação que não vincule todos os condóminos não compôs definitivamente o litígio, nem produziu o seu efeito útil normal, pois poderá ser necessário um ato extrajudicial, posterior para, v.g., repor a igualdade – embora em termos de proporcionalidade das respetivas permilagens, se não for outro o critério adotado - das contribuições entre condóminos».

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