Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.
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4/24/2023

Como se calcula o valor relativo de cada fracção



O escopo do presente artigo justifica-se no fundo por ao longo do tempo me confrontar amiudadas vezes, com o facto de alguns condóminos questionarem da legalidade de, duas fracções autónomas aparentemente iguais possuírem percentagens ou permilagens diferentes ou de fracções com uma área menor que outras, poderem possuir uma percentagem ou permilagem maior.
 
A questão recorrente: será isto legal? Não devia haver um critério proporcional?
 
Apreciando, importa desde logo iniciar o presente escrito, com a determinação daquela que poderá ser a possível, a melhor ou mais exacta definição dos diversos conceitos em presença e que nos aproveitam.

Começando pelo conceito de «área da fracção», qualquer pessoa, mesmo sem especial formação, tem um conceito geral sobre o que é ou representa a expressão «área de uma fracção». No entanto, se se quiser ser o mais objectivo e concreto possível, confronta-se este desiderato com vários conceitos ou, melhor dito, diversas definições de «área da fracção».

Assim, o conceito de «área da fracção» para o promotor imobiliário ou o construtor civil, enquadra-se desde logo na área da fracção autónoma na vertente do custo. Para qualquer um deles, é natural e legitimamente relevante saber qual a área de construção de cada fracção, porquanto este dado é fulcral para se determinar qual o valor pelo qual irá colocar à venda a referida fracção.

No que concerne à Administração Fiscal, o conceito «área da fracção» tem em consideração, não só a área habitacional da fracção (área bruta privativa) mas também a área destinada a outras finalidades, nomeadamente, arrecadações, garagens, etc. (área bruta dependente), critérios que na acepção legal confluem para a determinação do respectivo valor patrimonial tributário.

Contudo, para o comum promitente-comprador, interessado na aquisição de uma qualquer fracção autónoma, regra geral, ele estará naturalmente mais interessado em verificar qual é a área útil da potencial fracção, ou seja, a área que se terá afecta à vivência do seu quotidiano familiar.

Por outro lado, temos o conceito de «percentagem» ou «permilagem», consoante o prédio esteja constituído em 100 ou 1 000 unidades. Ora, consultando um vulgar dicionário de língua portuguesa, «percentagem» é a proporção calculada em relação a uma grandeza de cem unidades.

Vale pois isto por dizer que, a área da fracção representará, em termos gerais, a concreta medição da mesma, ao passo que a percentagem / permilagem da fracção representa uma proporção do seu valor relativo com relação ao valor total do prédio. Será portanto, uma parte proporcional de um todo, pelo que, se o cálculo e determinação das áreas do imóvel obedecerão, em conformidade, no plano urbanístico e fiscal, aos critérios definidos em Lei e demais regulamentação aplicável, razoavelmente se poderá atender, por princípio, a tais elementos como pressupostos definidores do valor total do prédio e os valores relativos das partes autonomizadas que o compõem (as fracções autónomas), sem prejuízo, ainda, do valor especulativo (o chamado «valor de mercado») do prédio, atendendo designadamente à localização, as acessibilidades, infraestruturas e serviços limítrofes que servirão os respectivos proprietários. Temos ainda o valor de construção/reconstrução do prédio, ou seja, o custo que será necessário suportar pela construção do prédio, ou pela sua reconstrução, em caso de perda total do mesmo.

Nesta factualidade, qual será então o valor de um prédio que deve ser tido em conta para efeitos de calculo da permilagem de cada uma das suas fracções autónomas? O valor de construção e/ou reconstrução do prédio, o valor fiscal (VPT) ou o valor de mercado?

Estatui o art. 1418º, nº 1 do CC que “No titulo constitutivo, serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo a cada fracção, expresso em percentagem, do valor total do prédio.”Decorre deste preceito que é através do Título Constitutivo da Propriedade Horizontal que se fixa a percentagem ou permilagem atribuída a cada fracção autónoma com relação ao valor total do prédio.

