Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.
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11 março 2025

Aquisição de lugar de estacionamento por usucapião


No domínio da propriedade horizontal (PH), a usucapião, como fonte aquisitiva de direitos, só pode actuar nos estritos limites em que a PH se enquadra (art. 1263º, al. a) do CC), sobre fracções autónomas perfeitamente individualizadas no título constitutivo da propriedade horizontal (TCPH) e não sobre partes delas (arts. 1414º, 1415º, 1418º e 1420º do CC.).

No que respeita à área de uma determinada fracção, que venha sendo possuída pelos proprietários na sua totalidade, então deve, nessa parte, da fracção, reconhecer-se a aquisição a favor dos mesmos, por usucapião, por se tratar de fracção autónoma individualizada no tútulo constitutivo e por se ter demonstrado uma posse pelos proprietários, titulada, que durou pelo tempo bastante, e, por o antepossuidor, o construtor do prédio que o submeteu à propriedade horizontal, nos termos do disposto na al. a), do art. 1294º, 1251º, nº 1, do art. 1259º, nº 1 e 2, do art. 1260º, nº 1, do art. 1261º e art. 1262º, todos do CC.

Ressalva-se num Ac. do STJ de 05.05.2016, ”o registo predial, cujo objecto são factos jurídicos, tem por escopo principal dar a conhecer aos interessados a situação jurídica do bem, garantindo a segurança e genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, assegurando que, em regra, a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes”.

E conforme resulta do art. 7º do CRP, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e, pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Trata-se de presunção de natureza "tantum juris", ou seja ilidível, susceptível de prova do contrário (art. 350º do CC), como resulta, nomeadamente, do ensinamento dos Professores Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª Ed., 429, e A. Varela R.L.J., 122, a págs. 217 e 218.

Uma vez efectuado o registo, este ganha autonomia em relação ao título a partir do qual foi efectuado. Se bem que, de acordo com o estatuído no art. 7º, do CRP, a inscrição no registo predial faça presumir a titularidade do direito de propriedade, o certo é que essa presunção não abrange a área ou a definição da delimitação física do prédio. Afigura-se-nos ser entendimento pacífico que a presunção resultante da inscrição do direito não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo pois que o registo predial, que não é constitutivo, não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio (neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 27/11/93, 5/7/2001, 4/5/2004, 8/10/2009 e 13/02/2014).

A presunção registral não abarca a composição e as confrontações da descrição predial, cingindo-se à existência do direito registado e à sua titularidade, bem como à existência de eventuais ónus registados e ainda de um núcleo mínimo essencial caracterizador da coisa. E bem se compreende o alcance limitado de tal presunção, na medida em que aqueles elementos da descrição, não são percecionados pela CRP que procede ao registo, antes derivam de declarações dos interessados, ainda que documentadas, mas sem a garantia de fiabilidade dos documentos que titulam a realização dos negócios com eficácia real, por falta da intervenção de uma entidade certificadora e dotada de fé pública na recolha e perceção dos dados de facto que vão instruir as declarações dos interessados.

Por isso, o que consta da descrição do registo predial quanto à área das frações autónomas de que os autores se afirmam donos, não está abrangido pela presunção legal vertida no art. 7º do CRP (cfr. se defende no Ac. do TRP de 30/05/2016, proferido no proc. 1817/11, onde também está em discussão a propriedade de um lugar de estacionamento).

A par destes elementos, existem outros que constam das descrições prediais e que integram o âmbito mínimo ou núcleo essencial imprescindível para identificação dos imóveis a que se reportam, sob pena de não ficar a saber-se que concretos imóveis são objecto daquelas descrições e sobre os quais incidem inscrições registrais de direitos – por exemplo, em relação a uma fracção autónoma de um imóvel constituído em PH, o concreto andar em que se situa (1º, 2º, 3º…), se é direito, esquerdo, anterior ou posterior, se possui ou não logradouro exclusivo, se é destinada à habitação, a comércio, a arrumos ou garagem (Ac do TRC de 15.12.2016, proferido no proc. nº 6358/15 ) e onde é citado o Ac. do STJ de 12/2/2008, proferido no âmbito do processo 08A055, onde se escreveu: “Esse núcleo essencial da descrição não pode deixar de estar protegido pela presunção do artigo 7.º sob pena de se presumir a propriedade de coisa nenhuma.

