Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.
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19 novembro 2024

Retirar cão da fracção autónoma


Do confronto dos art. 1414º a 1416º do Código Civil (doravante, CC) extrai-se que existe propriedade horizontal quando as fracções autónomas de que se compõe um edifício estão em condições de constituírem unidades independentes, havendo no mesmo prédio fracções individualizadas de propriedade privada, perfeitamente distintas, afectas ao uso exclusivo do proprietário, ao lado de partes comuns adstritas ao uso de todas ou de algumas fracções, objecto de compropriedade.

Neste regime, cada um dos condóminos é proprietário exclusivo da fracção autónoma que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício (cfr. art. 1420º, nº 1 do CC), sendo que desta simbiose entre a propriedade sobre a fracção autónoma e a compropriedade forçada (nº 2 do citado art. 1420º) sobre as partes comuns do edifício resulta que os condóminos sofrem, no exercício deste novo direito, restrições ou limitações ditadas pela necessidade de conciliar os interesses de todos, dado existirem entre eles especiais relações de interdependência e de vizinhança.

Nas relações entre si, os condóminos estão sujeitos, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem, às limitações impostas aos proprietários e, relativamente às partes comuns, às limitações impostas aos comproprietários de coisas imóveis (art. 1422º, nº 1 do CC).

Quanto às suas fracções, os condóminos estão sujeitos não só às restrições e limitações ao exercício do direito de propriedade normal e legalmente impostas em termos gerais, mas também às que decorrem da relação de proximidade ou comunhão em que vivem, visando sempre salvaguardar interesses de ordem pública: interesses públicos e colectivos, relacionados com condições de salubridade, estética e segurança dos edifícios, bem como das condições estéticas, urbanísticas e ambientais (cfr. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2ª ed., pág. 102, referindo o acórdão do TC publicado no DR, II série, de 5/8/99).

Segundo o nº 2, al. d) do citado art. 1422º do CC, é especialmente vedado aos condóminos “praticar quaisquer actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição”.

A detenção de certas espécies de animais domésticos é, precisamente, um exemplo de acto material incluído nestas proibições, dado pelos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, para quem “Todas as restrições de origem negocial, quer quanto ao destino das fracções autónomas, quer quanto aos actos materiais ou jurídicos que os condóminos não podem praticar, fazem parte integrante do estatuto do condomínio, o que equivale a dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, prevalecendo sobre qualquer negócio que com elas se não harmonize” (cfr. Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 426 e 427).

E se o Estatuto do Condomínio, proibir a detenção de animais em qualquer parte comum ou própria, em especial cães, quando estes incomodem os demais utentes do edifício?

Se o animal de estimação, independentemente da raça e porte, que late regularmente a horas tardias, violando consequentemente os direitos de personalidade dos restantes condóminos, por a situação verificada atentar objectivamente contra o direito ao repouso, saúde e tranquilidade dos demais consortes, se o condómino, proprietário do canídeo não cuidar de obstar aquele comportamento, por força daquela disposição oportunamente vertida em sede do Regulamento do Condomínio, estará vedado ao condómino continuar a deter o cão no interior da sua residência.

13 novembro 2024

Obrigação retirar animal

Tribunal: TRP

Processo nº: 0326819
Relator: Fernando Famões
Data: 10-02-2004

Descritores:
  • Condomínio
  • Administrador
  • Legitimidade
Sumário:

I - É legalmente possível que o regulamento ou Estatuto de Condomínio proíba a detenção de animais na parte comum ou própria, sobretudo se atentarem contra o repouso, saúde e tranquilidade dos condóminos.
II - O Administrador do condomínio tem legitimidade para mover acção contra o condómino pedindo que este seja obrigado a retirar o animal.

Texto integral: vide aqui

08 agosto 2024

Danos causados por animais- Responsabilidade


2ª parte: vide aqui

Analisemos agora a seguinte hipótese:

AA é proprietário de uma quinta e de vários animais, incluindo gado bovino. AA utiliza os animais no exercício da sua actividade enquanto produtor de bens alimentares. AA contrata BB, guardador, para alimentar e guardar os seus animais. Certo dia, enquanto AA se encontra ausente da quinta, BB tranca incorrectamente o portão da cerca do gado e, consequentemente, um dos animais foge da quinta em direcção a uma estrada, causando um acidente entre três veículos quando um deles se tenta desviar do animal.

É claro estarmos perante uma situação de danos causados por animais. Contudo, temos dois sujeitos, o proprietário dos animais, AA, e aquele que estava obrigado à vigilância dos mesmos, BB.

A responsabilidade civil de AA existe por ser o proprietário dos animais e os utilizar no seu interesse, uma vez que é por meio deles que produz bens alimentares. Temos, portanto, verificado o primeiro pressuposto. Tal não se basta, mas também tem de existir um dano, que no caso foi o acidente entre três veículos, e os danos produzidos têm de ser um resultado do “perigo especial que envolve a sua utilização”, como dispõe o art. 502º do CC, circunstância que também consideramos verificada no exemplo descrito, uma vez que deter e utilizar animais tem implícitos riscos, sendo um deles o perigo de fuga dos mesmos, e, no caso em apreço, foi a fuga de um dos animais que originou o acidente.

Quanto a BB, por estar obrigado à vigilância dos animais, também será responsável, desta vez nos termos do art. 493º do CC e sobre ele recai uma presunção de culpa, que no exemplo acima descrito não será afastada, pois BB não tomou as diligências necessárias para obstar à produção daqueles danos.

Assim sendo, encontramo-nos perante uma responsabilidade pelo risco por parte do dono dos animais, pois como já tivemos oportunidade de explicar, este utiliza os animais no seu próprio interesse e por isso caber-lhe-á a obrigação de indemnizar independentemente de culpa, e uma responsabilidade subjectiva do obrigado à vigilância, aqui não porque tenha qualquer direito real de gozo, mas sim porque enquanto guardador, passou a ter a detenção daqueles animais, com o dever de os vigiar, falhando nessa função. Podem estas coexistir?

Na jurisprudência existem conclusões diferentes. Por um lado, de acordo com o Ac. do STJ de 13.09.2012, relatado por Ana Paula Boularot, do confronto entre os art. 493º e 502º “podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto este segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2012, Processo 1070/08.9TBGRD.C1. S1, Relator Ana Paula Boularot, disponível em: http://www.dgsi.pt/) Deste modo, hipóteses como a colocada não teriam lugar a concorrência entre duas responsabilidades, respondendo apenas o proprietário AA.

Noutra perspetiva, como se escreveu no Ac. da Relação de Coimbra de 13.04.2010, relatado por Alberto Ruço, “podem coexistir as responsabilidades fundadas tanto no art. 493, como no art. 502, ambos do Código Civil, quando a pessoa obrigada à vigilância do animal é simultaneamente seu proprietário” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.04.2010, Processo 643/07. 1TBSCD.C2, Relator Alberto Ruço, disponível em: http://www.dgsi.pt/ )

Contudo, predominam os acórdãos que admitem a concorrência das duas responsabilidades, ainda que finda a análise concluam por apenas uma delas pelo facto de, nas questões levadas a juízo, existir apenas um sujeito ou, existindo mais do que um, apenas um se verificar responsável, pelo que não lográmos encontrar situação semelhante ao exemplo descrito.

Além de jurisprudência, de acordo com Pires de Lima/Antunes Varela,9 “no caso de o utente haver incumbido alguém da vigilância dos animais, poderão cumular-se as duas responsabilidades (a prevista no art. 493º e a fixada no art. 502º) perante o terceiro lesado, caso o facto danoso provenha da presuntiva culpa do vigilante”. Também o defende o autor Mário Júlio de Almeida Costa, ao escrever “pense-se, designadamente, que a pessoa que utiliza o animal confia a outrem a vigilância deste. Então, à responsabilidade do utente pelo risco (art. 502.º), acresce a responsabilidade do vigilante baseada em facto ilícito, caso não se produza a prova indicada na parte final do nº1 do art. 493º”.

Temos então que estas responsabilidades podem coexistir. Contudo, o Código Civil não dispõe de uma norma que relacione estes dois artigos a título de indemnização ao terceiro lesado.

Parece-nos que a intenção do legislador tem sido a de evitar situações onde haja uma verdadeira concorrência entre a culpa e o risco. Por exemplo, quando existe tanto a responsabilidade do comitente e do comissário, se o primeiro actuou sem culpa, poderá exigir deste o reembolso de tudo o quanto haja pago (nº3 do art. 500º). Aqui, não há a preocupação de determinar a medida da indemnização que a cada um cabe.

O mesmo no caso de uma colisão de veículos em que um dos responsáveis não actuou com culpa. Apesar de, numa primeira análise, ser objetivamente responsável, posteriormente temos que “se houver culpa de algum ou de alguns, apenas os culpados respondem”, conforme o nº 2 do art. 507º do CC, logo a responsabilidade desse condutor seria excluída.

Assim sendo, qual seria a solução para aqui se proceder da mesma forma? Aplicar por analogia a solução apresentada no nosso Código para a responsabilidade do comitente? Recorrer a outra analogia relativamente ao nº 2 do art. 507º do CC, quanto à colisão de veículos, e excluir a responsabilidade do dono do animal?

