Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.
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2/15/2024

Direito de Preferência e Invocação de Usucapião


Suponhamos que um dos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura invoca o direito de preferência que a lei lhe concede (art. 1350º do CC) no caso duma venda, dação em pagamento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.

E, suponhamos também que a tal proprietário não se deu conhecimento de tal negócio, e ele só vem a instaurar a respetiva ação judicial para reconhecimento de tal direito de preferência, dentro dos 6 meses, mas após ter conhecimento do negócio e o que todavia só ocorre vários anos depois (art. 1380º, 4 e art. 416º a 418º e 1410º do CC).

E, então, questiona-se: pode o adquirente do imóvel transmitido invocar a seu favor a aquisição do direito de propriedade, com base em posse e usucapião e, assim, neutralizar o direito de preferência alegado pelo terceiro?

Por exemplo, o Acordão do TRC, de 10-05-2022, julgou que “a aquisição do domínio pelo proprietário sujeito passivo da preferência não é obstáculo, mas pressuposto, do direito de preferência do proprietário confinante, razão pela qual não pode proceder a invocação da acessão da posse por aquele para, em nome da consolidação do domínio – por via da usucapião – afastar o direito de propriedade” (in. C.J., nº 319, Ano XLVII, T. III/2022, págs. 9 e sgts.).

TODAVIA, para se avaliar a questão em causa há que distinguir, as duas hipóteses possíveis de invocação da posse/usucapião. Ou seja, se o adquirente por alienação do bem em causa, invoca tão só uma posse sua, para efeitos de contagem do tempo exigível para usucapião. Ou, se invoca, para tal contagem do tempo, não só uma posse sua, mas também, por acumulação, uma acessão da posse anterior do alienante (art. 1256º do CC).

Ora, se o adquirente invoca não só uma posse sua, mas também, para acumulação, a acessão de posse anterior do alienante, afim de, por acumulação, perfazer o tempo de posse legalmente necessária para facultar ao possuidor a aquisição do direito (por exemplo, dez ou quinze anos, ao abrigo do art. 1294º do CC) – então, a aquisição do direito por alegada usucapião com base nessas duas posses, não afasta o direito real de preferência invocado pelo terceiro proprietário confinante.

E não propriamente porque a aquisição do direito de propriedade por usucapião seja uma “consolidação do domínio”. Pois, a aquisição do direito de propriedade por usucapião é a aquisição dum direito “novo”, “originário”, em que a sua “causa” é a “posse”.

Assim, o direito adquirido pelo possuidor não é o direito anterior – este direito “aniquila-se”. (Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 5ª ed., nº 214, pág. 483).

TODAVIA, se se invoca uma posse anterior, desde logo, também há que atender ao âmbito “dessa posse”, em termos do corpus e animus do respetivo senhorio sobre a coisa (art. 1251º e 1287º do CC).

E, por sua vez, em caso de invocação de usucapião “o que se adquire é “o direito” sobre uma coisa a cujo exercício corresponde a posse (art. 1287º): não “imediatamente” e de per si um “conteúdo concreto” dum direito (Ugo Natoli, o. cit., 342º, in cit. Durval Ferreira, nº 214, p. 483, 5ª ed.).

Ora, a posse exerce-se sobre uma coisa concreta. Consequentemente, “o direito” (abstratamente considerado) que se adquire é sobre a coisa concreta possuída. Então, adquirindo-se “o direito” sobre a coisa concreta possuída, o conteúdo do direito adquirido será aquele que resultar, por um lado, do conteúdo normativo desse direito na ordem jurídica e, por outro lado, da sua aplicação à coisa possuída, conforme esta, concreta e especificamente, se enquadra na ordem jurídica existente. E, pois, como aí, sujeita às (eventuais) restrições, ónus, encargos ou direitos que, segundo a ordem jurídica, de per si, existam e sejam oponíveis ao proprietário da coisa. (cit. Durval Ferreira, nº 215, p. 483, 5ª ed.).

