Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.
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1/10/2024

Alterações ao regime da PH - art. 1424º e 1424-A - III


4. A NOVIDADE DO ARTIGO 1424º-A, Nº 1 E 2 
 
Nos termos do art. 1424º-A/1 do CC, actualmente a escritura ou o documento particular autenticado de alineação da fracção tem de ser instruída com a declaração emitida pelo administrador da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio, em vigor relativamente à fracção, com especificação da sua natureza, respectivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respectiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento (28). 
 
De acordo com o nº 2 do citado artigo, o alienante antes da alienação terá de requerer ao administrador a dita declaração, que este emitirá no prazo máximo de 10 dias, e que será um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fracção em causa (salvo o disposto no nº 3). Esta declaração, por um lado terá de descrever todas as obrigações inerentes ao condomínio no que concerne aos encargos e por outro lado terá de conter as obrigações reais vencidas e não vencidas. 
 
Pretendeu assim, o legislador com esta imposição assegurar que o adquirente tome conhecimento das suas obrigações, enquanto condómino. Preocupante parece-nos o constante do art. 1424º-A/3 do CC que consigna que será civilmente responsável o administrador de condomínio se não emitir a declaração, não a emitir a atempadamente, ou não a emitir de forma exacta e completa. Na verdade, a imposição desta obrigação e as consequências advenientes do seu incumprimento, farão com que muitos condóminos venham a recusar assumir o cargo de administrador, com receio de não conseguirem cumprir de forma adequada a sua obrigação e incorrerem em litígios judiciais indesejáveis. 
 
Julgamos que, sendo o negócio realizado entre o alienante e o adquirente da fracção, deveria ser o alienante, ao abrigo do princípio da boa-fé, a fornecer as informações constantes da dita declaração e não o administrador, que não é sequer um dos contratantes. Por outro lado, esta solução legal provocará uma crescente profissionalização da administração de condomínio, que penalizará os pequenos edifícios, com encargos crescentes. 
 
Tal como anteriormente se referiu, é responsável pelo pagamento das dividas, o proprietário da fracção no momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, mas de forma surpreendente, o art. 1424º-A/3 estabelece que se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fracção, que prescinde da declaração do administrador, aceitará, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor para com o condomínio. 
 
Temos dificuldade em aceitar esta solução como equilibrada e correcta. Isto significa que na sequência de tal declaração, o adquirente irá assumir a responsabilidade pelo pagamento de serviços e despesas dos quais não beneficiou, nem irá beneficiar (29). 
 
Para além disso, o regime do direito das obrigações em geral, particularmente quanto à transmissão singular de dívidas - art. 595º e ss. do CC (assunção de dívida) que exige a intervenção do credor ratificando ou intervindo contratualmente - é aqui preterido, sendo uma alteração que retira coerência e unidade ao sistema jurídico. 
 
5. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 6º, Nº 5 DO DL 268/94 ALTERADO PELA LEI 8/2022 
 
O artigo 6º nº 5 do DL 268/94 com a redacção que lhe foi dada pela lei 8/2022 de 10 de Janeiro pretende “obrigar” o administrador a cobrar os créditos do condomínio, fixando-lhe para tal um prazo de 90 dias, a partir do primeiro incumprimento. No entanto, mais uma vez, a sua redacção não nos parece a mais feliz, levantando-se dúvidas interpretativas, senão vejamos: consta do referido nº 5 que “A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil”. 
 
Ora, o legislador pretende impor duas condições cumulativas para que o administrador não tenha de interpor a acção, nomeadamente a existência deliberação e estar perante dívidas de pequeno valor. A exigência de duas condições cumulativas parece resultar da utilização do “e”? Ou pelo contrário, basta estarmos perante uma dívida de pequeno montante para o administrador não esteja obrigado a intentar a acção? De igual forma, se existir apenas a deliberação da Assembleia já não será o administrador obrigado a intentar acção, independentemente do valor do crédito? 
 
Na verdade, parece que o legislador terá tido a intenção de obrigar o administrador a intentar acção judicial no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento, sem necessidade de qualquer autorização da Assembleia, quando que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil. 
 
O administrador só não estará obrigado a fazê-lo quando a Assembleia deliberar no sentido da não cobrança judicial. Assim o refere Márcia Passos, uma das autoras do Projecto de Lei 718/XIV/2 (30). Se esta foi a intenção de legislador parece-nos que a redacção do nº 5 do art. 6º do DL 268/94 deveria ter sido outra, pelo que deveria ter constado: A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos. 
 
Em conclusão se dirá que, a interpretação do pensamento legislativo que parece mais adequada, será no sentido de que:
 - Se o administrador se deparar com um primeiro incumprimento superior a 90 dias, de valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, não está obrigado a intentar acção judicial; 
- Estando perante valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, só poderá intentar a competente acção se a assembleia deliberar nesse sentido, conferindo-lhe poderes para o efeito. 
- Se a dívida for superior ao valor indexante de apoios sociais do respectivo ano civil e se o primeiro incumprimento do condómino for superior a 90 dias, não só o administrador não necessita de deliberação ou autorização, como estará obrigado a intentar acção (salvo deliberação da Assembleia no sentido da não cobrança).

6. CONCLUSÃO 
 
Da análise que fizemos às alterações introduzidas nas normas referidas, cumpre salientar em conclusão que não nos parece necessária, nem feliz a alteração efectuada ao art. 1424º/1 do CC tanto mais que esta norma já definia quem era o responsável pelo pagamento das despesas condominiais, embora não o fizesse em caso de alienação. 
 
Acresce que, a redacção constante do art. 1424º/1 do CC, encontra-se em contradição com os nº 3 e 4 do art. 1424-A, o que veio provocar dúvidas quanto à sua interpretação, que poderão fomentar a litigiosidade dentro e fora dos tribunais. Não podemos afirmar que o nº 1 do art. 1424º estabelece a regra, e que o nº 3 e 4 do art. 1424º-A, contêm uma excepção, uma vez que o art. 1424º/1 do CC e o art. 1424º-A nº 3 e 4 tratam agora da mesma questão de saber quem será o responsável pelo pagamento das dívidas ao condomínio, em caso de alienação. 
 
De qualquer forma, o art. 1424º-A do CC vem estabelecer que a responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas (nº 3) e os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fracção, são da responsabilidade do novo proprietário (nº 4). 
 
Neste sentido, em caso de alienação da fracção, resulta que o adquirente só será responsável pelo pagamento das dividas condominiais que se vençam após a sua aquisição. Foi assim abandonada a doutrina e a jurisprudência dominante que efectuavam uma análise casuística tendo em atenção a clássica relação entre a obrigação de cumprimento e o gozo da coisa, o que permitia uma solução justa e equilibrada. No entanto, em abono da verdade, a solução legal ao terminar com a análise casuística permite uma maior segurança e certeza na aplicação do direito. 
 
O constante do art. 1424º-A/3 do CC consigna que será civilmente responsável o administrador de condomínio se não emitir a declaração, não a emitir atempadamente, ou se a emitir de forma inexacta e incompleta. A imposição desta obrigação e as consequências advenientes do seu incumprimento, farão com que muitos condóminos venham a recusar assumir o cargo de administrador, provocando uma maior profissionalização da administração de condomínio e um aumento de despesa para os condóminos. 
 
É responsável pelo pagamento das dividas, o proprietário da fracção no momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, mas o art. 1424º-A/3 estabelece que se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fracção, que prescinde da declaração do administrador, aceitará, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio. 
 
Temos dificuldade em aceitar esta solução como equilibrada e correcta. Isto significa que o adquirente irá suportar o pagamento de serviços e despesas dos quais não beneficiou, nem irá beneficiar. Acresce que a punição sofrida pelo facto de não ter pedido uma declaração – suportar o pagamento de dívida alheia - não se mostra adequada, nem razoável. No que diz respeito ao art. 6º, nº 5 do DL 268/94 com a redacção que lhe foi dada pela Lei 8/2022, podemos concluir que se administrador se deparar com um primeiro incumprimento superior a 90 dias, de valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, não está obrigado a intentar acção judicial. 
 
Por outro lado, estando perante valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, só poderá intentar a competente acção se a assembleia deliberar nesse sentido, conferindo-lhe poderes para o efeito. Por fim, como já se referiu, se a dívida for superior ao valor do indexante de apoios sociais do respectivo ano civil e se o primeiro incumprimento do condómino for superior a 90 dias, não só o administrador não necessita de deliberação ou autorização, como estará obrigado a intentar acção (salvo deliberação da Assembleia no sentido da não cobrança).
 
Notas:

28 Em consonância foi alterado o Código do Notariado - art. 54º/3:” Os instrumentos pelos quais se partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles, não podem ser lavrados sem que se faça referência à declaração prevista no nº 2 do art. 1424º-A do CC, sem prejuízo do disposto no nº 3 do mesmo artigo.” 
29 Veja-se a este propósito, Margarida Costa Andrade na exposição de 4/5/2022, efectuada online, denominada “Alterações ao regime da propriedade horizontal – Lei 8/2022 de 10 de janeiro” acedida em 5/9/2022 em https://www.youtube.com/watch?v=prBpoywiLmY
30 Assim o refere Márcia Passos, uma das autoras do Projecto de Lei 718/XIV/2 - https://observatorio.almedina.net/ index.php/2022/01/13/propriedade-horizontal-resumo-das-alteracoes-ao-regime-lei-n-o-8-2022-10-01/. Consultado em12/05/2022

1/02/2024

Alterações ao regime da PH - art. 1424º e 1424-A - II


3. ANÁLISE DA QUESTÃO DA AMBULATORIEDADE DAS OBRIGAÇÕES CONDOMINIAIS
 
Para melhor enquadramento da problemática em análise é essencial analisarmos e percebermos uma questão que vinha sendo trabalhada pela doutrina e jurisprudência e que pretendia responder à questão de saber, se as obrigações relacionadas com os encargos de condomínio, se transmitem ou não ao novo titular do direito real. Neste sentido, para tentarmos analisar esta alteração legislativa torna-se necessário abordar a questão da ambulatoriedade das obrigações condominiais, no que concerne aos encargos, nomeadamente aferir se estas obrigações se transmitem, ou não, para o novo titular do direito real. 
 