Ora, excluir a responsabilidade do dono do animal parece-nos contrariar o objectivo da sua responsabilidade existir em primeiro lugar. O lesado tem o direito a haver-se ressarcido dos danos sofridos, mesmo que o dono do animal não tenha tido culpa na actuação irracional do mesmo. Se assim não fosse e a lei consagrasse apenas o regime do art. 493º do CC, muitos seriam os casos em que não haveria lugar à indemnização, pois bastaria ao dono do animal, que aí assumiria um mero papel de vigilante, afastar a culpa presumida ou provar que os danos aconteceriam mesmo que não tivesse culpa.

Relativamente à analogia com o art. 500º do CC, parece-nos que a relação entre o dono do animal e o guardador se assemelha à relação entre o comitente e o comissário. Assim, seria o caso de os tribunais considerarem ambos responsáveis e, no caso de ser o dono do animal a satisfazer a indemnização perante o lesado, gozaria do direito de pedir o reembolso total ao obrigado à vigilância do animal.

Consideramos interessante mencionar, ainda que num tema relativamente distinto, que existem casos de concorrência entre o risco de um veículo e a culpa do lesado (art. 570º do CC) e é ao tribunal quem compete decidir. Conforme o Ac. do STJ de 01.06.2017, relatado por Lopes do Rego, “compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática (…)” /Acórdão do STJ de 01.06.2017, Processo 1112/15.1T8VCT. G1.S1, relatado por Lopes do Rego, disponível em: http://www.dgsi.pt/)

É com esta apreciação do caso concreto que o tribunal, posteriormente, determina se a indemnização devida por parte do condutor se manterá, se será diminuída ou mesmo excluída.

Além disso, se analisarmos este instituto em fase anterior ao Código Civil, o Professor Vaz Serra efectuou um Estudo denominado “Responsabilidade pelos Danos Causados por Animais”, in BMJ 86 do ano de 1959. Aí, termina apresentando uma proposta de articulado e, «no art. 4º, sob a epígrafe “Encarregados de vigilância do animal. Pluralidade de responsáveis”, pode ler-se: (…) 3. Quando responderem, ao mesmo tempo, o utente do animal e a pessoa encarregada da vigilância deste, a sua responsabilidade é solidária. 4. Se os utentes do mesmo animal forem vários, responde cada um na proporção do seu interesse nele, (…)».

Ora, os vários responsáveis pelos danos têm uma responsabilidade solidária, nos termos do nº 1 do art. 497º do CC, sendo que este preceito também refere que o direito de regresso entre eles deve ser exercido na medida das respetivas culpas, conforme o seu nº 2. Não obstante, o exemplo que temos para análise impossibilita concretizar a medida da culpa de um dos sujeitos, pois não a há.

Ainda assim, e porque as “propostas de articulado transitaram, na sua essência – responsabilidade por facto ilícito e pelo risco -, para o CC, pelo que tem toda a pertinência, na compreensão do actual regime, o estudo feito”, parece-nos que seria de admitir uma interpretação extensiva do preceituado no art. 497º do CC. Nesse sentido, parece-nos que adequado seria caber ao Tribunal a elaboração de um juízo de equidade, tal como na concorrência entre o risco de um veículo e a culpa do lesado, e determinar para cada circunstância se o dono do animal será ou não responsável em conjunto com o obrigado à vigilância e, em caso afirmativo, ser o Tribunal a determinar para os vários responsáveis como respondem na proporção do seu interesse nele (animal).

06 agosto 2024

Danos causados por animais - Dono


1ª parte: vide aqui

Posteriormente, nos art. 499º e seguintes do CC surge uma outra subsecção da responsabilidade civil: a responsabilidade civil pelo risco.

Aqui, deixamos de assentar a obrigação de indemnizar na prática ou omissão de uma conduta do agente, mas sim no facto de, em determinadas situações, empregarmos meios dos quais obtemos vantagens, meios esses que envolvem determinados riscos. Esta responsabilidade fundamenta-se no princípio ubi commoda, ibi incommoda, pois quem tira proveito de uma determinada actividade perigosa, que acarreta riscos, deve também responsabilizar-se pelos danos que dela possam advir.

Por esse motivo, já não está patente neste regime a apreciação da culpa, uma vez que, se o agente cria uma situação de risco para dela retirar proveitos, deverá ser responsável pelos danos resultantes dela, independentemente da sua culpa.

É aqui que se insere a segunda hipótese de responsabilidade que pretendemos analisar, a responsabilidade do utente do animal. Quanto a este, sabemos que “quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem (…)”, conforme se encontra previsto no art. 502º do CC.

Não se confunda este preceito com a responsabilidade anteriormente explicada, pois enquanto essa assenta na mera obrigação assumida de guardar e vigiar os animais e, por sua vez, uma falha no exercício dessa obrigação (a já mencionada culpa in vigilando), a ideia aqui presente é a de que quem utiliza no seu próprio interesse animais, que são seres que não dispõem de racionalidade suficiente e, consequentemente, constituem fonte de perigo pela imprevisibilidade dos seus comportamentos, deve acarretar com as consequências do risco especial que envolve a utilização dos mesmos.

Uma vez que, como acima descrito, não se tem em consideração o critério da culpa, nesta responsabilidade cumpre verificar os seguintes pressupostos: a utilização dos animais no seu próprio interesse e em seu proveito, que ocorra um dano e que este proceda do perigo especial que envolve a utilização desses animais, ou seja, a verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano ocorrido.

Outra particularidade do disposto no art. 502º do CC é a de que, diferentemente do regime preceituado no art. 493º do mesmo compêndio, esta responsabilidade abrange sujeitos diferentes, estando aqui compreendidos aqueles que têm um direito real de gozo sobre o animal, que são, tal como refere Antunes Varela “o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc.”.

Não obstante, é certo que, normalmente, é o utente do animal aquele que também o guarda, o que leva a que várias vezes recaia sobre si não só a responsabilidade pelo risco, como também a do art. 493º do CC. Contudo, apesar do dever de vigilância recair originariamente sobre ele, este consegue “afastar tal presunção, provando que outra pessoa assumiu esse encargo, tendo o animal à sua guarda”, ou seja, provando que, por meio de algum negócio jurídico, se transferiu o domínio daquele animal para outrem, passando este a ser o seu detentor e obrigado à vigilância.

Ilidida essa presunção, passamos a ter, então, duas pessoas na equação com direitos e deveres sobre o animal.

05 agosto 2024

Danos causados por animais


Os danos causados por animais são um tipo de danos que geram responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito ou pelo risco. 

Existem, particularmente, duas situações em que tal acontece quando se trata da guarda e/ou utilização dos mesmos. Em primeiro lugar, o Código Civil apresenta-nos uma responsabilidade subjectiva, no art. 493º do CC, daquele que está obrigado a vigiar os animais, da qual está dependente a verificação de cinco pressupostos cumulativos, estando um, aliás, presuntivamente verificado como iremos explicar adiante. 

Já a segunda disposição que nos é apresentada prende-se com a existência de uma responsabilidade civil objetiva derivada da utilização dos animais para satisfação do interesse do agente, prevista no art. 502º do CC. Tal encontra-se justificado pelo princípio ubi commoda, ibi incommoda, pois quem tira proveito de uma determinada actividade perigosa, que acarreta riscos, deve também responsabilizar-se pelos danos que dela possam advir.

Passemos então a estudar o âmbito de aplicação de cada uma delas, partindo, em primeiro lugar, da explicação sucinta dos dois tipos de responsabilidade civil onde estas situações se enquadram, a subjectiva e objectiva, para que as possamos distinguir e, posteriormente, teremos uma hipótese em que ambas se verificam para que possamos discutir casos em que existe concorrência destas responsabilidades, ou seja, uma concorrência entre o risco e a culpa.

O art. 502º do CC sanciona a responsabilidade objectiva dos que utilizam quaisquer animais no seu próprio interesse, relativamente aos danos que os mesmos causarem, «desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização».

Perigo especial: perigo característico ou típicos dos animais utilizados, variando com a natureza destes.

Exige-se que o dano se encontre numa adequada correlação com o perigo específico do animal (por exemplo, quando um cavalo se espanta), daí que se afaste a responsabilidade objectiva quando o dano se mostre consequência física que move o corpo do animal, ou se este segue apenas a vontade da pessoa que o conduz, ou ainda se causou dano como o produziria uma coisa inanimada (por exemplo, quando uma pessoa tropeça num cão tranquilamente deitado, ou se o mesmo serve de objecto de arremesso).

Encontram-se abrangidos pela formulação do art. 502º do CC, todos os que utilizarem animais no interesse próprio, sendo proprietários ou como se o fossem. Exclui-se, por exemplo, o que experimenta um animal antes de o adquirir. Esse, sim, responde nos termos do art. 493º, nº 1 do CC, que estabelece uma presunção de culpa em relação a quem tenha assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais.

Perante o lesado, poderá verificar-se concorrência dos pressupostos das duas formas de responsabilidade previstas nos art. 493º e 502º, ambod d CC. Pense-se, designadamente, que a pessoa que utiliza o animal confia a outrem a vigilância deste. À responsabilidade do utente pelo risco (cfr. art. 502º do CC), acresce a responsabilidade do vigilante baseada em facto ilícito.