A título meramente ilustrativo, importa observar que a questão atinente ao valor relativo de cada fracção, foi bastante debatida no âmbito regime dos empreendimentos turísticos em propriedade plural, tendo o legislador estabelecido uma fórmula especifica para esse efeito, através do Dec. Regulamentar nº 8/89 de 21 de Março, que seria posteriormente revogado pelo DL nº 167/97 de 04 de Julho.

Pelo exposto, não obstante a área locável e/ou habitável do imóvel, possa ser definível por aplicação das formulas para o respectivo cálculo, havidas previstas na legislação urbanística e fiscal, não podemos olvidar que outros factores concorrem directamente para a determinação do valor económico do prédio e das suas partes integrantes em geral, e das fracções autónomas que o compõem, em especial.

À luz destes considerandos, resulta portanto que as percentagens ou permilagens atribuídas às fracções autónomas, para além das áreas locáveis e/ou habitáveis das fracções autónomas (v.g., os metros quadrados que totalizam a área útil), poderá atender a outros factores que pela sua natureza, justifiquem a respectiva integração nas respectivas proporcionalidades, a saber
 
  • A outros elementos comummente identificados como componentes majorativos de qualidade e conforto (ar-condicionado, aspiração central, aquecimento central, acabamentos mais nobres), etc.);
  • A eventuais partes comuns de afectação comum que as servem (salão de festas, piscina, zona de barbeque, parque infantil, campo ténis, etc.) ou exclusiva (terraço, jardim, etc.);
  • À localização mais, ou menos privilegiada (zona mais nobre ou inserida numa área urbanística mais favorecida), a factores panorâmicos (visão para um melhor horizonte paisagístico) à exposição solar (fracção mais soalheira), à existência de equipamentos comunitários (culturais, educação, saúde, lazer e similares) e serviços públicos e privados (redes de abastecimento água, gás, esgotos e eléctrica, etc.).(1)
 
Respingando o quadro factual supra descrito, a resposta à questão atinente à possibilidade de uma fracção detentora de uma área menor poder possuir uma percentagem ou permilagem superior que uma outra, com uma área maior, é a de que, tal medida não esbarra em qualquer ilegalidade.

Dito isto, os valores relativos de todas as fracções autónomas, são determinantes para a organização e administração dos condomínios, expresso, para o efeito, nas respectivas percentagens ou permilagens atribuídas, nomeadamente:
 
  • para o apuramento do quórum constitutivo legalmente exigível para a realização das reuniões em Assembleia Geral de Condóminos, em primeira ou segunda convocatória (art. 1432º, nº 3 e 4 do CC);
  • para a imputação do número de votos e respectivo sentido que determinarão a aprovação ou rejeição das propostas constantes da ordem de trabalhos (art. 1430º, nº 2 do CC);
  • para a fixação da comparticipação nas despesas com os encargos comuns ordinários e extraordinários do condomínio (art. 1424º do CC) e bem assim, da distribuição de eventuais receitas (art. 1436º, al. d) do CC).

 

Finalmente, importa salientar que o cálculo atinente ao valor da percentagem ou da permilagem é da responsabilidade do promotor ou construtor e não do Administrador do condomínio, no entanto, nada obsta a que, posteriormente, havendo o acordo de todos os condóminos (leia-.se, mediante deliberação aprovada por unanimidade), estes possam, modificar o valor relativo havido fixado para cada fracção autónoma, expresso em percentagem ou permilagem, por escritura pública ou DPA (art. 1419º do CC).

As percentagens ou permilagens estão registadas num documento que se chama Título Constitutivo da Propriedade Horizontal, ou seja a Escritura Pública da constituição do regime de  propriedade horizontal que poderá ser obtido no respectivo Cartório Notarial.

Como é calculada a percentagem ou permilagem?

A título meramente ilustrativo, atentemos num singelo exercício que tem unicamente em consideração a área em metros quadrados.  Esta é pois calculada tendo em consideração a área ocupada por cada fracção autónoma, medida pelo respectivo  perímetro (o extradorso das paredes exteriores e pelo meio das paredes confinantes com outras fracções ou partes comuns). 

Assim tomemos por exemplo, um edifício constituído em propriedade vertical (ou total) com 4 fracções, que se pretende constituir em regime de propriedade horizontal:

 

Fracção A, T3 com 250 m2;

Fracção B, T2 com 200 m2;

Fracção C, T3 com 250 m2;

Fracção D, T1 com 100 m2.

