Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

4/17/2021

Legitimidade passiva na impugnação de deliberações II

 Enquadramento jurídico da legitimidade passiva
na impugnação de deliberações da assembleia de condóminos

2ª parte

Mas será mesmo exigível a demanda de todos os condóminos para assegurar o caso julgado quanto a todos?

A personalidade judiciária ou processual consiste na susceptibilidade de ser parte (cfr. art. 11º, nº 1, do CPC), sendo que a personalidade jurídica coincide, em princípio com a personalidade judiciária (cfr. nº 2 do citado preceito), pelo que, no que concerne às pessoas coletivas, o legislador estendeu a personalidade judiciária a entidades, realidades ou coisas desprovidas de personalidade jurídica, como resulta do art. 12º do CPC.

À enumeração taxativa de entidades excecionalmente providas de personalidade judiciária, o legislador, na Reforma de 1995/96, acrescentou o condomínio, prevendo-se no art. 6º, al. e), do CPC de 1961 (actual art. 12º, al. e), do CPC de 2013), que tem personalidade judiciária «o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador».

Este preceito aponta na direção do art. 1437º do CC, que prevê especificamente a legitimidade para agir em juízo ativa e passivamente, nalguns casos, e também para o art. 1436º do mesmo diploma, o qual enumera as diversas funções que competem ao administrador, nas quais se inclui, sob a al. h), a execução das deliberações da assembleia. Por seu turno, o nº 6 do art. 1433º do CC prevê que a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito.

A deliberação dos condóminos é a forma por que se exprime a vontade da assembleia de condóminos (cfr. art. 1431º e 1432º do CC), órgão a quem compete a administração das partes comuns do edifício constituído em PH (cfr. art. 1430º, nº 1, do CC), sendo o administrador o órgão executivo da assembleia de condóminos (cfr. art. 1435º a 1438º, todos do CC).

Assim, a solução mais correta parece ser a de demandar o condomínio, como se conclui no acórdão do TRP de 13.2.2017: «Se a deliberação exprime a vontade da assembleia de condóminos, estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação».

Senão, vejamos. A tese negatória da legitimidade passiva do condomínio encontra arrimo forte na redação do art. 1433º, nº 6, do CC, norma expressamente dedicada à «impugnação de deliberações». E, de facto, a letra da lei reporta-se aos «condóminos contra quem são propostas as acções».

O legislador não afirma que a representação judiciária do condomínio contra quem é intentada a acção incumbe ao administrador, mas, ao invés, que este representa os condóminos, sem embargo, a redação deste preceito deriva do DL 267/94, de 25/10, e foi redigida num momento histórico em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte ativa ou passiva num processo cível.

Só com a Reforma de 1995/96, o art. 6º, al. e), do CPC de 1961 estendeu a personalidade judiciária ao condomínio. E o art. 231º, nº 1, do CPC de 1961 (actual art. 223º, nº 1, do CPC de 2013), cuja redação resulta da mesma Reforma, acrescentou que o condomínio é citado ou notificado na pessoa do seu legal representante (o administrador).

Chegados a este ponto, verificamos que a actividade interpretativa reclama, em particular neste caso, uma hermenêutica sistémica das disposições legais, na unidade do sistema jurídico. Baptista Machado, repudiando por completo o positivismo jurídico, não deixa, no ponto concreto da interpretação, de lançar mão de todos os pontos evidenciados no art. 9º do CC para alcançar o desideratum voluntas legislatoris.

Realça que o texto é o ponto de partida (tendo mesmo uma função negativa, de afastamento ou eliminação de sentidos sem qualquer apoio; mas também positivo quando vários sentidos sejam possíveis nela colher), passando pelo elemento teleológico («o conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (...) em que a norma foi elaborada»), pelo elemento sistemático (o que significa «a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda» (...) «é oportuno referir aqui a descoberta da “geneologia” ou “linhagem jurídico-sistemática” da norma»), mas também o elemento histórico, nele considerando a evolução do instituto, as chamadas fontes da lei e os trabalhos preparatórios, considerando como ponto mais importante de tarefa a busca da unidade do sistema (cf. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, pp. 181 e ss).

Numa linha de pensamento muito próxima, Francesco Ferrara refere que «o jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe conseguir. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a esta finalidade, e portanto, em toda a plenitude que assegure tal tarefa» (voto de vencido do Juiz Conselheiro Urbano Dias, no acórdão do STJ de 24.6.2008).