Diga-se que as obrigações serão ambulatórias quando se transmitem com o direito real, passando a onerar o seu titular. Ora, no passado discutia-se, se em caso de transmissão do direito de propriedade, a obrigação de pagamento era sempre ambulatória, ou não. Uma parte da doutrina defende que se trata de obrigações reais ou propter rem (4) e em consonância, a obrigação acompanha sempre o direito real. De acordo com esta orientação, o condómino que adquirisse o direito de propriedade seria responsável pelo pagamento não só dos encargos que se vencessem após a sua aquisição, mas também por aqueles que se tenham vencido antes e que não se encontrassem ainda liquidados. 
 
Para José Alberto Vieira, a fonte da obrigação propter rem é o direito real, pelo que havendo transmissão do direito real, a obrigação propter rem irá incidir sobre o novo titular. Neste sentido, “a transmissão do direito real exonera o transmitente do dever de prestar, fazendo-o recair no novo adquirente. E isto, mesmo em relação a dívidas vencidas” (5). Também Alessandro Natucci (6) defende o carácter ambulatório das obrigações reais. Este autor defende a obrigação propter rem é uma obrigação do proprietário, ou do titular de outro direito real ou até apenas do possuidor, transmitindo a quem vier a ocupar essa posição jurídica. 
 
A outra parte da doutrina que julgamos ser maioritária, encabeçada por Henrique Mesquita, defende que se deve avaliar cada situação, em concreto (7): - As obrigações de facere (8), “que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa (9) “serão ambulatórias, transmitindo-se por isso para o novo titular do direito real. Tal como refere Henrique Mesquita é o caso do usufrutuário que vendeu o seu direito de usufruto quando o edifício necessitava de reparações ordinárias indispensáveis para a sua conservação (art. 1472º do CC). Aqui o adquirente tem de realizar as obras porque a “obrigação resulta directa e imediatamente, da aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa objectivamente se encontra” (10); - As obrigações de dare, isto é, as obrigações cuja prestação consiste na entrega de uma coisa, serão não ambulatórias, sendo devidas pelo titular do direito real, no momento em que surgissem (11). 
 
É o caso do condómino que suporta mensalmente o pagamento da quota de condomínio tendo em vista a conservação e a fruição das partes comuns. Henrique Mesquita (12) refere que se estivermos perante prestações em atraso, relativas a despesas normais não será justo fazê-las recair sobre o adquirente da fracção porque o adquirente não dispõe de elementos objectivos que relevem a existência de dívidas (13) e também porque estamos perante uma contrapartida de um uso ou fruição das partes comuns do edifício de que o alienante beneficiou, pelo que deverá ser este a suportar o seu pagamento. No entanto, aqui existe uma excepção dado que seriam ambulatórias as obrigações de dare “que se encontrem objectivados na coisa sobre o que o direito real incide”,(14) sendo aqui o adquirente o responsável pelo pagamento. 
 
Adoptando um exemplo de Henrique Mesquita, se estivermos perante uma reparação de um telhado danificado numa tempestade da qual o alienante não irá beneficiar deverá ser o adquirente a suportar o seu pagamento (15). Na verdade, se o administrador de condomínio contrata um empreiteiro para reparar o telhado, mas antes de ser efectuado o pagamento, um dos condóminos vende a sua fracção, a obrigação propter rem já havia nascido antes da venda. No entanto, esta obrigação deve transmitir-se para o novo proprietário, porquanto o alienante não terá nenhum benefício com a mesma, o mesmo não acontecendo com o novo proprietário que gozará da obra e por isso mesmo, deverá suportar o seu custo, tanto mais que o adquirente objectivamente dispunha de elementos para conhecer a despesa que existia. 
 
Do ponto de vista jurisprudencial existem acórdãos de sentido oposto, no que diz respeito à questão de saber quem é o responsável pelo pagamento das dívidas de condomínio: o alienante ou o adquirente. Tal como consta do Acórdão do TRP de 16-12-1997, que tem como relator Manuel Domingues Fernandes referente ao processo n.º 9720870, existem duas correntes opostas (16): “- A primeira tem entendido que, apesar de se tratar de típicas obrigações propter rem, não têm uma das suas características definidoras, que é a ambulatoriedade. Comportam as obrigações que decorrem do uso normal do bem, em que o pagamento do condomínio é a contrapartida disso, de forma a fazer face às despesas com a limpeza das partes comuns, manutenção geral e custos de administração. O mesmo não sucede com as obrigações que implicam melhorias, alterações ou reparações, em que é o novo proprietário a tirar proveito delas, mesmo tendo sido o anterior proprietário a deliberar e aprovar as mesmas em assembleia de condóminos;- A segunda, por seu turno, entende que toda e qualquer obrigação propter rem tem como característica a ambulatoriedade. É essa, até, a sua principal característica, a par da sua titularidade ser definida pela titularidade do direito real.” 
 
No âmbito da primeira corrente jurisprudencial, que é largamente dominante, podemos citar o STJ referente ao Proc 10076/03.3TVLSB.L1.S1 de 08- 06-2017 (17) que no fundo adopta a posição de Henrique Mesquita: “As obrigações propter rem quando obrigações de dare devem considerar-se não ambulatórias considerando que a alienação do direito real não impossibilita o alienante de realizar a prestação. As prestações de dare previstas nos artigos 1411º/1 e 1424º/1 do CC destinadas a um fundo de maneio, na base de uma mera estimativa, tendo em vista a futura reparação da fachada de imóvel (benfeitoria necessária) constituído em propriedade horizontal que se vencerem depois da venda do imóvel, não são, em princípio, da responsabilidade do alienante. Podem, no entanto, verificar-se situações em que não deva considerar-se o subadquirente obrigado ao pagamento das prestações vencidas após a venda, considerando o montante do valor a pagar, o prazo de pagamento e a ausência de conhecimento relativamente à deliberação, anterior à aquisição da fracção pelo novo consorte, que fixou o montante a pagar para fundo de maneio, salvo sempre nova deliberação da assembleia que o vincule.” 
 
Também o Ac. do TRP referente ao Proc. 2332/20.2T8PNF.P1, de 09/06/2021 (18) relaciona a obrigação de pagamento com a fruição: “No caso de prestações destinadas a custear as despesas do edifício constituído em propriedade horizontal, em caso de alienação de fracção, as mesmas representam uma contrapartida de um uso ou fruição (das partes comuns do edifício), devendo ser pagas pelo alienante ou pelo adquirente que delas usufrua efectivamente, independentemente da data da sua aprovação em assembleia de condóminos”. 
 
Por sua vez, se estivermos perante despesas relativas à conservação das partes comuns, o TRP (19) entende que deveremos efectuar uma análise casuística, em consonância com a doutrina de Henrique Mesquita. Se estivermos perante reparações que não se encontram ainda executadas ou não concluídas, os respectivos encargos, deverão ser suportados pelo adquirente, pois este tinha ao seu dispor objectivamente, não só os elementos que lhe permitiam conhecer a existência da obrigação acrescendo que será ele que irá retirar o proveito das mesmas. Se as reparações já estiverem concluídas, como o adquirente não dispõe de elementos objectivos que indiciem a existência da obrigação o encargo deverá ser suportado pelo alienante. 
 
O mesmo sucede com o Ac. do TRL referente ao Proc. nº 14836/14.1T8LSB.L1 de 14-09-2017 (20): “A obrigação de pagamento das despesas de condomínio, correspondentes a prestações ordinárias e de vencimento periódico, destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar o normal funcionamento do condomínio, não deve, em regra, transmitir-se para o novo adquirente de determinada fracção, não sendo justo onerar o novo proprietário com uma despesa que teve a sua origem na utilização de um bem – durante um período de tempo diverso – por outra pessoa (o anterior proprietário), que foi quem fruiu da fracção durante o período que originou as despesas em causa, pelo que deve ser dele a responsabilidade pelo seu pagamento (21).” 
 
No mesmo sentido, o Acórdão do TRE a referente ao Processo 8632/15.6T8STB--A.E1, de 07-06-2018 (22) decidiu que “Tratando-se de prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio, seria injusto fazê-las recair sobre o adquirente da fracção”. 
 
Igualmente representativo é o Ac. do TRL referente ao Proc. 364/2006-6 em que foi Relator Pereira Rodrigues, de 02-02-2006 (23), em que se refere que: “Tem entendido a doutrina Henrique Mesquita in “A Propriedade Horizontal no Código Civil Português”, RDES, XXIII, 130 e jurisprudência Ac. da RL de 14.12.2004, in Cj, 2004, V, 117 e ss. que esta obrigação de contribuir para estas despesas das partes comuns é uma típica obrigação propter rem. Este tipo de obrigação define-se como “aquela cujo sujeito passivo (o devedor) é determinado não pessoalmente (“intuitu personae”), mas realmente, isto é, determinado por ser titular de um determinado direito real sobre a coisa ”Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, Reprint, 366-367. 
 
A obrigação de contribuir para as despesas, devidas por obras de conservação e fruição das partes comuns do edifício em PH é, assim, uma obrigação que recai sobre aquele que for titular da facção integrada no condomínio no momento em que haja lugar ao pagamento da parte do preço que caiba efectuar para a realização das aludidas obras. Poderá suceder, entre outras hipóteses que não interessa considerar, que entre a deliberação de realizar as obras e a conclusão da respectiva empreitada, mas antes de determinado condómino pagar a parte que lhe compete, proceda este condómino à transmissão da sua fracção. 
 