 

Estas quatro fracções autónomas totalizam 800 m2. Para se calcular a percentagem ou permilagem a atribuir a cada fracção autónoma, basta efectuar a seguinte operação aritmética: 

Fracção A: 250 : 800 = 0,3125 = 31,25% (ou 312,5 por 1000)

Fracção B: 200 : 800 = 0,25 = 25% (ou 250/1000).

Fracção C: 250 : 800 = 0,3125 = 31,25% (ou 312,5 por 1000)

Fracção D: 100 : 800 = 0,125 = 12,5% (ou 125/1000).

Permilagens: 312,5 (A) + 250 (B) + 312,5 (C) + 125 (D) = 1 000 

Votos: 312 (A) + 250 (B) + 312 (C) + 125 (D) = 999 (2)

 

Notas:

(1) Este exemplo é válido para fracções idênticas, porém situadas em zonas diversas. 

(2) Apenas são consideradas as unidades inteiras que couberem na percentagem ou permilagem a que o art. 1418 se refere (art. 1430º, nº 2 do CC) 


2/02/2023

Propriedade por andares


P.º R. P. 259/2006 DSJ-CT - «Propriedade por andares» - Sua qualificação jurídica. Identificação física do prédio e de cada um dos andares - Declarações complementares - Legitimidade.
 
PARECER
 
Relatório
 
1. A coberto da ap.23/20060424 foi pedido na 1ª Conservatória do Registo Predial de …o registo de aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, do 1º andar da 2ª sorte do prédio descrito sob o nº 11 140, a fls. 155, do livro B-39, juntando-se para o efeito fotocópias certificadas de escrituras públicas de habilitação de herdeiros, certidões extraídas dos processos de imposto sucessório, prova de correspondência matricial e certidão de teor matricial.
 
1.1. No verso da requisição, assinada pelo apresentante, ora recorrente, foi aposta declaração subscrita pela cabeça de casal na qual se identifica o objecto mediato do registo e se estabelece a correspondência matricial, reivindicando-se o bem para as heranças abertas por óbito de Manuel … e mulher, Maria ….
 
1.2. Ao registo, assim pedido, veio a caber a qualificação de provisório por dúvidas, nos termos do despacho que aqui se dá por reproduzido e no qual se expressa, em síntese, a necessidade de clarificação da realidade material e jurídica do prédio, designadamente, da composição das sortes que o integram e das áreas de implantação dos edifícios, questionando-se ainda a situação de cada uma das sortes por referência aos números de polícia dado que na descrição, apesar de se referir que as sortes têm entradas comuns, apenas à 1ª sorte se atribuem os números de polícia 365 e 367 da Avenida ….
 
2. Às dúvidas opostas pelo Sr. conservador pretendeu o apresentante dar resposta mediante o pedido de conversão apresentado sob a ap.18/20060911 no qual se procura esclarecer, em declarações complementares, a numeração de polícia de cada uma das sortes, a área do edifício e, bem assim, a área de cada uma das partes que o compõem, juntando-se agora como novos documentos o duplicado do pedido de alteração matricial de modo a constar a numeração de polícia, as plantas do prédio e o ofício da CM de … onde se dá conta da impossibilidade de emitir certidão por falta de registos sobre a construção do edifício.

2.1. Também este pedido não logrou obter êxito, vindo a ser recusado pela Sra. ajudante em substituição legal que alega, em despacho, manter-se a falta de esclarecimento das áreas coberta e descoberta relativas a cada um dos artigos matriciais e a necessidade de se estabelecer a correspondência entre os números de polícia, acrescentando que para o efeito importa obter a assinatura dos proprietários de todas as sortes do prédio pois só terá assinado uma das partes e não se sabe qual uma vez que a assinatura é ilegível.
 