Daí que se no registo um prédio vem descrito como tendo uma área descoberta, ou logradouro, ou como tendo, apenas, um terraço descoberto, tais elementos, – que não limites, áreas precisas, valores, identificação fiscal, confrontações e âmbito – fazem parte do referido núcleo essencial descritivo, que, no fundo são marcas diferenciadoras, ou de identificação, do prédio, que estão a coberto da presunção do art. 7º do CRP.” – no mesmo sentido de que a presunção registral deve estender-se aos elementos constantes das descrições prediais e que integram aquele âmbito mínimo ou núcleo essencial de identificação dos imóveis descritos, podem consultar-se os Ac. do STJ de 19/2/2013, proferido no proc. 367/2002.P1.S, de 20/1/2009, no proc. 3681/08, de 31/3/2004, no proc. 81/04, o Ac. do TRP de 24/9/2012, no proc. 174/09.5TBMDB.P1 e o Ac. do TRC de 18/2/2014, no proc. 527/11.9TBFND.C1.

A usucapião é uma das formas de aquisição originária dos direitos (reais de gozo, e nomeadamente do direito propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (“corpus/animus)” e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse, nomeadamente nos termos dos art. 1251º e segs, 1256º e ss, 1287º e 1294º e ss, todos do CC, sendo que, nos termos do art. 1297º do mesmo Código, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde cessação da violência ou desde que a posse se torne pública.

A posse adquire-se nos termos das diversas alíneas do art. 1263º do CC:
a) pela prática reiterada com publicidade dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;
b) pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor;
c) por constituto possessório;
d) por inversão do título da posse.

A aquisição da posse pode ser originária ou derivada. No primeiro caso, a posse do adquirente surge ex novo na esfera da disponibilidade do sujeito, independentemente de uma posse anterior (nem quanto à existência, nem quanto ao âmbito ou conteúdo, nem quanto à extensão nem à área de incidência); dependendo apenas do facto aquisitivo. Na aquisição derivada a posse é transferida do anterior para o actual titular, fundando-se a deste na anterior posse, quanto à existência, ao âmbito ou conteúdo.

O acto de aquisição da posse, originária ou derivada, tem que conter os elementos que a integram, o corpus e o animus. Estando em causa a aquisição por usucapião de uma fracção na sua totalidade, nem sequer se coloca a questão debatida na jurisprudência e na doutrina da possibilidade/impossibilidade de aquisição por usucapião de partes de uma fracção.

No sentido de que não é possível, o Ac. do STJ de 13.12.2007, processo 07ª3023, onde se considerou que “na propriedade horizontal, - como bem referido no Acórdão recorrido - o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre partes delas (arts. 1414º, 1415º, 1418º e 1420º do CC.), pelo que estando a garagem e arrecadação inserida fisicamente no espaço que é pertença dos RR. (fracção “A”), não pode ela operar enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.

No entanto, a constituição de propriedade horizontal por parte de decisão do Tribunal, como flui do art. 1417º do CC, só é admissível em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário, a requerimento de consorte, e, mesmo assim, desde que sejam unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública. (requisitos previstos no art. 1415º do CC)”. Neste acórdão estava em causa o exercício do poder de facto sobre 21 m2 numa cave que constituía a fracção autónoma A. inscrita em nome do Autor com uma área superior a 21 m2, pelo que estava em questão a aquisição de parte de uma fracção.