Se assim suceder, e salvo acordo em contrário entre vendedor e comprador ou compromisso do vendedor, será o novo condómino o responsável pela liquidação da parte do preço imputado à fracção de que é titular. Isto porque se considera que esta obrigação “propter rem”, tem como característica a “ambulatoriedade”, no sentido de que a transmissão do direito real de cuja natureza a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular. E este entendimento é o que parece mais razoável em face de quem tira proveito do gozo do bem. Assim, no que concerne ao alienante, não se justifica que ele tenha de contribuir para uma despesa de que nenhum proveito lhe poderá advir, uma vez que deixou de usufruir do gozo do prédio. Porém, já parece inteiramente justificável que o adquirente se sujeite ao pagamento de uma despesa de que ele irá de futuro ter benefício. 
 
Abra-se um parêntesis para referir, de acordo com a doutrina e jurisprudência acima aludidas, que deve considerar-se como não “ambulatória”, apesar de obrigação “propter rem”, a obrigação que recai sobre cada condómino de contribuir periodicamente, por regra mensalmente, com uma prestação pecuniária para as despesas do condomínio, por se tratar de prestações que são devidas como contrapartida da fruição das partes comuns, pelo que seria ilógico e infundado fazer recair sobre o adquirente da fracção o pagamento de prestações em atraso e da responsabilidade do alienante”. 
 
No âmbito da segunda corrente jurisprudencial, o Ac. do TRG referente ao Proc. 1521/20.4T8GMR-A.G1, em que foi relator Eduardo Azevedo, de 08/04/2021 (24) veio decidir que a obrigação de pagamento de obras de conservação do telhado e fachadas, já aprovadas à data da transmissão da fracção se transmitem ao novo proprietário não tendo ainda sido realizadas. Para fundamentar tal decisão invoca a fundamentação atinente à segunda corrente doutrinal: ”A resposta à questão colocada está longe de ser pacífica, mas, face ao exposto, perfilha-se a seguinte conclusão: no caso da alienação de frcações com dívidas ao condomínio, este, para reaver o seu crédito coercivamente deve, em princípio, intentar uma acção executiva contra o adquirente da fracção em questão, pois estamos perante uma típica obrigação propter rem e, por isso, ambulatória. Só assim se concretiza uma correta interpretação das normas jurídicas e se prevê o equilíbrio das posições de todos os interessados. Como salienta José Alberto C. Vieira, para quem a transmissão do direito real implica a transmissão da obrigação real “Se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o titular respectivo está investido no dever de a cumprir, mesmo que eventualmente haja adquirido o direito após o vencimento da mesma”. 
 
Ora, da análise realizada podemos afirmar que a orientação que foi adoptada maioritariamente pela doutrina e jurisprudência, correspondente ao pensamento de Henrique Mesquita, na qual se concede enfase à relação entre a obrigação de pagamento e a fruição. Sucede que esta relação entre o proveito e a responsabilidade do pagamento das despesas não foi acolhida pelo legislador, com a Lei 8/2022 de 10 de Janeiro. O legislador impõe agora a obrigação de pagamento a quem é proprietário da fracção no momento do vencimento da obrigação. Verifica-se que deixou de existir a clássica relação entre a obrigação de cumprimento e o gozo da coisa, o que não nos parece justo e coerente (25). 
 
A redcação constante do art. 1424-A, nº 3 e 4 do CC impõe que se o alienante já gozou a obra, mas a obrigação de pagamento só se venceu após a transmissão do direito de propriedade será o adquirente a suportar o seu pagamento. Se a alienação ocorrer depois do vencimento da obrigação será sempre quem aliena o direito de propriedade, o responsável pelo pagamento, mesmo que a obra ainda não tinha sido realizada, revertendo a favor de quem adquiriu (26). 
 
Foi assim afastada a análise casuística que vinha sendo realizada, por parte significativa da doutrina e da jurisprudência, como já se referiu. Por outro lado, como o art. 1424º/1 do CC não respondia à questão da ambulatoriedade, parece que o legislador pretendeu extinguir a controvérsia existente. De realçar que, de qualquer forma, fica de ora em diante fixado legislativamente quem é o responsável pelo pagamento da dívida ao condomínio, evitando-se deste modo, a análise casuística que poderia ser potenciadora de decisões judiciais contraditórias, ou aparentemente contraditórias, o que não deixa de ser positivo tendo em vista a certeza e a segurança na aplicação do direito. Diga-se que a questão de saber quem é que gozava da coisa e por tal motivo seria o responsável pelo pagamento, nem sempre era de fácil resposta (27).

Notas:

3 Neste sentido, Margarida Costa Andrade na sua brilhante exposição de 4 de maio de 2022, efectuada online, denominada “Alterações ao regime da propriedade horizontal – Lei/2022 de 10 de janeiro” acedida em 5 de setembro de 2022 em https://www.youtube.com/watch?v=prBpoywiLmY 
4 Refere José Alberto Vieira, a propósito de conceito situação jurídica propter rem que nelas o sujeito passivo da obrigação surge determinado pela titularidade do direito real. Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 103. 
5 José Alberto C. Vieira Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 109. 
6 Alessandro Natucci La Tipicitá dei Diritti Reali, 2 Vols, Pádua, Cedam, 1982 e 1985, pag. 119, citado por Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, Parede, 3ª edição revista e aumentada, 2013, pág. 23. 
7 Luis A. Carvalho Fernandes refere que aceita a solução proposta por Henrique Mesquita nesta matéria. Fernandes, Luís A. Carvalho, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 6ª Edição (atualizada e revista), 2009, pág 188. 
8 Antunes Varela, a propósito da prestação de coisa distingue as obrigações de dare, facere e non facere:” As duas últimas (facere e non facere) correspondem às prestações de facto (positivas e negativas); as primeiras, à actual prestação de coisa”. Antunes Varela, João de Matos, “Das Obrigações em Geral, Vol I, Coimbra Editora, Coimbra, 10º Edição, 2005, pág 87. 
9 Tal como refere Rui Pinto Duarte, as obrigações serão ambulatórias quando se transmitem com o direito real, Pinto Duarte, Rui, Curso de Direitos Reais, Principia, Parede, 3ª edição revista e aumentada, 2013, pág. 23 e 23.
10 Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, reimpressão, pág.s 330 a 332. 
11 Refere a este propósito Henrique Mesquita que “aquilo que na lei se estabelece (…) não é que os condóminos são obrigados a conservar as partes comuns do edifício (hipótese em que se trataria de uma obrigação de facere), mas sim que devem contribuir, proporcionalmente ao valor das respetivas frações autónomas para as despesas necessárias à prática de qualquer ato conservatório (obrigação de dare)”. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, reimpressão, pág.s 319 a 320. Também Antunes Varela e Pires de Lima referem que “Devedor, neste caso é quem for titular da compropriedade na altura em que a despesa se torna necessária e enquanto a necessidade estiver por satisfazer. Uma vez, porém, que a obra seja efetuada, por iniciativa de qualquer dos consortes, ou que os consortes tomem uma deliberação nesse sentido, a obrigação fixa-se na pessoa daqueles que são comproprietários nesse momento (…). Mesmo que algum dos consortes transmita entretanto a sua quota a estranhos, antes da haver cumprido a sua obrigação de comparticipação, esta já não se transmite ao adquirente da quota (Varela, Antunes, de Lima, Pires, Código Civil Anotado, Vol III, 2ª edição revista e atualizada (reimpressão), 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 385). 
12 Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, reimpressão, pág. 321 e 322. 
13 No mesmo sentido Sandra Passinhas - A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina Coimbra, 2ª Edição, 2009, pag. 319 e ss. 
14 Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, reimpressão, pág. 336. 
15 A este propósito refere Henrique Mesquita que “o mais razoável, porém, face aos princípios que regem os direitos reais e ponderados os interesses em jogo, é, também neste caso, fazer recair a dívida sobre o adquirente da fracção autónoma. Começaremos por observar que o titular de qualquer direito real está sujeito às vinculações e gravames decorrentes do respectivo estatuto e, pelo que toca à hipótese de que nos ocupamos, este estatuto diz que cada condómino deve contribuir, em proporção do valor da respectiva fracção autónoma, para as despesas de conservação das partes comuns do edifício. Ora, carecendo o telhado do prédio, à data da transmissão da fracção autónoma, de obras de reparação, o adquirente não podia ignorar o encargo a que ficava sujeito. A transmissão da obrigação, por conseguinte, não o colhe de surpresa. É um efeito jurídico com que ele devia contar, pois decorre directa e imediatamente da aplicação da lei às condições objectivas ou materiais em que o edifício se encontrava à data da alienação. Por outro lado, o mais natural é que, na fixação contratual do preço da fracção alienada, tenha sido tomada em linha de conta a circunstância de uma parte comum do edifício carecer de reparações que iriam originar um encargo para o adquirente, na parte proporcional à sua participação no condomínio. Nenhuma razão se divisa, portanto, para que a obrigação propter rem não vincule o adquirente da fracção autónoma e para que o alienante não fique dela liberto” Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1997, reimpressão, pág.s. 319, e 342. Rui Pinto Duarte defende que os critérios de Henrique Mesquita “podem ser tomados como indiciários, Assim são tendencialmente ambulatórias as obrigações cujo cumprimento implique a titularidade do direito real, como é o caso, por exemplo, da obrigação de um condómino de destruir obras ilícitas; são tendencialmente não ambulatórias aquelas cujo cumprimento não implique essa titularidade, como é o caso da obrigação dos condóminos de contribuírem para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum”. Pinto Duarte, Rui, Curso de Direitos Reais, Principia, Parede, 3ª edição revista e aumentada, 2013, pág. 24, 25. Ac. da Relação do Porto de 16-12-1997, que tem como relator Manuel Domingues Fernandes referente ao processo n.º 9720870, acedido em www.dgsi.pt em 15/07/2022 
17 Ac. do STJ referente ao Proc 10076/03.3TVLSB.L1.S1 em que foi Relator Salazar Casanova de 08-06-2017, acedido em www.dgsi.pt em 11/07/2022. Veja-se também Ac. do STJ, referente ao Proc. 07B577, em que foi relator Pereira da Silva de 17-04-2007, acedido em www.dgsi.pt em 27/07/2022. 
18 Ac. do TRP referente ao Proc. 2332/20.2T8PNF.P1, em que foi relator Fernanda Almeida de 09/06/2021, acedido em www.dgsi.pt em 15/07/2022. 
19 Ac. do TRP referente ao Proc. 99/18.3T80VR-A.P1 em que foi relator Manuel Domingues Fernandes de 09-03-2020 acedido em www.dgsi.pt , em 25/07/2022, de cujo sumário consta: “I - A obrigação de pagamento das despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal constitui uma típica obrigação propter rem. II- Todavia, a sua natureza ambulatória ou não ambulatória nem sempre se apresenta com a mesma linearidade.III- Assim, quando se trate de despesas relativas à conservação das partes comuns (conservação das coberturas fachadas etc.) do edifício, importa distinguir se as reparações estavam ou não executadas e concluídas à data da alienação da fracção. IV- No primeiro caso (reparações ainda não executadas ou não concluídas) o encargo das respectivas despesas, na proporção respectiva, deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo adquirente, pois que, dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, além de que será ele a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação. V- No segundo caso (reparações já executadas e concluídas) o encargo deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo alienante, pois que, o adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que indiciem ou denunciem a existência da obrigação.” 
20 Ac. do TRL referente ao Proc. n.º 14836/14.1T8LSB.L1 em que foi Relator Carlos Marinho de 14-092017 acedido em www.dgsi.pt em 22/07/2022. 
21 Veja-se também no mesmo sentido; Ac. do TRLa referente ao Proc. 20315/19.3T8SNT-B.L1-2 em que foi relator Carlos Castelo Branco de 09/09/2021, acedido em www.dgsi.pt em 25/07/2022; Ac. do TRL referente ao Proc. 6642/17.8T8FNC.L1-8 em que foi relator Tereza Prazeres Pais, de 29/11/2018, acedido em www.dgsi.pt em 25/07/2022; Ac. do TRL referente ao Proc. 17191/07.2YYLSB-B.L1-6, em foi relator Anabela Calafate, de 13-03-2014, acedido em www.dgsi.pt em 25/07/2022. 
22 Ac. do TRE referente ao Processo 8632/15.6T8STB-A.E1 em que foi Relatora Conceição Ferreira de 07-06-2018 acedido em www.dgsi.pt em 22/07/2022. 
23 Acórdão do TRL referente ao Proc. 364/2006-6 em que foi Relator Pereira Rodrigues, de 02-02-2006, acedido em www.dgsi.pt em 22/07/2022.
24 Ac. do TRG referente ao Proc. 1521/20.4T8GMR-A.G1, em que foi relator Eduardo Azevedo, de 08/04/2021, acedido em www.dgsi.pt em 27/07/2022. 
25 Veja-se Margarida Costa Andrade na sua exposição de 4 de maio de 2022, efectuada online, denominada “Alterações ao regime da propriedade horizontal – Lei 8/2022 de 10 de janeiro” acedida em 5 de setembro de 2022 em https:// www.youtube.com/watch?v=prBpoywiLmY 
26 Concordamos com a opinião expressada por Margarida Costa Andrade na exposição de 4 de maio de 2022, efectuada online, denominada “Alterações ao regime da propriedade horizontal – Lei 8/2022 de 10 de janeiro” acedida em 5 de setembro de 2022 em https://www.youtube.com/watch?v=prBpoywiLmY
27 Sobre esta temática veja-se, Miguel Assis Raimundo - Responsabilidade do adquirente de fracção autónoma por prestações de condomínio já vencidas. Cadernos de Direito Privado n.º 26, abril/junho 2009;