Continuação: vide aqui

16 fevereiro 2023

(Con)vivência vs barulho da vizinhança - IV


Diferentes ruidos de vizinhança
 
Animais
 
Dedica-se um capítulo, ainda que sucinto, relativo ao tema dos animais de companhia precisamente pelo barulho que os mesmos podem provocar e afectar as fracções vizinhas. Relembrando a análise relativa à constituição da PH e que a mesma deve constar de TCPH, nos termos das disposições dos art. 1418º, 1429º-A e 1431º do CC, importa agora referir que no âmbito do direito de propriedade, cada condómino é detentor do direito de propriedade do seu imóvel, ou dito de outro modo, da sua fracção autónoma. E como tal, goza de modo pleno e exclusivo do direito de uso, fruição e disposição da sua fracção. 
 
Não obstante desse gozo pleno e exclusivo se encontrar limitado ao cumprimento das restrições impostas por lei, não decorre da lei qualquer proibição à existência de animais de companhia numa fracção autónoma, mas sim ao proprietário de cada fracção, não podendo o condomínio ter qualquer ingerência sobre a decisão que pertence a cada condómino e à sua fracção. 
 
A ingerência do condomínio, isto é, dos restantes condóminos, apenas ocorre quando têm de se pronunciar sobre questões relativas às partes comuns em assembleia de condomínio. Todavia, o deliberado numa assembleia de condomínio, assim como o que ante venha ou seja transposto para o respectivo regulamento condomínio quanto à existência e/ou permanência de animais, e ainda o número de animais nas fracções autónomas apenas vincula quem aprovou. Assim, o único meio de proibição da detenção de animais de companhia numa fração autónoma apenas pode surgir do título constitutivo (16).

Por sua vez, o DL nº 314/2003 de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses (PNLVERAZ) - prevê no seu art. 3º nº 1 “O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e ausência de riscos hígio-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.”; e ainda no nº 2 “Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.” e, por fim o nº 3 “No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número anterior.”
 
No que concerne aos barulhos e ruídos provenientes de animais de estimação, comummente o latir e o miar, entre outros, aplica-se a lei geral do ruído. Compreende-se que em causa não falamos de barulhos do dia-a-dia, provenientes do uso normal de habitação e por isso suportáveis por qualquer pessoa. Antes, estaremos perante as situações de manifestações de um ladrar ou miar considerado intenso, repetitivo e incomodativo, de forma a impeça ou a dificulte reiteradamente o descanso dos restantes condóminos. 
 
Uma vez mais, o direito de personalidade, no qual se inclui o direito ao descanso e ao sossego derroga o direito à habitação quando da mesma ocorrem barulhos provenientes da existência de um animal. Embora ambos sejam direitos constitucionalmente protegidos, isto é, os direitos de personalidade e os direitos de habitação, aqui entendidos como o direito a ter um animal e nessa medida entendido como fundamental para o desenvolvimento e harmonia de um lar, na verdade, este direito pode ser derrogado pelos direitos de personalidade (17).

Uma vez mais, quando o barulho ocorra entre as 23 horas e as 07 horas da manhã, qualquer condómino pode apresentar queixa e as autoridades policiais adoptam medidas para fazer cessar o barulho. Se o barulho ocorrer entre as 07 horas e as 23 horas, as autoridades policiais podem fixar um prazo para se pôr fim ao problema. A violação deste período de descanso constitui uma contra-ordenação ambiental, punível com coima (18).

Notas

(16) Discorre do Ac. do Julgados de Paz de Coimbra, Processo 42/2011-JP, de 29-08-2011, relator, Dionísio Campos, “(...) Os órgãos do condomínio existem para a administração apenas das partes comuns (art. 1430º, nº 1 do CC), e não já das fracções autónomas, o que impõe uma demarcação rigorosa entre o que os órgãos do condomínio podem deliberar e executar e o que, não estando na sua competência, cai fora do seu âmbito de actuação. Assim, se um condómino, dentro da sua fracção privativa, produz ou permite barulhos (por exemplo, de cães) superiores ao permitido pela lei administrativa e a horas interditas a tais ruídos, perturbando os seus vizinhos, viola o dever de não produção de ruídos de vizinhança consagrado no art. 1346º do CC e no Regulamento Geral do Ruído. 
(...) Assim, se a assembleia de condóminos aprovar uma cláusula do regulamento que proíba os condóminos de deterem animais domésticos nas suas fracções, estaremos perante uma norma que, em princípio, não vincula os condóminos, dado que atinge o domínio privativo da propriedade sobre as fracções autónomas, cujo aproveitamento pertence exclusivamente aos respectivos proprietários. Isto não significa, obviamente, que os condóminos não estejam sujeitos às restrições de vizinhança nas relações entre si, uma vez que a delimitação negativa da propriedade opera igualmente no campo da propriedade horizontal. 
Porém, em caso de violação de um dever de vizinhança pelo proprietário de uma fracção, cabe ao condómino ou condóminos afectados reagir nos termos gerais de Direito, incluindo o pedido judicial de condenação na cessação da actividade ilícita e a indemnização pelos danos sofridos (cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pp. 733-734). Mas uma coisa é uma deliberação restritiva imposta a outrem, outra são os comportamentos voluntariamente contratualizados e assumidos. 
Assim, nada obsta a que os condóminos se vinculem voluntariamente a certos comportamentos, dentro dos limites da sua autonomia contratual (cfr. Sandra Passinhas, Os animais e o regime português da propriedade horizontal, 2006, pp. 833-873). Porém, tais acordos condominiais vinculam apenas quem a eles se obrigou, e não já terceiros, como é o caso do arrendatário que a tal não se tenha concretamente obrigado. (...)”,inhttp://www.dgsi.pt/cajp.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/264977471e50638480257ac4003b1804?OpenDocument&Highlight=0,animais,barulho,condom%C3%ADnio,ru%C3%ADdo

(17) Discorre do acórdão TRL, Processo 1229/05.0TVLSB.L1-2, de 01-10-2009, relatora Ondina Carmo Alves, “(...) como refere CAPELO DE SOUSA, ob. cit., 547, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflictuantes direitos de outro tipo». 
Urge, portanto, averiguar se, no caso concreto, a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, visto que, como antes ficou dito, o sacrifício e limitação do direito considerado inferior – direito de propriedade - deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante. Para o efeito, importa lançar mão dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, ou seja, há que sopesar a adequada proporção entre os valores em análise, aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva. No caso em apreço, não ficou demonstrado que os cães pertencentes aos réus estivessem constantemente a ladrar não parando de ladrar, de dia e de noite e que, por isso, os autores estivessem impossibilitados ou com enormes dificuldades em dormir e que a filha dos autores tivesse, por virtude desse facto, dificuldade de se levantar de manhã. 
(...) É verdade que ficou provado que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir, admitindo-se que em consequência do ladrar dos cães, mas por provar ficou que, por essa circunstância, os autores não tenham conseguido dormir inúmeras noites –v. resposta negativa dadas aos artigos 20º da Base Instrutória. 
(...) A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros como, de resto, ficou demonstrado nos autos. Os próprios autores, pese embora sofram de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães dos réus, eles próprios são igualmente produtores de ruído – v. nºs 23 a 25 dos Fundamentos e Facto –sendo certo que os autores também têm na sua habitação um cão que não pode deixar de ladrar, sendo susceptível de causar algum incómodo a outras pessoas igualmente hiper-sensíveis ao ruído. 
Em face da prova produzida entende-se que a reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada. Não é aceitável, atento o circunstancialismo fácito apurado, que os réus/apelados não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães. (...)”, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/40604c53baeec5978025767a0061e331?OpenDocument
 
(18) Discorre do acórdão do TRL, Processo 613/08.2TBALM.L1-2, de 15-10-2009, relator Neto Neves, “(...) Para o caso, tratando-se de ruídos incómodos provocados por animais de estimação, deverá questionar-se a violação grave e reiterada de regras de sossego. (...) Como se referiu, alguns moradores do prédio, dois das fracções imediatamente por cima e por baixo da arrendada e um terceiro de uma fracção do mesmo andar desta, queixam-se da existência de barulho provocado pelos cães do R. e da interveniente, que ladram durante o dia e esporadicamente durante a noite, quando tocam ou batem à porta daqueles ou quando sentem alguém no patamar do 4º andar ou aquando da paragem do elevador. Este facto não aponta para uma gravidade extrema do ruído. 
Por um lado, o barulho é essencialmente diurno – o qual, por regra, é absorvido pela própria actividade e conversas de cada morador, também elas geradoras de ruído, frequentemente acrescidas de sons hoje em dia provenientes do funcionamento de aparelhos domésticos, entre eles os rádios e as televisões e, portanto, de pequeno impacto, por via de regra, não sendo normal que se durma nessa parte do dia – e, por outro lado, só esporadicamente nocturno, mas, sendo este devido a factos como o tocarem ou baterem à porta do R., passagem de pessoas no patamar do andar ou paragem nele do elevador, não se evidencia que o ladrar dos cães seja constante, prolongado e que ocorra a horas muito tardias da noite. 
(...) Na apreciação da gravidade do ruído deve, ainda, ter-se em conta que, devendo embora ser sempre respeitado no essencial o direito ao sossego e repouso nocturno, mormente em prédios em que, pelo número de habitações que os compõem, os ruídos mais facilmente se multiplicam, é socialmente tolerada, mesmo em tais prédios, a existência de animais domésticos de companhia e de pequeno porte, ainda que causadores de um certo nível de barulho, desde que nem elevado nem constante ou muito repetitivo e não persistentemente nocturno. 
Não se vê, pois, que a conduta do R. e mulher, ao possuírem os três cães causadores dos ruídos incómodos apurados, se revista de gravidade e gere consequências que torne inexigível para um locador normal a subsistência do contrato de arrendamento. (...), in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a7514017d204b39480257673005f3d5d?OpenDocument&Highlight=0,animais,barulho,condom%C3%ADnio,ru%C3%ADdo

10 fevereiro 2023

Obrigados a guardar dois cães que ladram de noite e incomodam vizinhos


O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a aceitação de uma providência cautelar decidida pelo Cível de Viana do Castelo que obrigou um casal da zona a fechar dois cães de raça Serra da Estrela, entre as 21:00 e as 7:00, por forma a que, não perturbem, com os seus latidos, um outro casal que mora na casa contígua. Se não cumprirem a medida, pagarão 100 euros por dia, a título de sanção pecuniária compulsória.