3. O apresentante, inconformado, interpõe o presente recurso aduzindo como argumentos essenciais o facto de ter procurado remover todas as dúvidas levantadas pelo Sr. conservador e a impossibilidade de obter a intervenção dos titulares das outras partes do edifício, pondo, aliás, em questão a exigibilidade de tal intervenção quando o que está em tabela é apenas o registo do 1º andar da 2ª sorte, no âmbito de uma espécie de PH. Por último, esclarece que a signatária da declaração complementar ao pedido de conversão é a cabeça de casal na herança aberta por óbito do titular inscrito, conforme indicação e junção/exibição de fotocópia do seu BI.
 
3.1. O Sr. conservador, sem deixar de sustentar a decisão de recusa do averbamento de conversão proferida pela Sra. ajudante, vem colocar a tónica na falta de prova matricial relativa a todos os andares que compõem o edifício, na desconformidade entre a área total do prédio indicada na descrição – 192, 94 m2 – e a área ora declarada – 204,70 m2 -, na falta de legitimidade da interveniente para, isoladamente, esclarecer a composição que a descrição omite e na insuficiência do esclarecimento prestado quanto à numeração de polícia, problema agora agravado pelo facto de se terem indicado o número 369 da Av. … e os nº 8 e 10 da Rua …. com referência à entrada da loja e do respectivo quintal da 2ª sorte, acentuando, finalmente, a sua discordância quanto à qualificação jurídica proposta pelo recorrente para a situação do prédio que, a seu ver, enquanto os proprietários não sujeitarem o prédio ao regime da propriedade horizontal, apenas se pode traduzir numa compropriedade. Não havendo questões prejudiciais que obstem à apreciação do mérito do recurso, são estas as posições em confronto sobre as quais cumpre emitir parecer.
 
Fundamentação

1. Considerando a particularidade de se tratar aqui da aquisição de uma parte de um edifício, importa perceber, em concreto, a situação jurídica do prédio e a qualificação que lhe há-de caber no quadro legal existente, tendo em conta que, a partir de meados do ano de 1920, o prédio passou a figurar nas tábuas dividido em duas «sortes» com entrada comum e compostas, cada uma delas, por uma loja térrea e um 1º andar, e assim, por partes, terá vindo a ser transmitido.
 
1.1. Conforme o historial de registo do prédio, as partes ou andares que integram cada uma das «sortes», e que passaram a ser objecto de direitos autónomos, vêm sendo fiscalmente identificadas à medida que se inscrevem novos factos jurídicos, sendo que, no caso dos autos, o que se pretende é apenas registar a aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, do 1º andar da 2ª sorte que se identifica, para efeitos de actualização da descrição, com entrada pelo nº367 da Rua …, a área de 67,20 m2 e a inscrição autónoma na matriz sob o artigo 1273, proveniente do artigo 836.
 
1.2. Sendo este o objecto mediato do registo, impõe-se justamente definir, como ponto prévio, o direito de cada um dos titulares inscritos pois, quanto nós, é nesta qualificação jurídica que reside a resposta às questões levantadas nos autos.
 
1.3. Começando pela caracterização jurídica proposta pelo recorrido, à falta de sujeição do prédio ao regime da propriedade horizontal, teríamos de ver aqui um direito de compropriedade que, na noção dada pelo art. 1403º do CC, existe quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, sendo qualitativamente iguais os direitos dos consortes, embora possam ser quantitativamente diferentes.
 
1.3.1. Ora, apesar do desacordo doutrinal em torno da natureza jurídica da compropriedade (1), seja qual for a concepção que se venha perfilhar, o objecto deste direito poderá ser toda a coisa ou apenas uma quota ideal ou intelectual da coisa mas nunca uma parte especificada da coisa – cfr. o art. 1408º, nº2, do CC. 
 
1.3.2. Tanto bastará, quanto a nós, para afastar no caso dos autos a tese da compropriedade, a não ser que se pretenda ver na distinção ou individualização de partes do edifício uma mera regulação ou acordo sobre o uso da coisa comum – art. 1406º do CC-; hipótese que se nos afigura inverosímil e, em princípio, alheia ao registo.
 
1.3.3. Não se vislumbra, aliás, como conciliar a situação dos autos com o disposto no nº2 do art. 1403º do CC quando no extracto das inscrições carreadas para os autos se persiste em definir como objecto dos factos jurídicos uma parte especificada do edifício e se omite qualquer referência quantificadora do direito publicitado.
 