Alterações ao regime da PH - art. 1424º e 1424-A - I


Atenta a importância do tema, sou de replicar o artigo «Alterações ao regime da propriedade horizontal, no âmbito dos encargos de condomínio, decorrentes da Lei 8/2022 - Análise de algumas questões, da autoria de Miguel Dinis Pestana Serra - miguelserra@ipcb.pt; Escola Superior de Gestão de Idanha-a-Nova do Instituto Politécnico de Castelo Branco e Instituto Superior de Contabilidade de Administração do Instituto Politécnico de Coimbra, Advogado. Investigador do Instituto Jurídico Portucalense e do Coimbra Business School - Research Centre (CBS-RC).
 
Resumo

Aborda-se no presente algumas questões que decorrem das alterações ao regime da propriedade horizontal introduzidas pela Lei 8/22 de 10 de Janeiro, circunscrevendo-se este artigo à análise de três questões essenciais: em primeiro lugar, procura-se determinar a quem compete o pagamento ao condomínio das despesas que sejam devidas. 
 
Será analisada a lei, a doutrina e jurisprudência anteriores, com enfase na questão da ambulatoriedade das obrigações condominiais, efectuando um confronto com a redacção actual da lei. Em segundo lugar, aborda-se a novidade constante do art. 1424º–A do CC, nomeadamente a obrigatoriedade de a escritura ou o documento particular autenticado de alineação da fracção ter de ser instruída com uma declaração emitida pelo administrador de condomínio da qual constem os elementos previsto no nº 1 da citada norma legal. Por fim, interpreta-se o art. 6º/5 do DL 268/94 de 25 de Outubro com a redacção que lhe foi dada pela Lei 8/2022 referente ao dever do administrador promover a cobrança judicial dos créditos do condomínio, fixando-lhe para tal, um prazo de 90 dias a partir do primeiro incumprimento.

1 INTRODUÇÃO 
 
No âmbito das alterações ao regime da PH operadas através da Lei 8/2022 de 10 de Janeiro foram alterados diversos artigos do CC, tendo mesmo sido acrescentado um novo artigo (art. 1424º-A). Foi também revisto o DL 268/94 de 25 de Outubro que regulamenta a PH (de forma significativa a ponto de o diploma ter sido republicado), assim como o art. 54º do Código do Notariado. 
 
Será oportuno analisar algumas das alterações operadas no âmbito dos encargos de condomínio, dado que a redacção conferida pelo legislador aos art. 1424º e 1424º-A do CC, e art. 6º, nº 5 do DL 268/94 suscita dúvidas interpretativas, e por outro lado pretende-se investigar se as soluções adoptadas serão as mais adequadas. Desta forma, procura-se responder a quem compete o pagamento ao condomínio das despesas que sejam devidas, face à lei actual (Lei 8/2022 de 10 de Janeiro). 
 
No âmbito da investigação efectuada analisa-se a lei, a doutrina e jurisprudência anteriores, com enfase na questão da ambulatoriedade das obrigações condominiais, confrontando-as com a redacção actual da lei. Na verdade, embora a lei estabelecesse que era o condómino o responsável pelo pagamento das despesas de condomínio, não consignava quem tinha a responsabilidade de pagar as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum, em caso de transmissão da propriedade da fracção: o anterior ou o novo proprietário? 
 
A resposta a esta questão tinha sido construída pela doutrina e jurisprudência, tendo agora sido definida pela lei, solução diversa da adotpada pela maioria da doutrina e jurisprudência. 
 
Posteriormente, aborda-se a novidade constante do art. 1424º-A, nº 1 e 2 do CC, nomeadamente a obrigatoriedade de a escritura ou o documento particular autenticado de alineação da fracção, ter de ser instruída com uma declaração emitida pelo administrador de condomínio da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fracção, com especificação da sua natureza, respectivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respectiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento. 
 
Procura-se perceber a razão de ser do nascimento desta obrigatoriedade e quais os seus aspectos positivos e negativos. 
 
Por fim, analisa-se o art. 6º/5 do DL 268/94 com a redacção que lhe foi dada pela Lei 8/2022 que obriga o administrador a cobrar os créditos do condomínio, estabelecendo um prazo de 90 dias a partir do primeiro incumprimento, para o efeito, o que também constitui uma novidade, tendo sido conferida a esta norma legal uma redacção que também suscita algumas dúvidas, como se verá.

2. A QUEM COMPETE O PAGAMENTO AO CONDOMÍNIO DAS DESPESAS QUE SEJAM DEVIDAS – ART. 1424º E 1424º-A, N.ºS 3 E 4 DO CC
 
Com a Lei 8/2022 passou a constar do art. 1424º do CC que “salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das fracções no momento das respectivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas fracções”. 
 
Resulta da leitura deste artigo em singelo, que o legislador veio agora estabelecer que o condómino que seja proprietário no momento das deliberações é quem tem a responsabilidade de pagar as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum. Isto parece significar, que o legislador neste artigo pretendeu estabelecer temporalmente quem é o responsável pelo pagamento das despesas ao condomínio. 
 
Neste sentido, resulta que, por exemplo, tendo sido deliberado o pagamento das quotas de condomínio no valor de X de Janeiro a Dezembro, será responsável pelo pagamento das mesmas quem era proprietário no momento da deliberação. Mas se a fracção for alienada em Março será o anterior proprietário, o responsável pelo seu pagamento até Dezembro? A verdade é que o legislador introduziu o novo art.º 1424º-A do CC, que nos seus nº 3 e 4 define quem é o responsável pelo pagamento ao condomínio das despesas devidas quando ocorra transmissão da fracção e a solução que o legislador aí fez constar, contradiz o exemplo por nós anteriormente invocado e aparentemente a redacção do art. 1424º/1 do CC. 
 
O nº 4 do art. 1424º-A do CC vem agora estabelecer que “Os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fracção, são da responsabilidade do novo proprietário.” Deste modo é o proprietário da fracção, que o seja no momento em que se vençam os encargos ao condomínio, o responsável pelo seu pagamento. Se existe uma transmissão do direito de propriedade em Março, as quotas que se vencerem daí em diante são da responsabilidade do novo proprietário. 
 
Por sua vez, a primeira parte do nº 3 do art. 1424º-A do CC consigna em consonância com o nº 4 do mesmo artigo que “a responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas (…)”. O art. 1424º do CC na redacção anterior à Lei 8/2022 estabelecia uma regra, segunda a qual, “as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções”. 
 