Na acção, os queixosos diziam que os dois cães adultos daquela raça, ladram diariamente, contínua e persistentemente, dia e noite, desde 2020, com início à chegada a casa pelas 18:30/19:00, os donos, intensificando-se pelas 20:30 e até as 02:00 da madrugada, comportamento esse que, por vezes, dura até às 06:30 da manhã.

Acrescentaram que ladram no jardim frontal e no passeio da casa (com cota mais alta que a da casa dos queixosos), e de frente para a sua residência, que fica a menos de cinco metros de distância.

Acresce que uma vizinha tem uma necessidade acrescida de repouso por força de um grave problema de saúde de que foi acometida em 2018.

Afirma ainda que “um ano após a privação regular de repouso, provocada pelo ladrar contínuo dos animais, a sua situação clínica agravou-se, sendo que, actualmente, só adormece com o auxílio de medicação para o efeito, e também carece da toma de medicação para o controlo do seu estado de ansiedade diurno”.

E mais: “A situação agita e perturba os dois filhos menores do casal (um com nove anos e outro com quatro, na hora de dormirem, tanto assim que o mais velho passou a tomar medicação natural para a indução mais precoce do sono, ao que acresce que, em consequência do comportamento dos animais, deixaram de frequentar a sala de estar, onde permaneciam até à hora de se deitarem”.
 
Donos refutam

Os proprietários dos animais refutaram as imputações dos vizinhos, dizendo que “ladram, sim, quando vêem alguém estranho, quando existem barulhos estranhos, quando alguém bate ao portão, quando estão na presença de gatos no quintal ou no caminho, ou quando são provocados por alguém, como sucedeu com o filho dos requerentes, que, em meados de Junho de 2022, mandou um pau para acertar na cadela”.

Disseram que os queixosos, que residem praticamente em frente, são proprietários de um conjunto de gatos que andam continuamente soltos no caminho e frequentemente tentam e passam, muitas vezes, para o quintal dos requeridos, o que faz com que os cães ladrem”.

E garantiram que, desde Junho de 2021, os requeridos vêm guardando os seus cães durante a noite, resolvendo a situação.

09 fevereiro 2023

Os animais e o regime português da PH - Conclusão


Podemos agora reafirmar o que já dissemos em sede de introdução: o condomínio é um espaço de convívio e nesse convívio os animais participam não como coisas mas como conviventes. Como é natural, e de acordo com as regras da sã convivência, entre conviventes é necessário suportar os pequenos incómodos causados pelos outros. Quando esses incómodos ultrapassam o grau de razoabilidade e de tolerabilidade, o legislador coloca à disposição, através de meios de direito público ou de direito privado, uma série de meios e instrumentos adequados e bastantes para a protecção contra danos causados pela detenção de um animal numa fracção autónoma.

A interpretação das proibições de detenção de animais, constantes do título constitutivo ou resultantes de acordo condominial, deve ser feita de acordo com referentes constitucionais e, tendo em consideração o princípio da unidade do ordenamento jurídico, as valorações feitas em sede de Direito Civil, ao nível do direito de vizinhança e da tutela da personalidade.

As deliberações da assembleia de condóminos e as decisões do administrador, que regulem a detenção de animais num prédio em propriedade horizontal, têm de ser justificadas pelo interesse colectivo do condomínio, enquanto elemento conformador da actividade administrativa.

Por último, uma palavra quanto à actividade judicativa concreta. Ainda que no actual quadro terminológico do direito português os animais sejam considerados coisas, em sede de valoração concreta, defendemos que o julgador deve ponderar o valor pessoalmente constitutivo que a detenção de um animal de companhia tem para o seu dono, especialmente para efeitos de interpretação do artigo 335º.

Para mais e melhor informação, nomeadamente, sobre a legislação, vide aqui: https://apropriedadehorizontal.blogspot.com/2023/02/legislacao-relacionada-com-os-animais.html


Os animais e o regime português da PH - A tutela da personalidade


A tutela da personalidade

Como já foi assinalado, muitas vezes a actividade desenvolvida na fracção autónoma não afecta outra fracção autónoma, mas antes os próprios participantes no condomínio, em aspectos diversificados da sua personalidade. Pode um condómino ouvir música na sua fracção autónoma, pela noite dentro, incomodando os vizinhos e perturbando o seu sono e repouso? Será lícito que um condómino coloque o som da televisão no máximo se o seu vizinho está em período de convalescença, após uma intervenção cirúrgica delicada? O direito de vizinhança, como vimos acima, não tutela estes interesses, sendo necessário recorrer à tutela própria da personalidade, em alguns dos seus aspectos, sobretudo o direito à tranquilidade, o direito ao repouso e o direito ao sono (72). O direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade são constituintes do direito à integridade física, e a um ambiente de vida humano, em último termo, do direito à saúde na sua vertente negativa, que consiste no direito a exigir do Estado ou de terceiros que se abstenham de qualquer acto que prejudique a saúde. Situações como as acima referidas consubstanciam um conflito entre um direito de propriedade sobre uma fracção autónoma e um direito de personalidade do condómino-vizinho. O “poder utilizar” de um entra em colisão com o respeito pelo “poder ser” do outro (73), por exemplo na situação em que o condómino tem na sua fracção autónoma um cão que ladra constantemente e pela noite dentro, impedindo ou dificultando o repouso e o sono dos restantes condóminos.

O direito geral de personalidade, segundo a definição de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA (74), é “o direito de cada homem ao respeito e à promoção da globalidade dos elementos, potencialidades e expressões da sua personalidade humana bem como da unidade psico-físico-sócio-ambiental dessa mesma personalidade humana (v.g. da sua dignidade humana, da sua individualidade concreta e do seu poder de autodeterminação), com a consequente obrigação por parte dos demais sujeitos de se absterem de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender tais bens jurídicos da personalidade alheia, sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”.

O art. 70º, nº 1, estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Mais uma vez, nas palavras de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, o bem da personalidade humana juscivilmente tutelado é definido como “o real e o potencial físico e espiritual de cada homem em concreto (sublinhado nosso), ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrados”. A nossa lei tutela cada homem em si mesmo, concretizado na sua específica realidade física e na sua particular realidade moral (75). Em consonância com este princípio, a jurisprudência tem entendido (76), pacificamente, que, no julgamento destes casos, o julgador não deve atender a um tipo de pessoa médio, ao cidadão normal e comum, mas a cada pessoa em concreto. O poder-utilizar de cada fracção autónoma deve respeitar os que lhe estão próximos, e o poder-ser do outro, com tudo o que este tem de fraqueza ou contingência. Se o ladrar de um cão é suportável por uma pessoa normal, mas no edifício habitam uma pessoa idosa, um doente ou um bebé, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis (77), então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho.

A fundamentação legal para a prevalência do direito de personalidade do vizinho sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial do detentor do animal, encontra-se no art. 335º, nº 2, segundo o qual, havendo colisão de interesses desiguais ou de espécie diferente (78), prevalece o que deva considerar-se superior (79). Perante um conflito entre um direito de natureza patrimonial (direito à exploração de uma actividade comercial ou industrial incómoda ou à livre utilização de um prédio) e um direito de carácter pessoal ou direito de personalidade de outrem, o conflito deve ser decidido a favor do direito de personalidade. Assim vem acontecendo, desde há longa data, nos nossos tribunais.

Casos especiais de valoração

Quando o juiz tem de valorar um caso concreto de conflito entre a faculdade de deter animais numa fracção autónoma e o direito de personalidade de outro condómino, não pode deixar de atender ainda ao valor específico que um animal de companhia tem para o seu dono, e que pode ser, inclusive, constituinte da sua personalidade. De facto, os animais, ainda que considerados pelo nosso ordenamento jurídico coisas (nos termos do art. 202º, nº 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama (80) propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade (81). Muitas pessoas detêm objectos que sentem como se fossem quase parte delas próprias; estas coisas estão ligadas profundamente à sua própria personalidade porque são o meio através do qual se constroem continuamente enquanto entidades no mundo. O critério para avaliar o significado da relação de alguém com um objecto é o do tipo de dano ou sofrimento que a sua perda causa. Neste sentido, um objecto está relacionado com a construção da personalidade de uma pessoa se a sua perda causa um dano que não pode ser reparado pela sua substituição. O oposto de ter um objecto que se torna parte da própria pessoa é ter um bem perfeitamente fungível por outro de igual valor de mercado; estes objectos têm um valor meramente instrumental para a auto-constituição pessoal.