1.4. Noutra perspectiva, nomeadamente a do recorrente, a situação do prédio em causa nos autos sugere antes um regime de propriedade horizontal pois, na verdade, o que se pretende espelhar nas tábuas é, precisamente, a propriedade exclusiva sobre cada uma das partes ou fracções de que o edifício se compõe.
 
1.4.1. Efectivamente, em face da noção de propriedade horizontal que nos é dada pela conjugação dos art. 1414º, 1415º e 1420º, do CC, este direito caracteriza-se como o conjunto incindível de poderes que recaem sobre uma fracção ou parte de um edifício, em condições de constituir uma unidade independente, e sobre as partes comuns do mesmo edifício, de modo que, a coisa ou objecto de direitos deixa de ser o edifício, assim desconsiderado como coisa unitária, e passam a ser as fracções autónomas, a que estão indissociavelmente afectas partes comuns do edifício, sendo que, cada um destes conjuntos – fracção autónoma mais partes comuns – tem autonomia jurídica e, como tal, pode ser objecto de uma situação jurídica real própria (2).
 
1.5. Mas, se estes são os traços gerais do instituto da propriedade horizontal reconhecido e regulado pelo actual CC na senda dos preceitos básicos introduzidos pelo DL nº 40 333, de 14.10.1955, teremos de atentar que a situação jurídica do prédio dos autos precede este enquadramento legal e, por isso, nos obriga a situar temporalmente o problema.
 
1.6. Ora, como já se disse, o prédio passou a figurar nas tábuas com referência a duas «sortes» durante a década de 20 e, ao longo dos anos, foi com base nestas realidades materiais que se vieram a consolidar os direitos e situações jurídicas reais o que, pela informação contida nos autos, equivale a dizer que o edifício deixou de ser tratado como uma coisa unitária e, em sua substituição, passou a existir uma multiplicidade de coisas, cada uma das partes que o compõem, designadamente, cada um dos andares que compõem as suas «sortes».
 
1.6.1. Todavia, à falta de registo de um TCPH, terá esta situação cobertura legal ou, ao invés, encontrar-se-á num estado de clandestinidade de direito e de regime que deva empurrar os diversos proprietários para a formalização de um título e a obtenção do seu registo como via de regularização substantiva e registral?
 
1.6.2. Responder a esta questão implica, a nosso ver, compulsar primeiro o normativo em vigor ao tempo em que se terá instalado nas tábuas um novo trato sucessivo, agora reportado a cada uma das partes especificadas do edifício em conjunto forçado com as suas partes comuns.
 
1.7. E, de facto, pegando no CC de 1867, vigente ao tempo, o que encontramos no seu art. 2335º é, precisamente, uma nota expressiva da admissibilidade do direito de propriedade horizontal, pese embora o seu detalhe legal só tenha vindo a vingar mais tarde, em concreto, com o DL nº 40 333, de 14 .10.1955, atrás referido (3).
 
1.8. Na verdade, estabelecia o art. 2335º do Código de Seabra que “ se os diversos andares de um edifício pertencerem a diversos proprietários, e o modo de reparação e o conserto se não achar regulado nos seus respectivos títulos observar-se-á o seguinte: §1º As paredes comuns e os tectos serão reparados por todos, em proporção do valor que pertence a cada um; § 2º O proprietário de cada andar pagará a despesa do conserto do seu pavimento e forro; § 3º O proprietário do primeiro andar pagará a despesa do conserto da escada de que se serve; o proprietário do segundo a da parte da escada de que igualmente se serve, a partir do patamar do primeiro andar, e assim por diante”.
 
1.8.1. Não obstante reconhecer-se que, ao tempo, o instituto da PHl não correspondia entre nós a uma necessidade económico-social premente, como veio a corresponder mais tarde, anota-se, todavia, no próprio preâmbulo do DL nº40 333, a consagração da figura nos textos legislativos portugueses que o precederam, designadamente, no § 34 do título LXVIII do Livro I das Ordenações Filipinas e no mencionado art. 2335º do CC de 1867.
 