No sentido em que a aquisição de parte de uma fração é possível, o Ac. do TRC de 09.05.2006, proferido no proc. 966/06, onde se entendeu ter sido adquirida por usucapião a propriedade de uns arrumos que estavam descritos no título constitutivo da propriedade horizontal como integrando uma determinada fracção. Também no sentido de ser possível a aquisição, por usucapião, tanto de parte de uma fracção autónoma como de uma coisa comum, M.Henrique Mesquita, A propriedade horizontal no Código Civil Português, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXIII, p. 118.

Podem entender os proprietários que a sua posse é titulada, porquanto a compra e venda foi celebrada por escritura pública. Diz-se posse titulada aquela que é fundada em qualquer meio legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico. É exemplo de posse titulada a que é fundada num contrato de compra e venda.

De acordo com as al. a) e b) do art. 1294º do CC a usucapião tem lugar, havendo título de aquisição e registo deste, quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado 10 anos e se, de má fé, tiver durado 15 anos, sempre contados da data do registo.

Se por exemplo, o registo foi efectuado em Janeiro de 2003, à data da interposição da acção, 2015, e estão de boa fé, já tinha decorrido o necessário prazo de 10 anos para a usucapião. Não há dúvidas que entre os proprietários e a sociedade "X" foi celebrado um contrato de compra e venda relativamente à fracção habitacional, sendo que esta fracção tinha a área que ainda hoje detém. Foi esta fracção com a área ocupada pelos proprietários que a Sociedade construtora vendeu aos mesmos e estes compraram.

No entanto, os proprietários não dispõem de título relativamente à fracção garagem mas apenas relativamente à fração habitacional, pelo que a sua posse não é titulada, e neste caso o prazo para adquirir por usucapião, estando de boa fé, é de 15 anos. Para poderem adquirir por usucapião, só beneficiando da posse também exercida pelo construtor, uma vez que a posse por si exercida não o foi pelo tempo necessário à usucapião, tendo apenas decorrido 12 anos até à data da citação para a presente ação.

Mas é possível somar à sua posse a posse exercida anteriormente pela sociedade construtora. Nos termos do art. 1256º nº 1 do CC aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor. Para poder beneficiar deste instituto terá de alegar e provar actos de posse pelos antecessores.

O normativo apenas exige uma ligação sequencial legítima entre posses, podendo relevar tal ligação para efeitos de usucapião (art. 1287º CC) ou, v.g., para efeitos de melhor posse (art. 1267º nº1 al.d) e 1278º nºs 2 e 3 CC). As duas posses não têm que ser absolutamente homogéneas (cfr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, §135, que exemplifica: “assim, o comprador duma fracção de um condomínio pode juntar à sua posse da fracção, a posse anterior do edifício pelo construtor/vendedor, bem como a eventual posse do anterior proprietário/possuidor que ao construtor vendeu o terreno”).

Conforme se defendeu no Ac.STJ, de 3/6/92, Bol.418/773, não existem razões que distingam o caso do fraccionamento da propriedade singular ou comum original em fracções autónomas de propriedade horizontal, do seu fraccionamento em unidades autónomas completamente independentes, como acontece na divisão da propriedade rústica, quando possível.

No caso da divisão legal e fisicamente possível em unidades independentes, a posse inicial sobre a coisa transfere-se para as partes em que for decomposta e cada um dos sucessores (acedentes) adquire a posse que o antecessor tinha sobre a respectiva parcela, como parte do todo (Ac. do TRG de 26/05/2004, proc. 932/04).

O TCPH poderá ser alterado nos termos do art. 1422º-A, nº 1 e 2 e 4 do CC, por acto unilateral constante de escritura pública, não sendo necessária a intervenção de todos os condóminos. Se a PH pode ser constituída por usucapião (art. 1417º, nº 1 do CC), também poderá ser alterada através da invocação da usucapião (defendendo esta possibilidade, vide DURVAL FERREIRA, em “Posse e usucapião”, pág. 446-447, da ed. de 2002, da Almedina, apud Ac. do TRC de 9.05.2006).

No sentido de que pode ser adquirido por usucapião um lugar de estacionamento que integrava no título constitutivo outra fracção, o Ac. do TRC já citado de 9.05.2006, proferido no proc. 966/06.