Assim, aquele, por exemplo, que adquire o prédio de área inferior à unidade de cultura, sujeito a direito de preferência de proprietários confinantes (art. 1380º do CC), se pretender juntar a sua posse à posse do anterior proprietário alienante, terá que assumir que este anterior proprietário era possuidor do bem quer com o animus de ser detentor dum direito de propriedade, mas objeto dum ónus legal de no caso de alienação estar sujeito ao direito de preferência de proprietários confinantes, quer dum direito de cujo “conteúdo concreto” objetivamente e de per si também fazia parte esse ónus real.

Mas, então, a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas com acessão de “tal posse anterior do transmitente”, é baseada numa posse, num “senhorio de facto” correspondente in casu, à titularidade dum direito de propriedade sobre o respetivo bem, mas sujeito “tal direito” – quer subjetiva quer objetivamente – ao ónus legal e real dum direito de preferência de proprietários confinantes “se” tal bem for alienado a quem não seja proprietário confinante, e se tal alienação ocorrer no período da posse, ou posses alegadas (art. 1380º do CC).

Pois “o conteúdo do direito adquirido”, sobre o bem em causa, é, in casu, o correspondente também a uma “posse” (a do anterior possuidor e transmitente) mas “exercida sobre uma coisa onerada já (segundo a ordem jurídica) e ao tempo dessa posse com a existente restrição: daí que o direito se constitua com a oneração em causa” (vide Menezes Cordeiro, Reais, pág. 477 – cit. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 5ª ed., 2022, nº 215, p. 485).

Aliás, se assim não fosse, então, praticamente, a atribuição por lei do direito real de preferência em certas alienações de bens, seria uma mera falácia, uma pura fantasia. Pois que, com toda a facilidade, o adquirente se furtaria a tais preferências. Bastar-lhe-ia invocar a usucapião, com base quer na “sua posse”, ainda que de alguns dias, quer com acessão de posse do transmitente.

ORA, na interpretação da Lei, há também que ter em conta “sobretudo a unidade do sistema jurídico” e sendo de “presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (art. 9º do CC).

E, assim, a invocação pelo adquirente de que é proprietário do bem com base em “tal usucapião”, por acessão, não inibe que “esse direito” que adquiriu, todavia, no seu “conteúdo legal”, na sua inserção na “unidade do sistema jurídico” e no seu devido animus, não esteja sujeito ao ónus real do direito de preferência de proprietários confinantes, se for transmitido após o início “dessa invocada posse”. E, pois, se o actual possuidor quer “aceder” também a “essa posse” – concomitantemente, tem que aceitar a consequência do preciso “conteúdo” “desse direito que invoca” e assente (também) “nessa precisa posse”. E, assim, com o ónus do referido direito real de preferência. E que o terceiro, por sua vez, precisamente, é o que está a exigir.

E tendo em conta a “unidade intrínseca do sistema jurídico”. Pois, como decide o S.T.J., “nenhuma norma pode ser corretamente entendida, se não se tiver em atenção, além do mais, o conjunto da ordem jurídica” (Ac. STJ, de 22-02-94). E, numa “coerência intrínseca, em cada um dos seus sectores e na concordância entre si e na globalidade” (Batista Machado).

Aliás uma invocação da posse anterior, por acessão, mas tão só para beneficiar dos aspetos favoráveis de tal posse mas com simultâneo repúdio dos aspetos desfavoráveis – não pode deixar de se avaliar como “ilegítimo exercício de um direito” (art. 334º do CC).

MAS

A situação já é diferente (substantiva e legalmente), se o adquirente invoca a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio alienado com base em usucapião, mas baseada esta tão só em posse sua. E, sem acessão de posse do alienante. Pois que, então, o direito de propriedade invocado é “direito novo” “originário” – e de que é “titular apenas o possuidor atual” e “a partir da data do início” da “sua posse”.