1.8.2. Isto porque a PH, apesar de não estar regulada como instituto e, por isso, não ter de se incorporar num título constitutivo a se, podia, então, resultar de testamento, em que o testador deixava cada andar dum prédio a diverso legatário, ou ter origem na construção de pavimentos por cima de casas térreas de outrem ou até mesmo na construção de edifícios em altura divididos em alojamentos vendidos a pessoas diferentes, conciliando-se, assim, a ambição que todas as famílias têm de possuírem a sua casa, de que não pagam ou não pagarão renda a um senhorio, com a parcimónia dos haveres das classes médias ou operárias e a carestia dos terrenos, e atenuando-se, por outro lado, o grave inconveniente de ampliar demasiadamente a extensão duma cidade e esgotar os terrenos destinados a urbanização, como acontecia com o sistema de casas económicas independentes, com 4 a 8 divisões, que entre nós se estava praticando – Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em comentário ao CCP, volume XI, nº1669.
 
1.8.3. Por conseguinte, não colhe, a nosso ver, a afirmação de que a propriedade por andares não corresponde à PH, pese embora uma eventual falta de espessura de conteúdo que, também nos parece, estará na disponibilidade dos interessados suprir, sem prejuízo de toda a regulamentação de efeitos que, abstraindo do facto que lhe deu origem (4), se possa achar ínsita nos art. 1414º a 1438-A do CC, e se deva considerar aplicável às relações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor do CC de 1966 e, bem assim, do DL nº40 333, por via do disposto no art. 12º do CC.
 
1.8.4. Com efeito, se considerarmos, como Roubier (5), que o ciclo de desenvolvimento duma situação jurídica compreende três momentos: o momento da sua constituição, o momento dos seus efeitos e o momento da sua extinção, representando o primeiro e o terceiro momentos a dinâmica e o segundo a estática dessa situação, podemos encontrar no referido art. 12º do CC as normas que nos habilitam a enquadrar a situação jurídica dos autos na LN ou na LA, consoante aqueles momentos, ou seja, conforme esteja em causa a sua constituição ou o seu conteúdo ou efeitos.
 
1.8.5. Assim, tendo em conta o disposto no art. 12º, nº 2, do CC, diremos que as disposições legais que actualmente regulam o instituto da PH se devem aplicar às situações jurídicas anteriormente criadas naquilo que não contenda com a sua constituição (6), sendo, por isso, de aplicação imediata as normas relativas ao conteúdo e aos efeitos futuros das referidas situações jurídicas (7) que se coloquem com carácter imperativo e, dessa forma, alheadas de qualquer modelação convencional.
 
1.8.6. Postas estas considerações, não se afigura demasiado afirmar que na situação dos autos se encontra já estabelecido um novo trato sucessivo, tendo por objecto cada uma das partes ou fracções que compõem o edifício e as partes comuns, apenas com a diferença de que o registo desencadeador não foi, neste caso, o da constituição da PH mas antes o dos factos jurídicos determinantes da coisificação de cada uma das referidas partes.

1.8.7. Donde, também o cumprimento dos princípios do trato sucessivo e da legitimação (art. 34º e 9º do CRP e 54º e 62º do Código do Notariado) se bastarão aqui com a consideração do trato sucessivo assim estabelecido, não demandando, na nossa perspectiva, outras formalidades ou adaptações à LN, designadamente, a realização de escritura pública de confirmação ou consolidação do regime de propriedade horizontal e o subsequente registo, nos termos do art. 2º, nº1, al. b), do CRP (8).
 
2. A ser assim, como pensamos que é, cumpre agora apurar da essencialidade da identificação física, económica e fiscal do prédio, nos termos do disposto no art. 82º do CRP, por confronto com o conteúdo normalmente devido para a descrição de cada fracção autónoma – art. 83º do CRP-, e da legitimidade para pedir a actualização.
 
2.1. Em face do disposto nos art. 79º e 82º do CRP, por cada prédio é feita uma descrição distinta que deve conter no seu extracto, entre outras menções, a situação por referência ao lugar, rua, números de polícia ou confrontações, a composição, a área e a situação matricial.
 