E no sentido de que se pode adquirir por usucapião um lugar de estacionamento diferente do que consta do título de PH, o Ac. do TRP de 30.05.2016, proc. nº 1817/11, que confirmou a sentença recorrida que julgou improcedente o pedido dos AA. de reconhecimento da propriedade de um lugar de estacionamento situado a poente sul e julgou procedente o pedido reconvencional dos RR. no sentido do reconhecimento pelos AA. de que o seu lugar do estacionamento é o situado no lado nascente sul por ter sido o que estes quiseram comprar e sempre utilizaram há mais de 28 anos, embora não fosse o que constava no título constitutivo da propriedade horizontal como afecto à fracção habitacional por eles adquirida.

08 outubro 2024

Usucapião e escritura de justificação notarial



A usucapião e a escritura de justificação notarial

A usucapião vem definida no art. 1287º do Código Civil da seguinte forma:

“A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”.

A lei prevê, assim, a possibilidade de que alguém que usufrua de um determinado bem venha a apropriar-se desse bem se o mantiver na sua posse durante um determinado período de tempo e de forma continuada.

A usucapião pode ser invocada se se verificarem as seguintes condições:

- O uso do bem por determinada pessoa tem de ser do conhecimento público, como sendo aquele utilizador o seu único proprietário.

- A utilização do bem tem de ser pacífica, ou seja, não pode ter sido a posse do bem tomada à força, por esbulho.

- A utilização do bem por aquele que se diz no direito de adquirir a propriedade por usucapião deve acontecer de forma continuada. 

- O possuidor deve ser reconhecido como utilizador regular do bem em causa, publicamente.

Tempo para aquisição do bem imóvel por usucapião:

1. Havendo título de aquisição do bem e registo deste, a usucapião tem lugar:
  • Quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado por 10 anos, contados desde a data do registo;
  • Quando a posse, ainda que de má fé, houver durado 15 anos, contados da data do registo.
2. Não havendo título de aquisição, mas apenas registo de mera posse, a usucapião tem lugar:
  • Se a posse tiver continuado por 5 anos contados desde a data do registo, e esta for de boa fé;
  • Se a posse tiver continuado por 10 anos, a contar da data de registo, ainda que não de boa fé.
3 Não havendo registo do título de aquisição nem registo de mera posse a usucapião tem lugar:
  • Ao final de 15 anos se a posse for de boa fé;
  • Ao final de 20 anos se a posse for de má fé.
Importa referir que a mera posse só será registada com a sentença final proferida em processo de justificação notarial, na qual se reconheça que o possuidor tem possuído o bem pacífica e publicamente por tempo não inferior a 5 anos.

Noção de boa fé: O possuidor que faz uso do bem, cuidando do mesmo por desconhecer que, é o seu proprietário e presumindo que o imóvel está ao abandono.

Noção de má fé: O possuidor tem conhecimento da existência do proprietário do bem, mas perante a sua ausência decido tomar a sua posse e ocupar o bem, como se fosse seu.

Bem imóvel – Usucapião - formalidades

A aquisição de um bem imóvel por usucapião é feito mediante uma escritura de justificação notarial.

Para tal, o interessado tem de declarar que é o único possuidor daquele bem; especificar a causa da sua aquisição e referir as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais; e mencionar as circunstâncias que determinam o início da posse, bem como as que caracterizam a utilização do bem e aquelas que deram origem à usucapião.

Na escritura de justificação notarial têm de estar presentes 3 testemunhas sem relação de parentesco entre si e o próprio possuidor e que atestem a relação deste com o bem.

Quanto a documentos, normalmente serão necessários os documentos comprovativos das transmissões anteriores e subsequentes ao facto que se pretende ver justificado.