E, se é certo que, inserido tal direito na unidade do sistema jurídico quanto ao seu “conteúdo”, tal direito, está sujeito ao ónus do “direito real de preferência” de proprietários confinantes - todavia, a situação típica que é pressuposta no art. 1380º do CC só acontece mas em relação a uma alienação que tenha por objeto especificamente “esse direito novo” e em que seja alienante o “respetivo titular” desse direito.

O que só se verifica se a alienação alegada por um proprietário confinante, for uma alienação ocorrida após o inicio da posse invocada e após, pois, do nascimento de tal direito. E em que seja alienante o possuidor que contra-invoca a usucapião.

Ora, desde logo, “o direito adquirido pelo possuidor não é o direito anterior do titular não possuidor. Este direito aniquila-se (se o direito constituído é idêntico (art. 1313º) …” (Durval Ferreira, o. cit., nº 214,pág. 483).

ASSIM, se um proprietário confinante alega a anterior alienação do “anterior possuidor” e “ocorrida antes” do início da posse em que se baseia a invocada usucapião, pelo possuidor atual – então, desde logo, “tal direito” alegado pelo pretendente do direito de preferência, está “aniquilado” pela invocação, retroativa, da usucapião. E também, de qualquer modo, é “inoponível” ao “actual proprietário”. Como, o invocado negócio de alienação também é inoponível ao actual possuidor-proprietário, como res inter allios acta.

Consequentemente, pois, não pode proceder o direito de preferência alegado pelo proprietário confinante, pois, o invocado “direito alienado” pelo anterior possuidor e “causa de pedir” de tal invocada preferência, retroativamente, “não existe”. Bem como, quer o “negócio invocado”, quer o “direito de propriedade” que é seu objeto são “inoponiveis” ao actual proprietário que invoca uma aquisição por usucapião, mas retroactiva do direito de propriedade sobre tal bem, e, como tal, reportada e operante a data anterior a tal alienação.

Na verdade, é pressuposto do direito de preferência concedido pelo art. 1380º do CC, que haja uma alienação do direito de propriedade “existente”, “vigente” e “oponível” sobre o prédio e que essa alienação seja outorgada por quem seja o “titular” legitimo do respetivo e existente direito de propriedade sobre o prédio.

Ou seja, no reverso, o art. 1380º do C.C. não concede o direito de preferência, face a alienações outorgadas por quem não é “titular” e dum “existente” e “vigente” direito de propriedade sobre o bem e que seja “oponível” ao possuidor actual.

Aliás, no caso em apreço, do que se trata no seu cerne é duma postulada avaliação de quem seja “proprietário” do bem em causa. Ou seja, aquele que outorgou o contrato de alienação invocado pelo proprietário confinante? Ou, o atual possuidor?

Ora, na unidade do sistema jurídico, se existe tal conflito, de quem seja o proprietário dum prédio – quem o ganha é quem invoque a aquisição do respetivo direito por usucapião, ao abrigo dos art. 1287º e sgts. do CC. E, por razões de interesse e ordem pública, e não para satisfação de interesses individuais do possuidor que invoca a usucapião.

Ou seja, é a posse/usucapião que põe o fim, o ponto final, nos pleitos ou querelas, sobre a existência do direito, e sua titularidade, e sobre que bens e seus limites materiais. A usucapião é o instituto de finis sollicitudinis et litium (Ciceron, pró-Caecina, 26) – (in cit. Durval Ferreira, 202, pág. 460, 5ª ed.).

E, assim, pois, se o actual possuidor invoca uma posse boa para usucapião, e sem acessão de posses anteriores doutrem – esta invocação elimina, de per si, a procedência dum pretendido direito de preferência baseado numa alienação do bem, mas ocorrida anteriormente ao início da invocada posse-usucapião.

Durval Ferreira, Advogado