Diga-se que, a questão de saber quem tem obrigação de pagar o encargo ao condomínio, anteriormente deliberado, mas em que só mais tarde surge a obrigação de pagamento e existindo transmissão do direito de propriedade antes da obrigação nascer, não era propriamente respondida por este artigo - nem objetivamente por qualquer outro, como já se referiu, tendo a resposta a esta questão sido construída pela doutrina e jurisprudência. 
 
Não se percebe a razão de ser da sua alteração, tanto mais que parecem incompatíveis as redacções dos art. 1424º, nº 1 e 1424º-A, nº 3 do CC, senão vejamos: por um lado, o art. 1424º/1 estabelece que, salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das fracções no momento das respectivas deliberações. 
 
Ora, se se está agora, a consignar que responsável é o proprietário no momento da deliberação é porque está-se, desde já, a equacionar uma possível futura alienação do direito. Sublinhe-se uma vez mais, que a redacção anterior do art. 1424º nº 1 do CC já estabelecia que devedor é o condómino, mas não respondia à questão de saber quem era o responsável em caso de transmissão do direito de propriedade! 
 
Mas por outro lado, o novo art. 1424º-A do CC vem estabelecer que a responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas (nº 3) e os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fracção, são da responsabilidade do novo proprietário (nº 4).

Não parece, pois, que a redacção apresentada nos art. 1424º, nº 1 do CC, tenha sido a mais feliz, dado que gera dúvidas interpretativas, que poderão fomentar a litigiosidade dentro e fora dos tribunais. Nem se diga, que o nº 1 do art. 1424º estabelece a regra, sendo que o nº 3 e 4 do art. 1424º-A, contêm uma excepção. É que o art. 1424º, nº 1 e 1424-A nº 3 e 4 do CC tratam agora da mesma questão de saber quem é que é responsável pelo pagamento das dívidas ao condomínio, particularmente tendo havido transmissão do direito de propriedade, sendo difícil a sua compatibilização. 
 
Salvo melhor opinião contrária, teria sido melhor que não tivessem ocorrido alterações à redacção do artigo 1424º, nº 1 do CC.

7/12/2023

Acção Executiva - Honorários mandatário III

 

Sobre a especifica exequibilidade dos honorários a mandatário debruçou-se, em particular, o Acórdão do TRP de 08-09-2020 (Pº 25411/18.1T8PRT-A.P1, concluindo que, “os honorários devidos a advogado e mais despesas decorrentes da interposição de execução não são despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum do condomínio, tal como definidas no art. 6º, nº 1, do citado DL 268/94, não podendo, por isso, mesmo que tenham sido aprovados em assembleia de condóminos e constem da respectiva acta, ser incluídos na execução movida contra o proprietário que deixe de pagar a sua quota-parte no prazo fixado”.

Conforme se lê na fundamentação deste aresto: “Nesta sede a cobrança de tais valores por via executiva não encontra apoio no já citado art. 6º, n.º 1, do DL n.º 268/94. Não há dúvida que quando o condomínio celebra com um advogado um contrato de mandato forense para efeitos de interposição de execução destinada à cobrança de prestações não pagas ou, ainda, quando, no âmbito dessa execução, tem que suportar despesas inerentes a tal processo, está a agir no interesse colectivo dos condóminos. Todavia daí não resulta que esteja em causa a prestação de «serviços de interesse comum», na acepção que nos parece ter sido querida pelo legislador ao consagrar a previsão do art. 6º, nº 1, do citado DL 268/94, que foi a de relacionar tais despesas com as despesas inerentes ao funcionamento intrínseco do condomínio, salvaguardando a operacionalidade e a rapidez na cobrança de dívidas do condómino que, exclusivamente, se relacionam, de forma directa e imediata, com as obrigações dos condóminos, em relação às partes comuns, à sua conservação e fruição. Serão serviços de interesse comum aqueles serviços que se mostram colocados à disposição de todos os condóminos e que eles poderão ou não usar conforme lhes aprouver, como sucede, por exemplo, com os serviços relacionados com equipamentos comuns, tais como ascensores, caldeiras de aquecimento, jardins colectivos, piscinas, antenas colectivas, serviços de segurança e vigilância do imóvel, etc. Não é o que se passa com o serviço do advogado, consistente no patrocínio forense no âmbito da execução instaurada para cobrança coerciva de quotas ou outras prestações devidas, ou, ainda, com o valor das despesas suportadas no âmbito de tal execução, pois que nenhum dos condóminos pode usufruir ou usar de tais serviços. (…)”.

Em moldes algo diversos, considerou-se no Acórdão do TRG de 06-02-2020 (Pº 261/18.9T8AVV-B.G1) que, “relativamente aos honorários de advogado - questão sobre a qual também se tem dividido a jurisprudência (acórdão TRP de 18/02/2019; no sentido defendido pelo apelante, o acórdão do TRL de 5/06/2001) - valem as actas da reunião da assembleia de condóminos como título executivo (desde, que claro está, no título se determine desde logo o montante em causa).

Na verdade, implicando o incumprimento do condómino relapso o recurso a juízo para dele se obter coercivamente a satisfação das contribuições devidas (da sua quota-parte concernente a assegurar o funcionamento das partes comuns, conservação e fruição destas), o pagamento dos honorários devidos ao mandatário que patrocine a causa constituirá uma despesa necessária ao pagamento de serviço de interesse comum (acórdão do TRL de 5/06/2001.

Não se argumente que sendo a cobrança das contribuições do interesse do condomínio, o serviço prestado pelo mandatário em vista da sua cobrança coerciva não se inclui no âmbito dos serviços de interesse comum, postos à disposição dos condóminos, por o serviço do mandatário não ser serviço que qualquer dos condóminos possa usar (não estar na disposição de cada um deles), não sendo eles, executados, beneficiários dos serviços prestados pelo advogado - serviços de interesse comum seriam, assim, tão só os aludidos no art. 1424- do CC: serviços postos à disposição de todos os condóminos, que eles poderão usar ou não usar, como, por exemplo, os serviços relacionados com equipamentos comuns, tais como ascensores, caldeiras de aquecimento, jardins colectivos, piscinas, antenas colectivas, serviços de segurança e vigilância do imóvel (Ac. TRC de 7/02/2017 e Ac. TRP de 18/02/2019).

Não cremos que esse seja a solução mais conforme à hermenêutica do preceito. O que releva, estamos em crer, para determinar se o serviço é de interesse comum (para efeitos do nº 1 do art. 65 do DL 268/94) não é estar o serviço na disposição directa de cada um dos condóminos (na possibilidade de o utilizar ou não), antes tratar-se de serviço prestado para alcançar o interesse comum. Atente-se no serviço de limpeza dos espaços comuns: tal serviço não está na disponibilidade directa de fruição por qualquer condómino (nenhum condómino os poderá usar na sua fracção); é serviço de que frui (e beneficia) na medida em que goza (ou pode gozar/fruir) das partes comuns, onde o mesmo é prestado. Do mesmo modo, os serviços prestados pelo mandatário ao condomínio em causa executiva destinada a haver coercivamente de qualquer condómino a quota-parte das contribuições devidas ou das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns, serão fruídos/gozados pelos condóminos (todos) na utilização/fruição/gozo das partes comuns, já que os valores cobrados na execução se destinam a suportar os encargos com aquelas.

Conclui-se, face ao exposto, que o pagamento dos honorários devidos ao mandatário pela demanda em juízo dos condóminos relapsos, com vista a cobrar coercivamente destes a sua quota-parte nas contribuições e despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns, constitui despesa necessária ao pagamento de serviços de interesse comum, compreendida na previsão normativa no nº 1 do art. 6 do DL 268/94 - e por isso que as actas da assembleia de condóminos que deliberem sobre o montante respectivo gozam de executoriedade”.

Independentemente da orientação que se perfilhasse, afigura-se-nos, contudo, que os contornos do problema se alteraram, sensivelmente, na decorrência da entrada em vigor da Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro. Como se sabe, esta Lei veio rever o regime da PH, alterando, nomeadamente, o CC e o DL n.º 268/94.

De entre as alterações introduzidas pela Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro, ao DL 268/94, consta a do nº 3 do art. 6º desse diploma, onde se passou a dispôr que: “3- Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação nele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”.

Ora, pode considerar-se que o aludido art. 6º, nº 3, do DL 268/94, na redacção dada pela Lei nº 8/2022, tem natureza interpretativa. Conforme refere A. Santos Justo (Introdução ao estudo de direito, 12ª Edição, Almedina, 2021, p. 302), “a interpretação autêntica dimana duma fonte não hierarquicamente inferior à que interpreta. Ocorre através duma lei (dita interpretativa) que se integra na lei interpretada. Trata-se, portanto, da explicitação legislativa duma lei duvidosa, carecida de esclarecimento, que tem a força vinculativa da lei … Além do órgão legislativo que elaborou a lei interpretada (auto-interpretação), a interpretação autêntica pode ser igualmente feita por outro órgão legislativo (hetero-interpretação)”.

Dispõe o nº 1 do art. 13º do CC que a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença transitada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.

Conforme refere Pedro Romano Martinez (Introdução ao Estudo do Direito; AAFDL, 2021, pp. 222 e 223) “a regra interpretativa contrapõe-se à inovadora, porquanto, na primeira, não se prescrevem soluções novas, atende-se, explicando, à regulamentação existente. As regras interpretativas fixam o sentido de outras regras jurídicas – p. ex., art. 9º CC (…). cA lei interpretativa, ao determinar o sentido da lei interpretada, integra-se nesta e o sentido agora fixado vincula o aplicador desde o início de vigência da lei interpretada”.
 
Refere o mesmo Autor (ob. cit., p. 391) que, “[n]o caso de lei interpretativa prescreve-se a retroactividade (artigo 13.º, n.º 1, CC). A lei interpretativa é retroactiva, pois actua sobre factos ocorridos na vigência da lei interpretada e que antecederam a entrada em vigor daquela, com salvaguarda do caso julgado e de efeitos já produzidos.