Para que se possa registar a aquisição do bem por usucapião, depois de feita a escritura de justificação notarial, é necessário aguardar por 30 dias para que terceiros se possam opor à aquisição. Se nada for dito, o registo predial de aquisição do imóvel pode ser feito

Impostos e emolumentos

Na escritura pública de justificação notarial são devidos os seguintes impostos:

- IMT (taxa até 8%)
- Imposto de selo (0,8% sobre a transação total)

Custo da escritura (pode variar entre os 200€ e os 700€)

Registo Predial: 250€ por cada prédio

Legislação – arts 1287º e seguintes do Código Civil

15 fevereiro 2024

Direito de Preferência e Invocação de Usucapião


Suponhamos que um dos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura invoca o direito de preferência que a lei lhe concede (art. 1350º do CC) no caso duma venda, dação em pagamento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.

E, suponhamos também que a tal proprietário não se deu conhecimento de tal negócio, e ele só vem a instaurar a respetiva ação judicial para reconhecimento de tal direito de preferência, dentro dos 6 meses, mas após ter conhecimento do negócio e o que todavia só ocorre vários anos depois (art. 1380º, 4 e art. 416º a 418º e 1410º do CC).

E, então, questiona-se: pode o adquirente do imóvel transmitido invocar a seu favor a aquisição do direito de propriedade, com base em posse e usucapião e, assim, neutralizar o direito de preferência alegado pelo terceiro?

Por exemplo, o Acordão do TRC, de 10-05-2022, julgou que “a aquisição do domínio pelo proprietário sujeito passivo da preferência não é obstáculo, mas pressuposto, do direito de preferência do proprietário confinante, razão pela qual não pode proceder a invocação da acessão da posse por aquele para, em nome da consolidação do domínio – por via da usucapião – afastar o direito de propriedade” (in. C.J., nº 319, Ano XLVII, T. III/2022, págs. 9 e sgts.).

TODAVIA, para se avaliar a questão em causa há que distinguir, as duas hipóteses possíveis de invocação da posse/usucapião. Ou seja, se o adquirente por alienação do bem em causa, invoca tão só uma posse sua, para efeitos de contagem do tempo exigível para usucapião. Ou, se invoca, para tal contagem do tempo, não só uma posse sua, mas também, por acumulação, uma acessão da posse anterior do alienante (art. 1256º do CC).

Ora, se o adquirente invoca não só uma posse sua, mas também, para acumulação, a acessão de posse anterior do alienante, afim de, por acumulação, perfazer o tempo de posse legalmente necessária para facultar ao possuidor a aquisição do direito (por exemplo, dez ou quinze anos, ao abrigo do art. 1294º do CC) – então, a aquisição do direito por alegada usucapião com base nessas duas posses, não afasta o direito real de preferência invocado pelo terceiro proprietário confinante.

E não propriamente porque a aquisição do direito de propriedade por usucapião seja uma “consolidação do domínio”. Pois, a aquisição do direito de propriedade por usucapião é a aquisição dum direito “novo”, “originário”, em que a sua “causa” é a “posse”.

Assim, o direito adquirido pelo possuidor não é o direito anterior – este direito “aniquila-se”. (Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 5ª ed., nº 214, pág. 483).

TODAVIA, se se invoca uma posse anterior, desde logo, também há que atender ao âmbito “dessa posse”, em termos do corpus e animus do respetivo senhorio sobre a coisa (art. 1251º e 1287º do CC).

E, por sua vez, em caso de invocação de usucapião “o que se adquire é “o direito” sobre uma coisa a cujo exercício corresponde a posse (art. 1287º): não “imediatamente” e de per si um “conteúdo concreto” dum direito (Ugo Natoli, o. cit., 342º, in cit. Durval Ferreira, nº 214, p. 483, 5ª ed.).

Ora, a posse exerce-se sobre uma coisa concreta. Consequentemente, “o direito” (abstratamente considerado) que se adquire é sobre a coisa concreta possuída. Então, adquirindo-se “o direito” sobre a coisa concreta possuída, o conteúdo do direito adquirido será aquele que resultar, por um lado, do conteúdo normativo desse direito na ordem jurídica e, por outro lado, da sua aplicação à coisa possuída, conforme esta, concreta e especificamente, se enquadra na ordem jurídica existente. E, pois, como aí, sujeita às (eventuais) restrições, ónus, encargos ou direitos que, segundo a ordem jurídica, de per si, existam e sejam oponíveis ao proprietário da coisa. (cit. Durval Ferreira, nº 215, p. 483, 5ª ed.).