Neste quadro conceptual, os animais de companhia, enquanto propriedade, são constitutivos da personalidade de cada indivíduo (82). Os animais enriquecem as nossas vidas, têm um efeito positivo no comportamento e na saúde humanos, podem melhorar os ânimos e exercer uma influência importante nas crianças, nos idosos e nos deficientes. As pessoas que, por sofrerem de doenças graves ou pela idade, estão confinadas às suas casas, retiram um benefício terapêutico, mesmo espiritual, da presença de um animal. Àqueles que vivem sozinhos, os animais oferecem consolo e muitas vezes até uma razão para viverem. As crianças aprendem o valor da responsabilidade e da disciplina, desenvolvendo um sentido de protecção e de generosidade. Aos adultos, um animal em casa pode ainda ser uma fonte de segurança.

Na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono (83), por exemplo para uma pessoa que viva sozinha, e ao trauma psicológico que pode causar a perda de um animal. Pode acontecer que um conflito, que começou por ser um conflito entre um direito de propriedade sobre o animal e um direito de personalidade, se transforme, por força das circunstâncias do caso concreto, num conflito entre dois direitos de personalidade. Imaginemos que, num edifício constituído em propriedade horizontal, um dos condóminos é doente e vive sozinho, tendo apenas por companhia um cão que detém na sua fracção autónoma, e um vizinho, alérgico a animais, vem requer em tribunal o afastamento do cão do edifício. Ora, nesta situação, o juiz está, mais do que a resolver um conflito entre um direito de propriedade e um direito de personalidade, entre o poder-utilizar da fracção autónoma e o poder-ser do condómino-vizinho, a resolver um conflito entre dois direitos de personalidade: o direito à realização pessoal, à tranquilidade psíquica, à segurança do dono do animal e o direito à saúde do condómino vizinho. Neste caso, a valoração judicial já cabe no âmbito do art. 335º, nº 1: “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”. A decisão poderia ser, num caso concreto, estabelecer para um dos condóminos o uso do elevador e para outro o uso das escadas, ou o estabelecimento de horas em que o animal pode circular nas partes comuns.

Se existe no edifício um animal que ofenda o condómino no seu direito à tranquilidade, ao repouso ou à saúde, para tutela da sua personalidade, os condóminos podem utilizar variados meios que a lei coloca ao seu dispor (84): a acção directa, actos de polícia, procedimentos cautelares (85), o processo especial de tutela da personalidade, previsto no art- 1474º CPC (86), que adjectiva o art. 70º, nº 2, do CC, e a sanção pecuniária compulsória (87). Nos termos do art. 70º, nº 2 (tutela geral da personalidade), independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida na sua personalidade física ou moral pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

A sanção pecuniária compulsória, prevista e regulada no art. 829º-A, permite ao tribunal condenar o inadimplente ao pagamento de uma quantia pecuniária, segundo critérios de razoabilidade, por cada dia de atraso no cumprimento, ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

Nos termos do art. 2º, da Lei 231/93, de 26 de Junho, a GNR tem por missão geral: manter e restabelecer a segurança dos cidadãos e da propriedade pública, privada e cooperativa, prevenindo ou reprimindo os actos ilícitos contra eles cometidos (alínea b), e auxiliar e proteger os cidadãos e defender e preservar os bens que se encontrem em situações de perigo, por causas provenientes da acção humana ou da natureza (al. g). E nos termos do art. 2º da Lei 5/99, de 29 de Janeiro, é competência da PSP garantir a manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas (alínea b) e garantir a segurança das pessoas e dos seus bens (al. f).

Cabe ainda referir o art. 336º, que permite o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. A possibilidade de acção directa está, todavia, sujeita ao seguinte limite: a acção directa não é lícita quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
 
Notas:
 
(72) São três os artigos da CRP a ter aqui em conta: o art. 25º, nº 1, que estabelece a inviolabilidade da integridade física e moral das pessoas; o art. 64º, nos termos do qual todos têm direito à protecção da saúde; e o art. 66º, nº 1, que dispõe o direito de todos a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado. Os dois últimos são direitos sociais, mas de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que se aplica o seu regime (art. 17º da CRP). O art. 2º, da Lei de Bases do Ambiente, concretiza que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, incumbindo ao Estado, por meio de organismos próprios e por apelo a iniciativas populares e comunitárias, promover a melhoria da qualidade de vida, quer individual, quer colectiva.

(73) Segundo MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1990, pág. 206, os direitos de personalidade constituem “um círculo de direitos necessários, um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa”.

(74) O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pág. 93.

(75) Cfr. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 116.

(76) Cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Fevereiro de 1987, in CJ, I, pág. 141: “os ensaios de uma orquestra, quando perturbadores do direito à tranquilidade dos vizinhos violam o direito à saúde e à integridade física e moral das pessoas, como um direito eminentemente pessoal. Nestes casos o julgador, ao aplicar a lei, não deve atender a um tipo humano médio, ao conceito de cidadão normal e comum, mas à especial sensibilidade do lesado, tal como é na realidade”. Esta doutrina foi seguida pelo acórdão da Relação do Porto, de 6 de Fevereiro de 1990, in CJ, I, pág. 92.

(77) RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 232, nota 491, citaHubmann, considerando que “cada um tem de suportar os pequenos aborrecimentos causados ocasionalmente pelos seus vizinhos, mas já não tem de suportar uma chicana sistemática”. A vida em comum seria impossível sem cada um sofrer certas incomodidades, nas palavras de FRANÇOIS CHABAS, Biens, Droit de propriété et ses démembrements, Leçons de Droit Civil por HENRI e LÉON MAZEAUD e FRANÇOIS CHABAS, tomo II, 10.º volume, 8.ª ed., Montchrestien, Paris, 1994, pág. 98.

(78) “Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são “abertos”, “móveis”, e, mais precisamente esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si”. Assim, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª ed., tradução de José Lamego, FCG, Lisboa, 1989, pág. 491.

(79) “Quando se trata de bens constitucionais, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. (...) Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”. Assim, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,1998, pág. 1098.

(80) Na doutrina anglo-saxónica, MARGARET JANE RADIN, in Reinterpreting Property, 1993, pág. 35 e ss., chama-lhe propriedade constitutiva, para evitar o equívoco resultante da expressão personal property.

(81) O valor preponderante, e muitas vezes exclusivo, de um animal de companhia para o seu dono não é económico. Como considera STEVEN M. WISE, “Recovery of Common Law damages”, i, nota 2, se o valor económico de um animal não é mais que incidental para o seu dono então ele não pode ser definido como um animal de companhia.

(82) Cfr. STEVEN M. WISE, “Recovery of Common Law damages”, pág. 67.

(83) O acórdão da Relação do Porto, de 2.05.2002, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf, considerou viável o pedido de indemnização, por danos não patrimoniais, relacionados com a morte de um cão, fundado na privação do direito de propriedade do impetrante sobre o animal. O tribunal considerou que o desgosto de perder o animal, pelo qual os autores nutriam grande afeição, não é uma mera incomodidade ou contrariedade, mas antes assume dignidade de reparabilidade por dever ser considerado, à luz do critério acolhido no artigo 496.º, com gravidade tal que o faça merecer a tutela do direito.

(84) Para a violação dos direitos de personalidade valem os princípios gerais da responsabilidade civil. O acórdão do STJ, de 13 de Março de 1986, BMJ, n.º 374, 1988, págs. 443 e ss., confirmou o pagamento de uma indemnização de Esc. 100.000$00, para ressarcimento dos prejuízos resultantes do barulho produzido em casa dos vizinhos, provenientes do bater de portas, do arrastamento de móveis, e dos aparelhos de rádio e televisão em funcionamento. A Autora teve de recorrer a tratamentos médicos, tendo sido forçada a pedir a pessoas amigas que lhe facultassem pernoitar em suas casas por não poder suportar os ruídos que a maltratavam na sua habitação. Segundo o acórdão, “nem interessa distinguir se a ofensa é cometida deliberadamente ou não, pois em qualquer hipótese sempre existe a ofensa, e, no caso em análise pelo menos houve negligência dos recorrentes por isso que não empregaram as cautelas devidas e não alteraram seus comportamentos mesmo depois da prevenção que lhes foi dirigida quanto ao estado da demandante e aos cuidados que requeria”.

(85) Decidiu o Tribunale di Napoli, 25.10.1990, in Giustizia Civile, 1991, I, 446, que o juiz pode ordenar como procedimento de urgência o afastamento de cães dos apartamentos dos condóminos se causam distúrbios e incómodos, entregando a execução aos órgãos públicos com a obrigação de fechá-los em canil (público ou privado) ou de os ter sob custódia de privados, à escolha do proprietário, com obrigação de não o deixar livre no exterior.