A retroactividade da lei interpretativa resulta de se ter estabelecido um novo entendimento, que se pretende integrar na lei interpretada (art. 13º, nº 1, 1ª parte, CC), ficando, porém, ressalvados os efeitos já produzidos em quatro hipóteses: 1) cumprimento da obrigação; 2) sentença transitada em julgado; 3) transacção; 4) actos análogos. (…).”.

Ora, no caso, a nova regulação normativa do art. 6º, nº 3, do DL n.º 268/94, na redacção da Lei 8/2022, contemplou o entendimento de que, se consideram abrangidos pelo título executivo a que se reporta o nº 2 do mesmo artigo, os juros de mora, à taxa legal, da obrigação nele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.

A nova lei, na medida em que regulou da forma descrita, a problemática dos elementos que se consideram abrangidos pelo título executivo assente nas actas de deliberações da assembleia de condóminos, tem carácter interpretativo e não inovador.

Conforme se escreveu, neste mesmo sentido, no Ac. do TRP de 21-02-2022 (Pº 5404/09.0T2AGD-D.P1: “Julga-se, no entanto, que, tendo em conta a recente intervenção do legislador (que pode ser qualificada como uma verdadeira interpretação autêntica do legislador através da alteração introduzida no nº 3 do art. 6º pela Lei 8/2022 de 10 de Janeiro (…), deve passar a prevalecer esta interpretação que considera abrangida pela referida expressão as penas pecuniárias, devendo, assim, “considerar-se abrangidos pelo título executivo… as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio” – como esclarece agora a nova Lei”.

No caso, o embargado pugna pela interpretação extensiva do art. 6º do DL 268/94, dizendo que, “cabe no âmbito da expressão “contribuição devidas ao condómino”, as despesas de contencioso, mormente honorários de mandatário que patrocine o condomínio, com vista a obter a cobrança das comparticipações devidas, fazendo-as, assim, repercutir na esfera do condómino faltoso”.

Em face do referido, poderá entender-se que, por via da interpretação decorrente da publicação da Lei nº 8/2022, no título executivo poderão considerar-se contempladas as sanções pecuniárias que sejam aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.

Ora, ao invés do pugnado pelo recorrente, certo é que, não se alcança que os honorários que sejam devidos ao mandatário que patrocine o condomínio numa acção judicial para cobrança de contribuições devidas ao condomínio, se integrem no conceito de “sanções pecuniárias”, para efeito do nº 3 do aludido art. 6º do DL 268/94, expressão que se encontra em perfeita correlação com o sentido do art. 1434º, nº 1, do CC.

Conforme se salientou no Acórdão do TRP de 17-06-2021 (Pº 627/14.3TBVNG-B.P1), as penas pecuniárias são destinadas a compelir e pressionar os condóminos a cumprir “e, por isso, não visam imediatamente a satisfação de despesas, constituindo antes uma receita eventual do condomínio”.

Os honorários traduzem, por seu turno, o preço ou remuneração do serviço desempenhado por advogado ao seu cliente, não constituindo, por si só, qualquer sanção pecuniária.

De todo o modo, pode verificar-se que, em sede do Regulamento do Condomínio pode constar que: “A cobrança judicial das contribuições, ordinárias ou extraordinárias, importa para o condómino faltoso a obrigação de pagar, além do montante devido, dos respectivos juros de mora e da multa, todas as despesas judiciais e extrajudiciais despendidas para o efeito, nomeadamente custas dos tribunais, honorários de advogados e despesas administrativas”.

E, seguindo o sentido interpretativo consignado no art. 6º do DL 268/94, na redacção da Lei 8/2022, poder-se-ia dizer que os honorários de advogados se encontravam referenciados no Regulamento do Condomínio como “despesas judiciais e extrajudiciais” e que, de acordo com o mencionado, devessem ser incorporadas na obrigação de pagamento do condómino faltoso.

Todavia, o próprio Regulamento afasta a possibilidade de se conferir tal natureza a despesas ainda não despendidas, dado que, só as despesas judiciais e extrajudiciais efectivamente despendidas, podem determinar a actuação do comando ínsito no mencionado Regulamento.

Igual cuidado se pode denotar na competente acta onde conste que: “Foi ainda deliberado que, expirado o prazo concedido para pagamento, se proceda judicialmente contra os condóminos supra identificados que não tenham regularizado a sua situação perante o condomínio, cobrando-se para o efeito o montante em dívida a título de quotizações, dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos e da multa, todas as despesas judiciais e extrajudiciais despendidas para o efeito”.

Ora, o montante que seja indicado pelo administrador e que não se mostre ter sido despendido pelo mesmo, é uma despesa ainda não concretizada, sendo certo que, no requerimento executivo o mesmo apenas se pode reportar a um valor previsível de honorários a despender.

Por outro lado, nem do regulamento, nem da acta constará deliberado o montante que será mencionado no requerimento executivo como referente a honorários. Nesta factualidade, verifica-se, pois, inexistir título executivo que sustente a pretensão de pagamento da aludida quantia.

Acção Executiva - Honorários mandatário II


Por outro lado, nada se ganha com o multiplicar da litigância. No mais, o objectivo do legislador foi, outrossim, olvidar a que o condomínio percorresse todos os trâmites de uma acção declarativa de cada vez que um qualquer condómino não pagasse o devido. Deixar de forma este género de despesas significaria exactamente o contrário, pois que obrigaria o condomínio a intentar uma acção executiva e uma acção declarativa. De outra sorte, não deixar de fora estas despesas, isso sim, garante o fim pretendido pelo DL de 94: a eficácia da gestão do condomínio.

Aceitar o multiplicar de acções é desencorajar o condomínio de intentar qualquer acção contra os condóminos, atenta a circunstância de que, por norma, os valores das quotas condominiais são diminutos. Motivo pelo qual pugnamos pela interpretação extensiva do preceito do art. 6º: cabe no âmbito da expressão “contribuição devidas ao condómino”, as despesas de contencioso, mormente honorários de mandatário que patrocine o condomínio, com vista a obter a cobrança das comparticipações devidas, fazendo-as, assim, repercutir na esfera do condómino faltoso.

Ora, não abranger estas despesas no preceito do art. 6. traduz, no resultado, uma injustificada atomização dos meios processuais para exigir do condómino relapso o cumprimento de obrigações nuclearmente interligadas. Carreando consigo uma solução injusta, e, por isso, contrária à hermenêutica jurídica (nº 3 do art. 9º do CC).

Recorde-se, a título meramente ilustrativo que, no requerimento executivo, o administrador do condomínio pode consignar o seguinte: "Deverá, o executado, liquidar o capital e os juros vencidos e os vincendos até integral pagamento, bem como suportar as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de solicitador de execução e de advogado, acrescidos de IVA se a ele houver lugar, no valor previsível de € 1 000,00 (mil euros) (vide acta nº ...) e regulamento de condomínio, art. (...)”.

Há quem conclua sobre o montante relativo a honorários e despesas judiciais que o mesmo “não é devido por se considerar que não se encontra abrangido no título executivo”.

Vejamos:

A PH constitui uma forma especial de propriedade referente a edifícios constituídos por fracções autónomas e por partes comuns, em que cada condómino é proprietário de uma ou mais fracções e comproprietário das partes comuns (cfr. art. 1415º, 1420º, nº 1 e 1421º do CC).

Nos termos do art. 1430º, nº 1 do CC, a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos (1431º do CC) e a um administrador, e o citado art. 6º do DL 268/94, de 25 de Outubro, atribui a natureza de título executivo às actas de tais assembleias, relativamente aos créditos relativos a “contribuições devidas ao condomínio” ou a “quaisquer despesas necessárias à conservação ou fruição das partes comuns”.

O preceito remete o intérprete para o disposto no art. 1424º do CC, que tem por epígrafe “Encargos de conservação e fruição”, e que no seu nº 1 estabelece que “salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções”.

Da conjugação destes dois preceitos resulta, de forma clara, que a acta da assembleia de condóminos não constitui título quanto a todos e quaisquer créditos de que o condomínio seja titular, mas apenas no que respeita àqueles a que se reporta o art. 1424º, nº 1 do CC, ou seja, os que tenham que ver com o pagamento de despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum.

Neste âmbito tem sido debatida na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a acta da assembleia de condóminos constitui título executivo relativamente a créditos provenientes de penas pecuniárias aplicadas pelo condomínio nos termos previstos no art. 1434º, nº 1 do CC e relativamente a despesas judiciais, incluindo honorários de advogado suportadas pelo condomínio devido a acções judiciais em que litigue contra condóminos.

Sobre a problemática, em sentido afirmativo, considerando que tais rúbricas se mostram incluídas no conceito de “contribuição devida ao condomínio”, pronunciaram-se, entre outros, os seguintes acórdãos (elencados por ordem cronológica crescente): TRC de 05-06-2001, Pº 455/2001; TRL de 08-07-2007, Pº 9276/2007-7; TRP de 24-09-2013, Pº 7378/11.9YYPRT-A.P1; TRL de 20-02-2014, Pº 8801/09.8TBCSC-A.L1-2; TRP de 24-02-2015, Pº 6265/13.0YYPRT-A.P1; TRG de 22-10-2015, Pº 1538/12.2TBBRG-A.G1; TRC de 01-03-2016 (Pº 129/14.8TJCBR-A.C1; TRP de 17-05-2016, Pº 2059/14.4TBGDM-A.P1; TRG de 02-03-2017, Pº 2154/16.5T8VCT-A.G1,; TRL de 30-04-2019, Pº 286/18.4T8SNT.L1-7; TRG de 06-02-2020 (Pº 261/18.9T8AVV-B.G1; TRP de 21-02-2022, Pº 5404/09.0T2AGD-D.P1; STJ de 05-04-2022, Pº 20315/19.3T8SNT-B.L1.S1.