Assim, aquele, por exemplo, que adquire o prédio de área inferior à unidade de cultura, sujeito a direito de preferência de proprietários confinantes (art. 1380º do CC), se pretender juntar a sua posse à posse do anterior proprietário alienante, terá que assumir que este anterior proprietário era possuidor do bem quer com o animus de ser detentor dum direito de propriedade, mas objeto dum ónus legal de no caso de alienação estar sujeito ao direito de preferência de proprietários confinantes, quer dum direito de cujo “conteúdo concreto” objetivamente e de per si também fazia parte esse ónus real.

Mas, então, a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas com acessão de “tal posse anterior do transmitente”, é baseada numa posse, num “senhorio de facto” correspondente in casu, à titularidade dum direito de propriedade sobre o respetivo bem, mas sujeito “tal direito” – quer subjetiva quer objetivamente – ao ónus legal e real dum direito de preferência de proprietários confinantes “se” tal bem for alienado a quem não seja proprietário confinante, e se tal alienação ocorrer no período da posse, ou posses alegadas (art. 1380º do CC).

Pois “o conteúdo do direito adquirido”, sobre o bem em causa, é, in casu, o correspondente também a uma “posse” (a do anterior possuidor e transmitente) mas “exercida sobre uma coisa onerada já (segundo a ordem jurídica) e ao tempo dessa posse com a existente restrição: daí que o direito se constitua com a oneração em causa” (vide Menezes Cordeiro, Reais, pág. 477 – cit. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 5ª ed., 2022, nº 215, p. 485).

Aliás, se assim não fosse, então, praticamente, a atribuição por lei do direito real de preferência em certas alienações de bens, seria uma mera falácia, uma pura fantasia. Pois que, com toda a facilidade, o adquirente se furtaria a tais preferências. Bastar-lhe-ia invocar a usucapião, com base quer na “sua posse”, ainda que de alguns dias, quer com acessão de posse do transmitente.

ORA, na interpretação da Lei, há também que ter em conta “sobretudo a unidade do sistema jurídico” e sendo de “presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (art. 9º do CC).

E, assim, a invocação pelo adquirente de que é proprietário do bem com base em “tal usucapião”, por acessão, não inibe que “esse direito” que adquiriu, todavia, no seu “conteúdo legal”, na sua inserção na “unidade do sistema jurídico” e no seu devido animus, não esteja sujeito ao ónus real do direito de preferência de proprietários confinantes, se for transmitido após o início “dessa invocada posse”. E, pois, se o actual possuidor quer “aceder” também a “essa posse” – concomitantemente, tem que aceitar a consequência do preciso “conteúdo” “desse direito que invoca” e assente (também) “nessa precisa posse”. E, assim, com o ónus do referido direito real de preferência. E que o terceiro, por sua vez, precisamente, é o que está a exigir.

E tendo em conta a “unidade intrínseca do sistema jurídico”. Pois, como decide o S.T.J., “nenhuma norma pode ser corretamente entendida, se não se tiver em atenção, além do mais, o conjunto da ordem jurídica” (Ac. STJ, de 22-02-94). E, numa “coerência intrínseca, em cada um dos seus sectores e na concordância entre si e na globalidade” (Batista Machado).

Aliás uma invocação da posse anterior, por acessão, mas tão só para beneficiar dos aspetos favoráveis de tal posse mas com simultâneo repúdio dos aspetos desfavoráveis – não pode deixar de se avaliar como “ilegítimo exercício de um direito” (art. 334º do CC).