Também Castanheira Neves ensina que o «problema jurídico-normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos. Uma "boa" interpretação não é aquela que, numa pura perspectiva hermenêutica-exegética, determina corretamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspetiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto» (Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, ed./reimpressão 2013, p. 84).

Isto leva-nos a aderir à interpretação actualista do citado art. 1433º, nº 6, do CC, preconizada por Miguel Mesquita, que propugna a tarefa interpretativa de substituir a expressão condóminos pela palavra condomínio. À pergunta se actuará o condomínio no seu próprio interesse, autonomizando-se verdadeiramente dos condóminos, responde-nos sabiamente Miguel Mesquita, valendo a pena recorrer a esta citação mais longa do autor:

«Pensamos que não. Em nosso entender, o condomínio é a face processual dos condóminos (assim como uma comissão é a face dos comissionados), não fazendo valer, de forma alguma, um interesse diferente daquele que pertence a estes. No fundo, quando o condomínio assume o papel de parte, os condóminos assumem esse papel em simultâneo, mas sob a "máscara" do condomínio: não estão no processo, mas tudo se passa como se estivessem, litigando do lado activo ou do lado passivo da instância. O condomínio é a "capa" processual dos condóminos, uma "capa" que visa facilitar a identificação das partes, evitar que os condóminos, um por um, tenham de ser referidos na petição inicial ou na contestação. Com os comissionados ocorre, exactamente, a mesma coisa.

A personalidade judiciária atribuída ao condomínio é meramente formal e, no fundo, os condóminos são partes na causa, debaixo da "capa" do condomínio. Como, na doutrina alemã, FIABSCITEID reconhece, após rejeitar, relativamente às associações não personalizadas, a figura da substituição processual, "a parte permanece o conjunto dos respectivos membros (die Gesamtheit der jeweiligen Mi tglieder). Por isso é que o depoimento de um condómino tem de ser visto como um depoimento de parte e jamais como um depoimento testemunhal.

Enquanto o substituto processual se distingue da parte substituída, a pessoa meramente judiciária não se distingue, no processo, das pessoas que se encontram por detrás dela. Daí que, naturalmente, o caso julgado atinja, plenamente, estas pessoas. Por tudo isto, deve entender-se que o condomínio não goza de nenhuma legitimidade extraordinária, uma vez que os interesses que defende são, afinal, os interesses dos próprios condóminos e a distinção entre estes e o condomínio é absolutamente artificial» - obra citada, pp. 50 e 51.

E esta interpretação actualista tem também como alvo o art. 383º, nº 2, do CPC (art. 398º do CPC de 1961), cuja redação permanece inalterada desde 1967. Este preceito, relativo ao procedimento cautelar de suspensão das deliberações da assembleia de condóminos, diz-nos que «é citada para contestar a pessoa a quem compete a representação judiciária dos condóminos na ação de anulação».

Como explica Miguel Mesquita, «À luz da interpretação por nós propugnada, é citado aquele a quem cabe a representação judiciária do condomínio e não dos condóminos» (obra citada, p. 54). E dentro do mesmo registo, sem prejuízo de diferenças a assinalar, sustenta Sandra Passinhas que o administrador «age como representante orgânico do condomínio» e que «a deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados). E, sendo um acto do condómino, a legitimidade passiva cabe ao administrador».

Acrescenta ainda a autora que «As controvérsias respeitantes à impugnação de deliberações da assembleia só satisfazem exigências colectivas da gestão condominial, sem atinência directa com o interesse exclusivo de um ou vários participantes, com a consequência que, nessas acções, a legitimidade para agir cabe exclusivamente ao administrador» (A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Coimbra: Almedina, 2.ª reimp. da 2.ª ed. de janeiro/2002, Coimbra: Almedina, pp. 346 e 347).

Sem prejuízo de a autora sustentar que parte legítima é o administrador do condomínio, pensamos que não se apartará muito da tese da interpretação atualista supra expendida, pois acaba por assinalar e aderir ao entendimento do acórdão do TRL de 14.5.1998, no seguinte trecho:

«Nas palavras do acórdão do TRL, de 14/5/1998, CJ, III, pág. 96 e ss., "entre os poderes do administrador contam-se os inerentes à representação judiciária dos condóminos contra quem sejam propostas acções de impugnação de deliberação da assembleia, salvo se outra pessoa for nomeada pela assembleia, conforme se preceitua no art. 1433º, nº 6. (...) Significa isto que, o condomínio, ou seja, o conjunto dos condóminos, pode ser directamente demandado quando, designadamente, estejam em causa deliberações da assembleia. (...) Da especificidade da representação do condomínio resultante da propriedade horizontal nas acções de anulação das deliberações decorre que, para cabal cumprimento do disposto no art. 476º, nº 1, al. e), do CPC, se o autor demandar o condomínio, deverá indicar o nome e a residência do administrador ou da pessoa que a assembleia tenha porventura designado para representar o condomínio nessas acções, sem o que o condomínio não pode ter-se por devidamente identificado» (obra citada, p. 347).