Na doutrina, tem o mesmo entendimento Sandra Passinhas (A assembleia de condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal; Almedina, 2.ª ed., 3.ª reimp., 2009, p. 319), dizendo que: “(…) embora, rigorosamente, a pena pecuniária não seja uma “contribuição devida ao condomínio”, esta é a solução mais conforme à vontade do legislador. Não faria sentido que a acta da reunião da assembleia que tivesse deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio servisse de título executivo contra o condómino relapso, e a mesma acta não servisse de título executivo para as penas pecuniárias, aplicadas normalmente para punir os condóminos inadimplentes”.

Em sentido oposto, negando a exequibilidade de tais deliberações, decidiram os seguintes arestos (elencados por ordem cronológica crescente): TRG de 08-01-2013, Pº 8630/08.6TBBRG-A.G1; TRC de 21-03-2013, Pº 3513/12.8TBVIS.C1; TRC 04-06-2013, Pº 607/12.3TBFIG-A.C1; TRP 16-12-2015, Pº 2812/13.6TBVNG-B.P1; TRL de 02-06-2016, Pº 16871-11.2T2SNT-8; TRC 07-02-2017, Pº 454/15.0T8CVL.C1; TRP 07-05-2018, Pº 9990/17.3T8PRT-B.P1; TRL 11-12-2018, Pº 2336/14.3T8OER-A.L1-6; TRL de 22-01-2019, Pº 3450/11.3TBVFX.L1-7; TRP de 09-03-2020, Pº 2752/19.5T8VLG-A.P1; TRP de 20-02-2020, Pº 3975/08.8YYPRT-A.P1; TRP de 08-09-2020, P.º 25411/18.1T8PRT-A.P1; TRG de 10-09-2020, P.º 956/14.6TBVRL-T.G1; STJ de 26-01-2021, Pº 956/14.6TBVRL-T.G1.S1; STJ de 11-03-2021, Pº 5647/17.3T8OER-A.L1.S1; e TRP de 17-06-2021, Pº 627/14.3TBVNG-B.P1.

No sentido desta última tese, manifestaram-se Rui Pinto Duarte (Código Civil Anotado, Volume II, coord. Ana Prata, Almedina, 2017, p. 261), Rui Pinto (“A execução de dívidas de condomínio”, in Novos Estudos de Processo Civil, Petrony, 2017, p. 192) e Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Civil Executivo, 3.ª ed., pp. 146 e 147).
 
Parece-nos que uma leitura mais literal do preceito excluía a consideração de título executivo no que se referia ao estabelecimento de penalidades ou sanções pecuniárias para o atraso no cumprimento das obrigações condominiais.

Veja-se, a este respeito, por todos, a argumentação expendida no Acórdão do TRL de 11-07-2019 (Pº 7503/16.3T8FNC-A.L1-7): “(…) Adiantamos que subscrevemos na íntegra a segunda das teses, por nos convencerem os argumentos invocados na sua sustentação, à qual, como já mencionados, tivemos oportunidade de aderir em acórdão proferido há alguns meses. Para tanto, socorremo-nos da fundamentação do já referido ac. RP de 07-05-2018, que acompanhamos na íntegra, a qual, depois de transcrever o art. 703º do CPC, discorre nos seguintes termos: “Sublinhámos as palavras “apenas” e “disposição especial”, para enfatizar o princípio da excepcionalidade das normas que prevêem títulos executivos avulsos em razão do seu carácter restritivo de direitos patrimoniais e mesmo processuais do devedor, como refere Rui Pinto na obra citada […].

Face à apontada característica de excepcionalidade, as normas que prevêem títulos executivos extrajudiciais têm um âmbito taxativo, não admitindo interpretação analógica, apesar de permitirem interpretação extensiva, atento o disposto no art. 11º do CC. Definida a natureza excepcional da norma, passamos à integração concreta da sua previsão.

Decorre da sua interpretação gramatical, que o nº 1 do art. 6º, do Dl 268/94, atribui força executiva à ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado a obrigação de cumprimento pelos condóminos das seguintes prestações: i) contribuições devidas ao condomínio; ii) quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns; iii) pagamento de serviços de interesse comum. E poderemos integrar no conceito de “contribuições devidas ao condomínio” as sanções pecuniárias?

Haverá que tomar em consideração a epígrafe do art. 6º, do DL 268/94: «Dívidas por encargos de condomínio». O art. 1424º do CC define como encargos de condomínio os respeitantes à “conservação e fruição das partes comuns do edifício”, bem como os que respeitam aos “serviços de interesse comum”.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, nas despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns incluem-se todas as que sejam indispensáveis para manter essas partes em condições de poderem servir para o uso a que se destinam. Sendo inegável a conclusão de que, uma vez fixada e deliberada em acta, a penalização pecuniária em que incorre o condómino se traduz numa “contribuição devida ao condomínio”, haverá, no entanto, que concluir, atenta a sua natureza excepcional, que o título executivo a que se refere o nº 1 do art. 6º, do DL 268/94 sob a epígrafe «Dívidas por encargos de condomínio»] não abrange no seu âmbito tal penalização, na medida em que esta não corresponde a um “encargo de condomínio” de acordo com a definição consagrada no art. 1424º do CC.

Os “encargos de condomínio” a que se referem o art. 1424º do CC e o nº 1 do art. 6º, do DL 268/94, apenas respeitam à “conservação e fruição das partes comuns do edifício”, bem como aos “serviços de interesse comum”, traduzindo-se na contribuição proporcional de cada condómino para tais despesas. (…), a contribuição referente a uma penalização deliberada pela assembleia de condóminos nada tem a ver com a previsão legal do art. 1424º do CC, não se integrando na previsão do nº 1 do art. 6º, do DL 268/94, encontrando-se prevista, no nº 1 do art. 1434º do CC, que permite a fixação de «penas pecuniárias para a inobservância das disposições deste código, das deliberações da assembleia ou das decisões do administrador».

Fazendo apelo às regras de interpretação previstas no art. 9º do CC, constituem elementos da interpretação jurídica: a análise da letra e a determinação do espírito da lei, sendo esta efectuada através dos elementos racional, sistemático, histórico e conjuntural. O CC incorpora no conceito de “pensamento legislativo” (art. 9º/1 do CC) um elemento interpretativo de particular relevância – racional ou ratio legis - o qual se traduz na razão de ser, no fim objectivo, prático, que a lei se propõe atingir; a ratio legis revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma jurídica disciplina.

E o objectivo visado pelo legislador ao atribuir à acta de deliberação do condomínio força executiva, através de «disposição especial» [art. 703º, n.º 1, d) do CPC], terá sido o de garantir a imediata exequibilidade das “Dívidas por encargos de condomínio”, como se inscreve na epígrafe do art. 6º, do DL 268/94, abrangendo o título apenas as “contribuições devidas ao condomínio” referentes a tais encargos.

Pensamos, salvo o devido respeito, que conclusão diversa não encontra suporte legitimador no parâmetro de excepcionalidade expressamente previsto para os títulos executivos avulsos.

Com efeito, se considerarmos que o conceito de “contribuições devidas ao condomínio” para efeitos de integração da previsão do nº 1 do art. 6º, do DL 268/94, abrange tudo o que for devido – qualquer contribuição, desde que deliberada pela respectiva assembleia – deparamo-nos com uma “norma aberta” em que a assembleia de condóminos assume uma estranha soberania: tudo o que delibera que seja devido ao condomínio passa a ser de imediato exequível sem recurso à acção declarativa.

Em conclusão, a integração da previsão legal do nº 1 do arti. 6º, do DL 268/94, no que concerne às “contribuições devidas ao condomínio” deverá ser feita com referência ao art. 1424º do CC, que define como encargos de condomínio os respeitantes à “conservação e fruição das partes comuns do edifício”, bem como os que respeitam aos “serviços de interesse comum.”

Acolhendo inteiramente este entendimento, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, na parte em que considerou “insusceptíveis de serem executados os valores requeridos a título de penalidades””.

7/11/2023

Acção Executiva - Honorários mandatário I


Deve a execução deve prosseguir para obtenção da quantia, atinente a despesas com honorários de mandatário, sendo aplicável a redacção do art. 6º do DL n.º 268/94, de 25 de Outubro, dada pela Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro?

Ora, dispõe o art. 6.º do DL 268/94, de 25/10, que a acta da assembleia de condóminos constituí título executivo contra o proprietário que deixar de pagar as contribuição devidas ao condomínio. Por seu turno, nos termos do nº 3, “consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”.

Ou seja, não só o legislador retirou do nº 1 do art. 6.º as expressões “despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum”, que importava uma clara relação com o art. 1424º do CC. Como veio deixar claro que as sanções se consideram abrangidas pelo título.

Aliás, ainda antes da nova redacção do art. 6º do DL 268/94, já havia quem considerasse que a acta constituía título executivo relativamente às penas aplicadas pela assembleia de condóminos. Assim, Sandra Passinhas, na sua tese de Mestrado, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.a ed., Coimbra, Almedina, p.272 a 275.

Mais recentemente, a civilista voltou a defender o mesmo entendimento, embora a propósito de uma outra questão. Lê-se então: se a assembleia proíbe a circulação de animais à solta nas partes comuns de um edifício, e um dos condóminos pura e simplesmente não respeita a proibição, quid iuris? Nos termos do art. 1434º, a assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações e das decisões do administrador, sendo que a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das penas constitui título executivo contra o proprietário, nos termos do art. 6º, do DL 268/94, de 25 de Outubro” - Sandra Passinhas, «Os animais e o regime português da propriedade horizontal», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, vol. II (2006).

Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 4.a ed., refr., Lisboa, Ediforum, 2015, também defendia a exequibilidade dos valores atinentes às penalidades, nos seguintes termos: “a eficácia executiva da deliberação exarada em acta inclui não só (a) as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício, (b) o pagamento de serviços de interesse comum, (c) as contribuições devidas para o fundo comum de reserva, (d) o pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio, (e) os encargos com inovações, salvo se se verificarem os requisitos de isenção fixados no art. 1426º, (f) as penas pecuniárias relevantemente estabelecidas nos termos do art. 1434º contando que haja, se necessário, deliberação da assembleia de condóminos a determinar a aplicação da penalidade”.