(86) Sobre a execução destas acções, v. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, págs. 481 e 482.

(87) V. ainda as normas aplicáveis à detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro.

Os animais e o regime português da PH - As regras de vizinhança

As regras de vizinhança

É pacificamente aceite entre nós que as regras gerais do direito de vizinhança se aplicam não só a prédios independentes, mas também às fracções autónomas de um edifício constituído em propriedade horizontal. 

As restrições de vizinhança são restrições derivadas da necessidade de coexistência (68), que visam regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos, “em consequência da solidariedade dos seus direitos, ou seja, em vista da impossibilidade de os direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos de vizinhança” (69).

Nos termos do art. 1346º, o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel (sublinhado nosso) ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam. 

Tal como vimos acima, deter um animal numa fracção autónoma cai no âmbito de uma utilização normal desta, logo, o conflito de vizinhança só pode ser concebido como resultante de cheiros ou ruídos provocados por animais que causem um prejuízo substancial para o prédio vizinho. 

Como diz MANUEL HENRIQUE MESQUITA (70), “o prejuízo deverá ser aferido pelo fim a que esteja afectado o imóvel e não pelas condições especiais em que porventura se encontre o respectivo proprietário”. Assim, o dono de uma casa de habitação não pode opor-se aos ruídos que emanem de outro prédio, se “tais ruídos não prejudicarem substancialmente o uso do prédio e apenas tiverem essa consequência no caso concreto, pelo facto de o respectivo proprietário se encontrar doente”. 

O âmbito de protecção do art. 1346º realiza-se ou especifica-se naquelas situações em que, por exemplo, o barulho provocado por animais detidos numa fracção autónoma impede ou prejudica substancialmente (71) o funcionamento de outra fracção, por exemplo, como clínica médica ou como um centro para idosos. 

Estamos no âmbito da predialidade, do prejuízo causado ao uso de um imóvel vizinho (e não no âmbito da pessoalidade, do prejuízo causado por um prédio a alguém que se encontra num prédio vizinho).

Notas:

(68) Cfr. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Direitos Reais, Lições publicadas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, pol., Coimbra, 1972, pág. 244.

(69) PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, com a colaboração de MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Código Civil Anotado, anot. ao artigo 1305.º, vol. III, pág. 95, 4. 

(70) Direitos Reais, págs. 142 e 143.

(71) Nas palavras de PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, com a colaboração de MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Código Civil Anotado, vol. III, anot. ao artigo 1346.º, pág. 178, 5, exigindo-se prejuízo substancial, põem-se de lado as emissões que produzam um dano não essencial.

08 fevereiro 2023

Os animais e o regime português da PH - O direito público

 

O direito público

O Regime Legal Sobre a Poluição Sonora (Regulamento Geral do Ruído), aprovado pelo DL 292/2000, de 14 de Novembro (67), considera ruído de vizinhança aquele habitualmente associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido em lugar público ou privado, directamente por alguém ou por intermédio de outrem ou de coisa à sua guarda, ou de animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de atentar contra a tranquilidade da vizinhança ou a saúde pública (art. 3º, al. f)). 

Nos termos do art. 10º, quando uma situação seja susceptível de constituir ruído de vizinhança, os interessados têm a faculdade de apresentar queixa às autoridades policiais da área. Sempre que o ruído for produzido no período nocturno, das 23 às 7 horas, as autoridades policiais ordenam à pessoa ou pessoas responsáveis pelo animal a adopção das medidas adequadas para fazer cessar, de imediato, a incomodidade do ruído produzido. 

Se o ruído de vizinhança ocorrer no período diurno, as autoridades policiais notificam a pessoa ou pessoas responsáveis pelo animal para, em prazo determinado, tomar as medidas necessárias para que cesse a incomodidade do ruído produzido. O não acatamento destas medidas pode levar à aplicação de uma coima, nos termos do artigo 22º deste Regulamento.

Realce-se que o ruído tem de ser de modo a atentar contra a tranquilidade da vizinhança ou a saúde pública, através da sua duração, repetição ou intensidade, de acordo, aliás, com a regra geral de convivência em sociedade, segundo a qual cada um tem de (con)viver com as pequenas incomodidades e transtornos provocados pelos outros.

Notas:

(67) Com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.º 76/2002, de 26 de Março, 259/2002, de 23 de Novembro, e 293/2003, de 19 de Novembro.



Os animais e o regime português da PH - Deter um animal numa fracção autónoma

Deter um animal numa fracção autónoma – exigências de ordem pública

O DL 276/2001, de 17 de Outubro (65), que estabelece as normas tendentes a pôr em aplicação a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, considera animais de companhia aqueles detidos ou destinados a serem detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para entretenimento e companhia. Por detentor, o art. 2º, al. v), considera qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais.

Nos termos do art. 6º, incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como o de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais. O art. 8º estabelece que os animais devem dispor do espaço adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas e o art. 15º determina que os alojamentos devem assegurar que as espécies animais neles mantidas não possam causar quaisquer riscos para a saúde e para a segurança de pessoas, outros animais e bens.

O DL nº 314/2003, de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva e Outras Zoonoses, estabelece no seu art. 3º que:

“1. O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e à ausência de riscos higío-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.
2. Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos higío-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.
3. No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número inferior”.

Os números estabelecidos por este diploma devem ser interpretados de acordo com o âmbito de protecção das normas aí estabelecidas: a luta conta as zoonoses transmissíveis pelos carnívoros domésticos. 

Este DL não pretende modificar o regime jurídico das relações de vizinhança ou do próprio conteúdo do direito de propriedade sobre uma fracção autónoma, estabelecendo, sem mais, a proibição de deter mais de três cães, quatro gatos ou quatro animais por fracção autónoma. Em termos de Direito Civil, este número pode pecar por excesso (imagine-se a situação em que um só animal provoca distúrbios intoleráveis na vizinhança) ou por defeito (o proprietário que detém 5 gatos que não causam qualquer transtorno). Este diploma aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses. 

Seria no mínimo abusivo pretender retirar daqui uma limitação geral em termos de detenção de animais numa fracção autónoma, numa limitação matreira aos poderes conferidos pelo código civil aos proprietários. Estes números só interessam, e mesmo aí não de forma absoluta, para efeito de prevenção das zoonoses — note-se que é admissível a presença de um maior número de animais se houver autorização, mediante parecer vinculativo do veterinário municipal e do delegado de saúde (66).

A limitação prevista nesta norma vale para efeito de prevenção de zoonoses. Mal se compreenderia, num diploma desta natureza, uma limitação geral, feita em abstracto (sem qualquer atenção, por exemplo, à dimensão da fracção autónoma) aos poderes conferidos ao proprietário pelo Direito Civil. O limite máximo aqui estabelecido releva para efeitos de luta e vigilância epidemiológica, indiciando riscos higío-sanitários, não pretende regular relações de vizinhança, nem tutelar direitos de personalidade dos outros conviventes no prédio. Verificando-se os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos, com a concomitante ausência de riscos de epidemia, reentramos no âmbito normal dos poderes do proprietário, tal como está definido no CC.

Como pode um condómino defender-se dos incómodos causados por um animal detido por um condómino-vizinho?

A protecção contra um animal de companhia que causa incómodos ou distúrbios pode ser obtida em diversos instrumentos legais, consoante a natureza do incómodo e as circunstâncias do caso concreto: pelo direito público, pelas regras gerais do direito de vizinhança ou pela tutela da personalidade.

Notas:

(65) Com as alterações introduzidas pelo DL nº 315/2003, de 17 de Dezembro.

(66) Bem andou o TRL ao decidir o acórdão de 26.06.2001 (in www.dgsi.pt.jtrl.nsf) que prevendo a lei a existência de animais de companhia no lar, tem de se entender que o uso habitacional do arrendado não fica desvirtuado quanto ao seu fim quando eles lá permanecem: “O gato, sendo um animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, considera-se animal de companhia. Inexistindo na Lei qualquer limite quanto ao número de gatos que podem ser alojados em cada fogo e não se provando que estes, embora em número que excede três dezenas, produzam cheiros ou ruídos que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou incómodo para os vizinhos, não se encontra caracterizado o fundamento do despejo – práticas ilícitas – previsto na al. c) do n.º 1 do art. 64º do RAU”. A situação não é, aliás, inédita. O Tribunal de Köln (OLG Köln, de 26.09.95, citado por HERMANN KAHLEN, Praxiskommentar zum Wohnungseigentumsgesetz, pág. 119) já havia desenvolvido, em 1995, um raciocínio idêntico a propósito de um condómino que detinha mais de 100 pequenos animais, mas de cuja fracção não emanavam quaisquer cheiros ou barulhos e, portanto, não resultava qualquer dano para os condóminos vizinhos.

Os animais e o regime português da PH - A proibição de deter animais numa fracção autónoma.

A proibição de deter animais numa fracção autónoma.