2.2. À descrição genérica do prédio devem somar-se, no caso de constituição de PH, as descrições distintas de cada uma das fracções autónomas, a abrir por subordinação, na sequência alfabética estabelecida no título e com as menções indispensáveis à sua identificação (9).
 
2.3. No caso dos autos, não havendo um título formal de constituição de PH e decorrendo a autonomia jurídica de cada uma das partes que compõem o prédio directamente dos factos jurídicos aquisitivos, as menções indispensáveis à identificação das fracções ou partes do prédio hão-de constar da descrição deste de modo a que, também no plano descritivo, se definam, em concreto, os objectos das situações jurídicas publicitadas e a publicitar.
 
2.4. Pelo que, se o regime é o da PH, como nos parece ser, a relevância descritiva do prédio bastar-se-ia, quanto a nós, com os elementos que já constam do registo, nomeadamente, a situação por referência ao lugar, rua e confrontações, a área total da unidade predial (10) e a composição externa do edifício que, no seu todo, compõem uma representação genérica da realidade predial, sendo a composição interna e a identificação económica e fiscal menções que apenas interessaria conhecer a respeito de cada uma das partes ou fracções e, portanto, à medida que fossem sendo pedidos novos registos sobre cada uma das partes, posto serem estas os objectos de direitos.
 
2.5. Na nossa perspectiva, o interessado já trouxe para o registo todas as menções que importava acrescentar à descrição do primeiro andar da 2ª sorte, como, de resto, o fizeram antes outros interessados com referência a outras partes do edifício, sendo que, para além da explicação precisa das dúvidas quanto à numeração de polícia e ao facto da entrada ser comum ao 1º andar da 1ª sorte, se indicou e comprovou a área da parte juridicamente individualizada – 67,20 m2 - a sua composição - 6 divisões, cozinha e casa de banho - a sua situação matricial – artigo 1273 – e o seu valor patrimonial – 7 885,26€
.
3. Pelo que, não se mostrando indispensáveis à identificação da fracção ou parte do edifício outras menções, resta apenas por tratar a questão da legitimidade para declarar ou pedir a actualização da descrição.

3.1. Ora, deixando de estar em causa a identificação do prédio e colocando-se, em seu lugar, o problema da identificação do objecto mediato do registo, ou seja, da parte ou fracção objecto de direitos autónomos, facilitada se apresenta quanto a nós a questão da legitimidade em face do disposto nos art. 38º e 90º do Código do Registo Predial.
 
3.2. Na verdade, se nenhuma das menções indicadas com referência ao 1º andar, lado direito, interfere ou se cruza com a identificação das restantes partes do edifício ou mesmo com a descrição genérica do prédio no seu todo (11), bastará, na nossa opinião, que intervenha o titular da dita parte, neste caso representado pelo cabeça-de-casal na herança aberta por óbito dos proprietários inscritos (12), porquanto só a este assistirá também legitimidade para pedir a actualização da descrição quanto àquela parte que se encontra, como as demais que compõem o prédio, juridicamente autonomizada.
 
4. Assim sendo, por não se mostrarem necessários outros desenvolvimentos, propomos
que se dê provimento ao recurso, em consonância com as seguintes
 
Conclusões
 
I – À «propriedade por andares», enquanto situação jurídica constituída no domínio do art. 2335º do CC de 1867, devem aplicar-se os preceitos legais que actualmente regulam o regime da PH nos termos e com os limites definidos no art. 12º, nº2, do CC.
 
II – Com o registo dos factos jurídicos constituídos ao abrigo do referido art. 2335º resulta já publicitado um novo trato sucessivo, agora reportado a cada uma das partes ou fracções do edifício juridicamente individualizadas, e, bem assim, o regime de PH a que o prédio se encontra subordinado pelo que se poderão considerar despiciendos a formalização e o registo de um título confirmativo ou de consolidação da PH.

III – Do extracto da descrição de prédio submetido ao regime de «propriedade por andares» devem constar as menções necessárias à identificação genérica do edifício e, em especial, as que permitam identificar física, económica e fiscalmente cada uma das partes ou fracções juridicamente individualizadas.