É certo que a deliberação da assembleia de condóminos que faz repercutir na esfera do condómino-incumpridor as despesas de contencioso, mormente com honorários de mandatário que o condomínio venha a constituir, não configura concretamente uma sanção pecuniária. Também não é menos verdade que, nos termos em que vêm sendo entendidos pela Jurisprudência, estas quantias não configuram “despesas com serviços de interesse comum”. Todavia, o legislador deixou cair, como acima se mencionou, e no âmbito do art. 6º, a referência às despesas a que alude o art. 1424º do CC,

Parecendo ter querido, propositadamente, aumentar o universo das despesas que se incluem na expressão “contribuições”. Tanto mais que, no âmbito dessa expressão, incluiu as sanções pecuniárias, por via do actual nº 3 do art. 6º. E como ensina Karl Larenz, a interpretação consubstancia-se numa actividade intelectual que procura extrair de uma fonte do direito o sentido normativo que possibilite a resolução de um caso concreto - KARL LARENZ, Metodologia de la Ciencia del Derecho (trd. Marcelino Rodríguez Molimero), Barcelona, Editorial Ariel, 1976, pp. 308 a 312.

Santos Justo aponta, a este propósito, que “toda a 'fonte' carece de interpretação que revelará o seu sentido. [a]demais, um texto comporta geralmente múltiplos significados, pode conter expressões ambíguas e obscuras e até atraiçoar o seu autor” - A. Santos Justo, Introdução do Estudo do Direito, 5.a ed., Coimbra, Coimbra Editora,2011, p. 321. São, pois, vários os factores hermenêuticos que o interprete se deve socorrer para interpretar uma norma jurídica.

Não obstante, sabemos, pois, que a interpretação jurídica não se deve cingir a um dos elementos de interpretação, antes sim utilizar de forma harmónica todos os factores hermenêuticos, como nos diz Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, I, Coimbra, Atlântica Livraria Editora, 1959, p. 163.

Nos termos do art. 9º do CC, a interpretação deverá cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento que não tenha o mínimo de correspondência com a letra da lei; o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.

Atentando na letra do art. 6º, parece ser possível concluir que o legislador não quis deixar de fora qualquer tipo de valor que os condóminos ou alguns deles devessem entregar ao acervo comum. Sejam, elas, despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e aos serviços de interesse comum, ou não sejam. Como escreve Santos Justo, embora o ponto de partida seja a lei, este elemento [literal] é frágil, “por isso, o elemento literal é o menos importante e raramente dispensa o recurso aos elementos lógicos, a cujo resultado devemos, em homenagem ao espírito da lei, dar preferência se conflictuar com o sentido literal” - Santos Justo, op. cit., p. 336.

O elemento histórico remete o intérprete para os trabalhos preparatórios da lei, para os precedentes normativos (como sejam a regulamentação anterior, o direito comparado, etc.), e para a occasio legis. Ora, como se sabe, a figura da propriedade horizontal remonta às Ordenações Filipinas. Previam elas que “se uma casa for de dois senhorios de maneira que de um deles seja o sótão e de outro o sobrado, não poderá aquele, cujo for o sobrado, fazer janela sobre o portal daquele cujo for o sótão, ou loja, nem outro edifício algum”. No CC de 1867, a figura não passou despercebida (art. 2335º).

Dispunha assim: “se os diversos andares de um edifício pertencerem a diversos proprietários, e o modo de reparação e concerto se não achar regulado nos seus respectivos títulos, observar-se-á o seguinte: § 1.º - [a]s paredes comuns e os tectos serão reparados por todos, em proporção do valor que pertence a cada um; § 2.º - [o] proprietário de cada andar pagará a despesa de concerto do seu pavimento e forro; § 3.º - [o] proprietário do primeiro andar pagará a despesa da escada de que se serve, o proprietário do segundo da parte da escada de que igualmente se serve, a partir do patamar do primeiro andar, e assim por diante”.

As guerras, o êxodo rural que determinou grande concentração de massas em torno das cidades, tornaram patente o problema da escassez das habitações, levando a que a imputação dos custos de manutenção se tornasse insuficiente. É precisamente neste contexto que surge a primeira referência à figura da assembleia de condóminos e ao DL nº 40 333, de 14 de Outubro de 1955. Como resulta do seu preâmbulo, o diploma “corresponde, sem dúvida, a uma necessidade dos tempos modernos”.

Nesse contexto, o próprio preâmbulo dispunha que, não obstante o diploma, nada obstava a que os comproprietários procurassem definir regulamentações especiais, mormente no que diz respeito às obrigações daqueloutros.

Do diploma resultava no seu art.23.º que “a acta da sessão que tiver deliberado quaisquer despesas constituirá título executivo, nos termos do artigo 46.º do Código do Processo Civil, contra o proprietário que deixar de entregar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, à qual acrescerão os juros legais de mora”. Por seu turno, o art.º 29.º, § 2, 2.a parte, que “[a] assembleia pode (...) fixar penas pecuniárias para a inobservância deste decreto-lei ou das decisões da assembleia ou do administrador”.

Entretanto, entrou em vigor o DL 268/94, de 25 de Outubro, que teve como ensejo “procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre condóminos e terceiros” [preâmbulo]. Aliás, tal desiderato também resulta expressamente do comunicado do Conselho de Ministros de 28/07/1994, que aprovou o DL em questão: o diploma tem como objectivo “criar soluções para resolver situações de impasse na administração dos condóminos e tornar mais claro e mais simples o exercício dessas funções” (disponível em https://www.historico.portugal.gov.pt).

Houve clara intenção do legislador em simplificar, agilizar, facilitar o exercício das funções da assembleia e do administrador e em fazer cumprir as decisões dos órgãos - à data, e no que toca a incumprimentos, o legislador havia ficado a “meio caminho”, no que ao direito estrangeiro diz respeito. Veja-se, por exemplo, o caso alemão. O §18 do Wohnungseigentumsgesetz estabelece que na hipótese de o condómino violar intensamente os seus deveres, os restantes condóminos podem exigir que aqueloutro aliene a sua fracção, sendo que uma das causas de violação intensa dos deveres é precisamente o não pagamento de despesas ao condomínio. Em Espanha, temos que o art. 21º da LPH (Ley de Propriedade Horizontal), permite o recurso ao procedimento de injunção para cobrança das quotas condominiais, das despesas atinentes aos honorários do advogado que patrocina o condomínio e, ainda, às respectivas custas judiciais. Em França, em caso de dívida, o condomínio pode exigir do condómino incumpridor as quotas condominiais vencidas e vincendas até ao final do ano em curso, dando lugar ao procedimento de injunção (art. 60º do Décrét 67-223) na falta de pagamento, podendo o tribunal ordenar a penhora dos bens do devedor e, em última instância, a venda da fracção autónoma (art. 19, 19-1 e 19-2 do Décrét), sendo que o condómino incumpridor responde pelas despesas com advogados e com as custas judiciais.

O elemento histórico aponta para o legislador ter querido facilitar e simplificar o exercício das várias funções inerentes ao funcionamento do condomínio, assim como procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, nomeadamente no que diz respeito à cobrança de dívidas. Aliás, a Lei nº 8/2022 surgiu com o mesmíssimo intuito.

Como muito bem explica Claus Wilhelm Canaris, o fundamento do elemento sistemático de interpretação reside na ideia de que a ordem jurídica tem unidade e coerência, pelo que uma norma haverá sempre que ser interpretada no quadro normativo afim ou paralelo. - Claus Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência Jurídica (trad. Menezes Cordeiro), Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1996, pp. 157 a 166.

Ora, dispõe o art. 703º, nº 1, al. d), do CPC que à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. Não olvidamos, pois, que essas disposições especiais configuram, tal como o preceito indica, normais excecionais, o que significa não ser possível o recurso à analogia. Nada obsta, porém, a uma interpretação extensiva do preceito. O que vem sendo feito quer pela doutrina, quer pela Jurisprudência, relativamente a outras situações.

Por exemplo, no âmbito do NRAU. Este no seu art. 14º-A, permite ao senhorio executar o arrendatário por rendas, encargos, ou outras despesas que corram por conta deste último. O conceito de penalidades/indemnização não cabe, literalmente, no preceito de renda, no preceito de encargo, nem no preceito de despesa. Todavia, apesar do abismo Jurisprudencial, vem sendo aceite, de forma maioritária, a hipótese de o senhorio executar o arrendatário pela indemnização prevista no art. 1041º. 

Justificam os decisores que a indemnização cabe, por recurso à interpretação extensiva, no conceito de renda, e que, querendo o NRAU alargar a eficácia executiva conferida aos actos promovidos pelo senhorio, para evitar o recurso à acção declarativa, seria contrário ao preceito permitir a cobrança coerciva das rendas, e simultaneamente exigir ao senhorio o recurso à acção declarativa para obter um título executivo sobre valores sucedâneos com os que permitem o recurso à acção executiva.

O que nos leva, necessariamente, para o elemento teleológico/racional. A possibilidade de aplicação de penalidades pela assembleia de condóminos decorre da lei. Considerando que as despesas do condomínio não se cingem unicamente às previstas no art. 1424º do CC. Pelo menos, na definição que vem sendo adoptada pela doutrina e pela Jurisprudência. Que sentido faria o legislador permitir o recurso à acção executiva para a cobrança das contribuições devidas, encontrando-se abrangidas no âmbito dessa expressão as sanções pecuniárias, e exigir ao condomínio que percorra o caminho de uma acção declarativa para cobrar esta despesa em concreto, dependente e sucedânea do incumprimento do condómino? A nosso ver, esta possibilidade afronta a ratio do preceito do art. 6º.