Em jeito de balanço, façamos uma súmula das conclusões a que chegámos até aqui: a proibição de deter animais de companhia numa fracção autónoma pode ser estabelecida no título constitutivo ou no regulamento do condomínio aí inserido, ou pode ser acordada pelos condóminos entre si; a assembleia de condóminos ou o administrador não podem estabelecer, por deliberação maioritária ou por decisão simples, no regulamento do condomínio propriamente dito a proibição de deter animais nas partes próprias; as deliberações da assembleia de condóminos e as decisões do administrador sobre a utilização das partes comuns não podem conter proibições ou restrições que violem o direito de compropriedade de cada condómino sobre as partes comuns do edifício.

Determinação e interpretação da proibição de deter animais num título constitutivo ou em regulamento inserido no título constitutivo

A interpretação de um título constitutivo do condomínio que proíba a detenção de animais de companhia numa fracção autónoma tem levantado alguns problemas.

Em primeiro lugar, devem seguir-se as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos. Assim, nos termos do art. 236º, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Como o TCPH é um negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art. 238º, nº 1); esse sentido só valerá se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da exigência de forma se não opuserem a essa validade (art. 238º, nº 2).

Em segundo lugar, a interpretação do título constitutivo do condomínio desenvolve-se na especificação de um condomínio historicamente determinado. O intérprete “deverá ter presentes todas as circunstâncias caracterizadores do condomínio, a situação jurídica, económica e social dos participantes, o ambiente em que se inserem, a estrutura acessória do bairro, e qualquer aspecto que, directa ou indirectamente, incida sobre a individualização da relação condominial. Por exemplo, a proibição de as crianças brincarem nos pátios do edifício, se pode ser justificada num contexto em que existam parques infantis suficientes, não merece tutela num ambiente carente ou em que faltem estruturas essenciais para o desenvolvimento psicológico das crianças” (53).

Aos tribunais cabe a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. art. 202º, nº 2, CRP). Uma das formas de concretização deste dever dos tribunais é através da determinação e direcção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais (54). A norma jurídica constitucional só adquire verdadeira normatividade quando se transforma em norma de decisão aplicável a casos concretos, cabendo ao juiz como agente do processo de concretização um elemento fundamental. Um dos princípios que devem orientar o juiz é o princípio da máxima efectividade: a uma norma constitucional deve ser atri-buído o sentido que maior eficácia lhe dê (55). 

O juiz, ao interpretar um título constitutivo, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode olvidar a lei constitucional. Uma proibição, validamente estabelecida no TCPH, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais dos condóminos. Imaginemos que, num determinado edifício, o TCPH proíbe ter animais nas fracções autónomas. Se um dos futuros condóminos tiver um filho autista, para cujo desenvolvimento é essencial a companhia de um cão, ou for um invisual que necessite de ter um cão-guia, esta disposição do título ter-se-á por não aplicável.

O referente constitucional não é o único critério a ter em conta na interpretação do título constitutivo; a doutrina e a jurisprudência socorrem-se ainda dos referentes sistemáticos do Direito Civil. Ainda que estabelecida no título, é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra (56), antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade. 

A concretização de uma proibição genérica de detenção de animais numa fracção autónoma deve ponderar sempre a existência de um concreto prejuízo do interesse colectivo do condomínio, sob o duplo aspecto da perturbação do sossego e higiene públicos (57), ou, no mínimo, levar a uma investigação cuidada dos objectivos a que as partes se propuseram com a cláusula proibitória: se pretenderam evitar tout court a detenção de animais ou se pretenderam evitar os prejuízos que a presença de animais no edifício pode causar. 

Neste sentido, é pacificamente aceite que as cláusulas gerais que proíbem a detenção de animais não abrangem os pequenos animais, como peixes, ratos, hamsters e pequenas aves (58), porque não são susceptíveis de causar qualquer incómodo aos condóminos vizinhos (59). E no que respeita a animais que possam causar distúrbios, como cães, gatos ou aves, a proibição deverá ter necessariamente em conta o concreto prejuízo a que esses animais dão origem(60).

Determinação e interpretação das restrições relativas a animais estabelecidas por deliberação da assembleia de condóminos ou decisão do administrador.

No condomínio existe um interesse colectivo (61), que não é a mera soma dos interesses dos condóminos individualmente considerados, ou seja, não se apresenta com carácter de identidade e homogeneidade relativamente aos interesses dos sujeitos ligados pela pertença à mesma colectividade. O interesse colectivo reconhece-se por referência a um elemento de carácter subjectivo — o carácter comum a vários condóminos — e a um elemento de carácter objectivo — a capacidade de o edifício ser o ponto de referência, quanto às exigências que pode satisfazer, de uma pluralidade de interesses. 

Mas a existência de um bem idóneo a satisfazer as exigências comuns de uma colectividade tem aqui um valor secundário; para além da comunhão de interesses dos vários condóminos, é de reconhecer importância determinante à organização em grupo dos condóminos para o surgir do interesse colectivo. Só tal organização, que se revela, por exemplo, na deliberação colegial e no princípio maioritário, na existência de órgãos administrativos e de um regulamento condominial, determina a síntese da pluralidade dos interesses, transformando o interesse comum dos condóminos em interesse colectivo do condomínio, sem todavia excluir que esses interesses possam continuar a ser referidos ainda ao condómino na sua qualidade de membro do grupo.

Estruturalmente, o condomínio no edifício é caracterizado por uma particular “organização de grupo” normativamente estruturada e inderrogavelmente imposta, a qual, por um lado, circunscreve e disciplina as relações internas entre os condóminos e, por outro lado, no interesse de terceiros, faz com que o grupo se apresente externamente como tal. Funcionalmente, o condomínio tem subjacente um interesse supra-individual, considerado prevalecennte sobre o interesse dos condóminos (62). O interesse do condomínio representa o elemento final e funcional da actividade de administração do edifício, o que justifica e fundamenta que os poderes de gestão sejam subtraídos aos condóminos para serem entregues ao grupo(63), através da actuação conjunta da assembleia de condóminos e do administrador.

O reconhecimento de um interesse colectivo do condomínio tem efeitos relevantes no assunto que nos ocupa, enquanto elemento conformador da administração das partes comuns. O interesse colectivo impõe-se como um critério interpretativo das disposições legais actualmente em vigor em matéria de propriedade horizontal, criando um dever especial de justificação dessas mesmas decisões. Ou seja, só serão válidas as deliberações ou as decisões de órgãos administrativos de um edifício constituído em propriedade horizontal que sejam tomadas nos termos da lei e fundamentadas pelo concreto interesse colectivo do condomínio. 

Nestes termos, a actividade decisória da assembleia de condóminos e do administrador não pode ser arbitrária, antes carece de legitimidade prático-fundamentadora; tem de se justificar, em cada caso concreto, pelo interesse colectivo do condomínio (64). Assim sendo, em cada decisão concreta, o interesse colectivo serve como critério valorativo e limite à actuação da assembleia de condóminos, quer quando ela decida sobre a actividade corrente de administração das partes comuns, quer nos casos em que lhe é permitido agir sobre as fracções autónomas. Esta hermenêutica valorativa permite-nos, pois, concluir que a assembleia de condóminos não pode, por exemplo, proibir a passagem de animais pelas partes comuns do edifício, v.g. um elevador (actividade normal de uso da coisa comum), se não se verificar em concreto um dano à segurança, higiene ou sossego do prédio.

A valoração das deliberações da assembleia de condóminos ou das decisões do administrador, no âmbito do art. 1436º, g), dependerá, assim, sempre das circunstâncias concretas do caso. Note-se que não há uma obrigação formal de fundamentação dos actos por parte destes órgãos. O que o interesse colectivo do condomínio impõe é um critério de valoração da actuação da assembleia e do administrador, que muitas vezes só será relevante em sede litigiosa.

Quais serão as consequências de uma decisão tomada pela assembleia contra o interesse colectivo do condomínio? Sendo este resultante do regime legal estabelecido para a propriedade horizontal, a solução segue o regime geral das deliberações da assembleia contrárias à lei e, portanto, será anulável a requerimento de qualquer condómino que a não tenha aprovado, nos termos do art. 1433º, n.º 1.

Notas:

(53) Cfr. FRANCESCO RUSCELLO, ob. cit., pág. 149.

(54) Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 408.

(55) GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, págs. 1095 e 1097.

(56) Para ANTONIO VISCO, “I cani...in regime condominiale”, in Nuovo dir., 1972, pág. 168, é absurda a proibição indiscriminada de ter um cão, ainda quando esta respeite apenas a diversas espécies destes animais. O cão além de ser um amigo que faz companhia e brinca com as crianças, é útil para a guarda. No mesmo sentido, GINO TERZAGO, “Detenzione di animali negli appartamenti di edifici in condominio”, Nuovo dir., 1969, págs. 415 ss. e LINO SALIS, “Il cani e il...condominio”, Riv. Giur. Edil., 1971, I, pág. 451. GIVORD/GIVERDON, La Copropriété, 4.ª edição, Dalloz, Paris, 1992, pág. 278, dão-nos notícia de a Cour de Cassation interpretou uma cláusula proibindo ter um cão como limitada aos “cães barulhentos”. E DARCY ARRUDA MIRANDA, JR., Dicionário Jurisprudencial do Condomínio, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, pág. 10, considera que improcede a acção cominatória proposta pelo condomínio contra o proprietário de apartamento visando compeli-lo à retirada de animal doméstico se, não obstante constar de proibição expressa, não se prova qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos moradores. A jurisprudência e a doutrina alemãs vão no mesmo sentido; cfr., por todos, HERMANN WEITNAUER, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 379.