Ainda a propósito da tese de Sandra Passinhas, chamamos a atenção para a jurisprudência do citado acórdão do TRL de 7.3.2019, no qual se escreveu o seguinte: «(…) independentemente desta aparente incongruência (decorrente da citação do ac. do TRL) não há dúvida de que para esta autora o administrador está na acção como representante do condomínio e não dos condóminos que aprovaram as deliberações (considerando que, nas acções do art. 1437º do CC, que não necessariamente nesta, o administrador é a própria parte, embora em substituição processual, veja-se Miguel Teixeira de Sousa, em vários post’s colocados no blog do IPPC – em 01/03/2015, O que significa o disposto no art. 1437.º CC?; em 06/03/2018, Jurisprudência (805); em 21/01/2019, Jurisprudência 2018 (158); -, e Paula Costa Silva, citada no ac. do TRL de 20/06/2013, proc. 6942/04.7TJLSB-B.L1-2, e Antunes Varela, CC, vol. III, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1984, pág. 455, mas este sem referência à substituição processual; Lebre de Freitas e Miguel Mesquita criticam estas posições – da substituição processual -, obras citadas, págs. 43-44 e 50/51, respectivamente, entre o mais porque o administrador não tem um interesse próprio)».

Decorre do exposto que «o condomínio é a parte, e parte legítima, assumindo o administrador o papel de representante de uma entidade desprovida de personalidade jurídica, sendo incorreto, por isso, afirmar-se que a legitimidade pertence ao administrador» (Miguel Mesquita, obra citada, p. 54).

Ainda que o rumo traçado não fosse a interpretação actualista da lei, no limite sempre seria de seguir o raciocínio forjado no acórdão do TRL de 28.3.2006. Segundo este aresto, o legislador minus dixit quam voluit, devendo o inciso constante do nº 6 do art. 1433º do CC «a representação judiciária dos condóminos contra quem as ações são propostas» passar a ser interpretado extensivamente, por forma a ver nele escrito que «a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem as acções são propostas)», já que o condomínio é o conjunto organizado dos condóminos.

Acrescentamos ainda um argumento a pari, esgrimido no acórdão do TRP de 13.2.2017, onde se escreve que: «(…) também por aqui se chega à conclusão de que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, compete ao condomínio, representado pelo administrador, pois que se a este cabe executar as deliberações da assembleia de condóminos (art. 1436º, al. h), do CC), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio».

Volvendo ao caso concreto, este concede ainda mais força a esta interpretação no sentido de um exercício mais ágil do direito de acção. Como escreveu Miguel Mesquita, «Quanto ao nosso problema, a necessidade de identificar todos os condóminos pode ser "diabólica", por duas razões: por causa do elevado número de condóminos de certos edifícios sujeitos ao regime da propriedade horizontal; por causa, também, da impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de identificar, na acta da assembleia, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida. Na realidade, a lei não exige que sejam mencionados os condóminos que votaram a favor de uma deliberação. O art. 1º do DL 268/94, de 25/10, exige apenas que as actas das assembleias de condóminos sejam "assinadas por quem nelas tenha servido de presidente e subscritas por todos os condóminos que nelas hajam participado" (4º). Estas duas razões de fundo levam-nos a pensar que a tese negatória da personalidade judiciária do condomínio, ao rejeitar a interpretação actualista do art. 1433º, nº 6, do CC, constitui uma solução pouco prática e, até, espinhosa» (obra citada, pp. 55 e 56).

E – conclui o autor – «Os pressupostos processuais não devem servir para complicar, desnecessariamente, o conhecimento do pedido e a resolução dos litígios, finalidades precípuas do processo civil» (obra citada, p. 56). 

Resta acrescentar que não é obstáculo a este entendimento a eventualidade de o administrador perder o poder de representação de ser ele próprio, na qualidade de condómino, a propor contra o condomínio uma ação de impugnação da deliberação. Nesta hipótese, decorre do art. 1433º, nº 6, in fine, do CC, que a assembleia terá de nomear um representante para esse efeito.

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