MAS

A situação já é diferente (substantiva e legalmente), se o adquirente invoca a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio alienado com base em usucapião, mas baseada esta tão só em posse sua. E, sem acessão de posse do alienante. Pois que, então, o direito de propriedade invocado é “direito novo” “originário” – e de que é “titular apenas o possuidor atual” e “a partir da data do início” da “sua posse”.

E, se é certo que, inserido tal direito na unidade do sistema jurídico quanto ao seu “conteúdo”, tal direito, está sujeito ao ónus do “direito real de preferência” de proprietários confinantes - todavia, a situação típica que é pressuposta no art. 1380º do CC só acontece mas em relação a uma alienação que tenha por objeto especificamente “esse direito novo” e em que seja alienante o “respetivo titular” desse direito.

O que só se verifica se a alienação alegada por um proprietário confinante, for uma alienação ocorrida após o inicio da posse invocada e após, pois, do nascimento de tal direito. E em que seja alienante o possuidor que contra-invoca a usucapião.

Ora, desde logo, “o direito adquirido pelo possuidor não é o direito anterior do titular não possuidor. Este direito aniquila-se (se o direito constituído é idêntico (art. 1313º) …” (Durval Ferreira, o. cit., nº 214,pág. 483).

ASSIM, se um proprietário confinante alega a anterior alienação do “anterior possuidor” e “ocorrida antes” do início da posse em que se baseia a invocada usucapião, pelo possuidor atual – então, desde logo, “tal direito” alegado pelo pretendente do direito de preferência, está “aniquilado” pela invocação, retroativa, da usucapião. E também, de qualquer modo, é “inoponível” ao “actual proprietário”. Como, o invocado negócio de alienação também é inoponível ao actual possuidor-proprietário, como res inter allios acta.

Consequentemente, pois, não pode proceder o direito de preferência alegado pelo proprietário confinante, pois, o invocado “direito alienado” pelo anterior possuidor e “causa de pedir” de tal invocada preferência, retroativamente, “não existe”. Bem como, quer o “negócio invocado”, quer o “direito de propriedade” que é seu objeto são “inoponiveis” ao actual proprietário que invoca uma aquisição por usucapião, mas retroactiva do direito de propriedade sobre tal bem, e, como tal, reportada e operante a data anterior a tal alienação.

Na verdade, é pressuposto do direito de preferência concedido pelo art. 1380º do CC, que haja uma alienação do direito de propriedade “existente”, “vigente” e “oponível” sobre o prédio e que essa alienação seja outorgada por quem seja o “titular” legitimo do respetivo e existente direito de propriedade sobre o prédio.

Ou seja, no reverso, o art. 1380º do C.C. não concede o direito de preferência, face a alienações outorgadas por quem não é “titular” e dum “existente” e “vigente” direito de propriedade sobre o bem e que seja “oponível” ao possuidor actual.

Aliás, no caso em apreço, do que se trata no seu cerne é duma postulada avaliação de quem seja “proprietário” do bem em causa. Ou seja, aquele que outorgou o contrato de alienação invocado pelo proprietário confinante? Ou, o atual possuidor?

Ora, na unidade do sistema jurídico, se existe tal conflito, de quem seja o proprietário dum prédio – quem o ganha é quem invoque a aquisição do respetivo direito por usucapião, ao abrigo dos art. 1287º e sgts. do CC. E, por razões de interesse e ordem pública, e não para satisfação de interesses individuais do possuidor que invoca a usucapião.

Ou seja, é a posse/usucapião que põe o fim, o ponto final, nos pleitos ou querelas, sobre a existência do direito, e sua titularidade, e sobre que bens e seus limites materiais. A usucapião é o instituto de finis sollicitudinis et litium (Ciceron, pró-Caecina, 26) – (in cit. Durval Ferreira, 202, pág. 460, 5ª ed.).

E, assim, pois, se o actual possuidor invoca uma posse boa para usucapião, e sem acessão de posses anteriores doutrem – esta invocação elimina, de per si, a procedência dum pretendido direito de preferência baseado numa alienação do bem, mas ocorrida anteriormente ao início da invocada posse-usucapião.

Durval Ferreira, Advogado