(57) Nas palavras de ANTONIO VISCO, “I cani...in regime condominiale”, pág. 170, a cláusula “é proibido deter animais domésticos no apartamento” deve ser entendida não num sentido absoluto, mas antes relativo, devendo ser relacionada com as consequências, ou seja, com o distúrbio provocado pelo animal. Se o cão ou o gato, ou qualquer animal, não é causa de distúrbio para quem vive fora do apartamento, o autor considera que a proibição não tem valor porque constitui uma intolerável limitação à liberdade individual.

(58) Cfr. LUDWIG RÖLL, Handbuch für Wohnungseigentümer und Werwalter, pág. 56, e MARCEL SAUREN, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 144.

(59) HERMANN KAHLEN, Praxiskommentar zum Wohnungseigentumsgesetz, Luchterhand, pág. 176.

(60) Esta asserção tem vindo a ganhar força também na jurisprudência. Em Itália, a Pret. de Campobasso (Campopiano c. Mónaco), em 12.5.90, in ALC, 1991, 176, considerou que a simples detenção de um animal não faz o condómino incorrer na violação da proibição de deter animais, sendo necessário que se verifique, efectivamente, um prejuízo à colectividade dos condóminos. Na Alemanha, a BayObLG MDR (citada por MARCEL SAUREN, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 144) já decidia neste sentido em 1972.

(61) ROBERTO AMAGLIANI, L’amministratore e la rappresentanza degli interessi condominiali, págs. 61 e ss.. CHRISTIAN LARROUMET, Les Biens, pág. 421, fala do interesse do imóvel distinto do interesse de cada um dos condóminos. Refere-se a interesse geral dos condóminos, LUCIO GIARLETA, “L’amministratore diventa datore di lavoro quando assume dei prestatori di lavoro per fare eseguire determinate opere per conto del condominio?”, in MT, 1974, pág. 600. Segundo MARINA/GIACOBBE, “Condominio negli edifici”, Enciclopedia Del Diritto, VIII, pág. 821, a posição de cada um converge na posição dos outros, em relação à unidade do interesse geral.

(62) Cfr. LAZZARO/STINCARDINI, L’amministratore del condominio, Giuffrè Editore, 1992, pág. 2.

(63) Assim M. ZACCAGNINI, “Il potere di convocazione dell’assemblea da parte dell’amministratore e da parte dei condomini”, Nuovo dir., 1970, pág. 809.

(64) Também quem entenda que, com base no art. 1422º, nº 2, al. d, (é especialmente vedado aos condóminos praticar quaisquer actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição), a assembleia pode proibir a detenção de animais numa fracção autónoma – o que nos parece, cada vez mais, duvidoso, pois a detenção de um animal não se enquadra na expressão “praticar actos ou actividades” tal como vem enunciada nesta disposição normativa – está sujeito, nessa decisão, à necessidade fundamentadora do concreto interesse colectivo do condomínio.



07 fevereiro 2023

Os animais e o regime português da PH - O administrador

 

As  decisões do administrador

Como foi salientado no artigo sobre a assembleia, o art. 1431º estabelece que a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador. O administrador e a assembleia são os órgãos do condomínio, com carácter obrigatório e necessário, e as suas atribuições estão ligadas à sua função como expressão do grupo condominial. Os órgãos têm o poder de realizar actos jurídicos vinculativos para uma organização colectiva, in casu o condomínio, quer sejam actos prevalentemente internos, como as deliberações da assembleia, ou actos externos, como os contratos concluídos pelo administrador.

Todos os condóminos, reunidos em assembleia, formam uma vontade, e o administrador executa essa vontade. Segundo o legislador, esta é a estrutura necessária e adequada para satisfazer as exigências organizativas do condomínio. A assembleia é o órgão deliberativo, o administrador é um órgão executivo e representativo. Este esquema organizatório não pode ser modificado por acordo dos condóminos, nem podem ser criados órgãos especiais.

O administrador

O administrador, enquanto órgão do condomínio, tem uma competência institucional, um quadro próprio de funções, que não pode ser reduzido pela assembleia de condóminos (48).

A demarcação da actividade da assembleia de condóminos e do administrador pode parecer difícil numa perspectiva jurídica, mas surge naturalmente na vida prática. Por um lado, a assembleia de condóminos, enquanto reunião esporádica da colectividade dos condóminos, terá dificuldades em desempenhar a maioria das funções do administrador (elaborar o orçamento das receitas e das despesas relativas a cada ano, cobrar as receitas e efectuar as despesas comuns, assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio, guardar e manter todos os documentos, publicitar as regras de segurança do edifício, entre outras). Por outro lado, seria irreal hipotizar uma predisposição generalizada, minuciosa e contínua pela assembleia dos actos que devam ser realizados pelo administrador. As funções do administrador têm um carácter marcadamente executivo e prático, que não se coaduna com o funcionamento colegial da assembleia de condóminos; os poderes que o administrador tem de regulação da coisa comum exigem-lhe uma actividade autónoma e sustentada.

Deve, pois, entender-se que é atribuída ao administrador uma esfera de competências não apenas legalmente pré-determinada, mas ainda tendencialmente exclusiva e não comprimível (49). Esta solução surge reforçada quando se evidencia que a fixação pela assembleia dos actos a compreender nas funções do administrador não exclui, por um lado, a autonomia deste, nem impede, por outro lado, a sua identificação como sujeito da actividade de administração do condomínio considerada no seu todo.

Do elenco das funções do administrador, cabe referir o dever de executar as deliberações da assembleia e de assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio (art. 1436º, al. h) e l), respectivamente). Nos termos da al. g), do art. 1436º, cabe ao administrador o poder autónomo de regular o uso das coisas comuns e a prestação de serviços de interesse comum. Valem aqui as considerações feitas a propósito da assembleia de condóminos: o poder-dever do administrador regular as coisas comuns está limitado pela permissão do art. 1406º: não pode violar o direito de compropriedade de cada condómino sobre as partes comuns, maxime, privando-o do seu uso.

O acordo dos condóminos

No âmbito da vida condominial, os condóminos podem vincular-se a certos comportamentos. Por exemplo, os condóminos podem, dentro dos limites da sua autonomia contratual, acordar entre si em não deterem animais nas fracções autónomas (50). Estes acordos vinculam apenas quem a eles se obrigou, mas já não um ulterior adquirente de uma fracção autónoma. Em rigor, não vinculam sequer um futuro arrendatário, salvo se a tanto se obrigou no contrato de arrendamento perante o senhorio (51). Também as deliberações da assembleia tomadas por unanimidade, ainda que exorbitantes das atribuições legais deste órgão, podem assumir relevância contratual nas relações recíprocas entre os condóminos, comprometendo-os a observar o conteúdo das deliberações, quando não faltem os requisitos de substância e de forma (52). Não é raro, nos edifícios condominiais, que os condóminos “votem”, em assembleia, por unanimidade, a não detenção de animais nas fracções autónomas. Estas deliberações são ineficazes, porque saem fora do âmbito de competências da assembleia de condóminos, mas podem, licitamente, ser convertidas em acordos condominiais.

Notas:

(48) Considerar que o administrador tem poderes negociais e processuais próprios não significa que exista um campo de actividade reservado ao administrador do condomínio. Onde o administrador se move, também se move a assembleia dos condóminos: na administração das partes comuns do edifício. Assim, não existirá um vício de incompetência nas deliberações da assembleia por esta decidir no campo de actividade eventualmente reservado ao administrador. A assembleia tem competências concorrentes com as do administrador, pelo que não são impugnáveis as deliberações da assembleia de condóminos por invasão da esfera do administrador.

(49) Cfr. ROBERTO AMAGLIANI, L’amministratore e la rappresentanza degli interessi condominiali, pág. 158.

(50) V. WERNER NIEDENFÜHR/ HANS-JÜRGEN SCHULZE, WEG, Handbuch und Kommentar zum Wohnungseigentumsgesetz, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 1997, pág. 131.

(51) No caso de o condómino senhorio não assegurar que o arrendatário se comprometa a não deter animais na fracção autónoma, poderá incorrer em responsabilidade perante os outros condóminos.

(52) LUDWIG RÖLL, Handbuch für Wohnungseigentümer und Werwalter, 7.ª ed., Verlag Dr. Otto Schmidt, Köln, 1996, pág. 258, chama às deliberações aprovadas por unanimidade pseudo-acordos [Pseudovereinbarungen]. Também para GIUSEPPE BRANCA, Commentario del Codice Civile, pág. 418, uma deliberação votada por unanimidade na assembleia pode só aparentemente ser uma deliberação e, inversamente, esconder um acordo; não se trata de um comando do condomínio, mas de um acto dos condóminos individuais enquanto proprietários das fracções (é evidente que o administrador não é obrigado, salvo deliberação expressa, a dar execução a esse acordo). Quando a assembleia decide sobre coisas comuns, é o condomínio a pronunciar-se; quando dispõe exclusivamente sobre as fracções, sem tocar, directa ou indirectamente, partes ou serviços comuns, é um acordo no qual qualquer condómino dispõe do direito que tem como proprietário da sua fracção.