IV- O proprietário inscrito de parte ou fracção do edifício juridicamente individualizada tem legitimidade para, isoladamente, pedir a actualização da descrição quanto aos elementos de identificação privativos do objecto do seu direito.

Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 06.08.2007.
 
(1) Ver quanto às posições em confronto, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, págs. 334 a 339.
(2) Ver, sobre a natureza jurídica do direito de propriedade horizontal, Luís A. Carvalho Fernandes, Cadernos de Direito Privado, 15, pág. 3 a 14.
(3) Sobre a evolução histórica e a importância social da PH, ver Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Coimbra, págs. 86/99, e Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, Coimbra, págs. 46/52.
(4) Deve entender-se que a norma não abstrai dos factos constitutivos da situação jurídica sempre que o modo como define o conteúdo ou os efeitos desta é um produto da valoração legal daqueles mesmos factos, isto é, quando os efeitos ou consequências jurídicas que ela determina são o produto da valoração legal de tais factos e variam consoante essa valoração - Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, págs. 18, 98 e 99.
(5) Cfr. Le Droit Transitoire, 2ª edição, 1960, pp.183, citado por Baptista Machado na obra supra referida.
(6) O momento da constituição de uma SJ é aquele em que se completa a hipótese legal e, portanto, aquele em que se desencadeia o evento jurídico (a estatuição), isto é, a alteração no mundo do direito – Baptista Machado, ob. cit., pág. 88.
(7) De acordo com a doutrina de Enneccerus-Nipperdey, inspiradora, no dizer de Baptista Machado, da fórmula do art. 12º do CC, deve distinguir-se entre «regulamentações de factos» e «regulamentações de direitos», sendo as primeiras fixadas por aquelas leis que simplesmente determinam os «efeitos» (consequências jurídicas em geral, incluindo o efeito constitutivo) de um facto e que, em caso de dúvida, se entende que apenas valem para o futuro, e as segundas estabelecidas por aquelas leis que regulam os direitos, «independentemente dos factos constitutivos ou extintivos», devendo presumir-se que elas abrangem também as próprias SsJs já existentes, podendo modificar-lhes o conteúdo – ou até suprimi-lo. – Baptista Machado, ob. cit., págs. 95 e ss.
(8) Cfr. o parecer proferido no Proc. nº RP 86/99 DSJ-CT, publicado no BRN 2/2000, II caderno.
(9) Obviamente, a abertura das descrições subordinadas pressupõe, pelo menos, a existência de um TCPH, ou seja, de um facto jurídico autónomo que as desencadeie e que se dirija especialmente à especificação de todas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, de forma que estas fiquem devidamente individualizadas – art. 1418º do CC-, sendo que, a sua subsistência, enquanto suporte de registos definitivos, estará pautada pelo ingresso definitivo do registo da constituição da propriedade horizontal e pela abertura das descrições das demais fracções – art. 81º, 87º, nº1 a), e 92º, nº1, b) e c), nº2, b), nº6 e nº8, todos do CRP.
(10) Admite-se que a área mencionada aquando da abertura da descrição não corresponda exactamente à área a obter através de um levantamento topográfico baseado em métodos precisos de medição, conforme se retira, aliás, dos documentos juntos ao pedido de conversão. Todavia, não sendo a divergência de áreas de molde a pôr em causa a identidade do prédio ou da realidade material que se pretende fazer representar em sede de registo, não se afigura essencial à realização de registo que tenha por objecto o primeiro andar, lado direito, a indicação rigorosa da área de superfície do prédio.
(11) Já a indicação da área de uma das partes que compõem o rés-do-chão do edifício, como menção que se mostre indispensável à identificação da mesma, poderá, eventualmente, implicar a sua articulação com a área da parte restante ou com a área atribuída ao prédio no seu todo.
(12) A dúvida suscitada no despacho recorrido quanto à autoria da assinatura aposta no verso da requisição afigura-se, na verdade, despicienda porquanto se trata da mesma assinatura aposta em diversos documentos juntos aos autos e no próprio pedido de registo de aquisição – ap.23/20060424 –, estando, de resto, confirmada com a indicação do número, data e entidade emitente do respectivo bilhete de identidade – art. 45º do CRP.