Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/08/2023

Os animais e o regime português da PH - Deter um animal numa fracção autónoma

Deter um animal numa fracção autónoma – exigências de ordem pública

O DL 276/2001, de 17 de Outubro (65), que estabelece as normas tendentes a pôr em aplicação a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, considera animais de companhia aqueles detidos ou destinados a serem detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para entretenimento e companhia. Por detentor, o art. 2º, al. v), considera qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais.

Nos termos do art. 6º, incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como o de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais. O art. 8º estabelece que os animais devem dispor do espaço adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas e o art. 15º determina que os alojamentos devem assegurar que as espécies animais neles mantidas não possam causar quaisquer riscos para a saúde e para a segurança de pessoas, outros animais e bens.

O DL nº 314/2003, de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva e Outras Zoonoses, estabelece no seu art. 3º que:

“1. O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e à ausência de riscos higío-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.
2. Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos higío-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.
3. No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número inferior”.

Os números estabelecidos por este diploma devem ser interpretados de acordo com o âmbito de protecção das normas aí estabelecidas: a luta conta as zoonoses transmissíveis pelos carnívoros domésticos. 

Este DL não pretende modificar o regime jurídico das relações de vizinhança ou do próprio conteúdo do direito de propriedade sobre uma fracção autónoma, estabelecendo, sem mais, a proibição de deter mais de três cães, quatro gatos ou quatro animais por fracção autónoma. Em termos de Direito Civil, este número pode pecar por excesso (imagine-se a situação em que um só animal provoca distúrbios intoleráveis na vizinhança) ou por defeito (o proprietário que detém 5 gatos que não causam qualquer transtorno). Este diploma aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses. 

Seria no mínimo abusivo pretender retirar daqui uma limitação geral em termos de detenção de animais numa fracção autónoma, numa limitação matreira aos poderes conferidos pelo código civil aos proprietários. Estes números só interessam, e mesmo aí não de forma absoluta, para efeito de prevenção das zoonoses — note-se que é admissível a presença de um maior número de animais se houver autorização, mediante parecer vinculativo do veterinário municipal e do delegado de saúde (66).

A limitação prevista nesta norma vale para efeito de prevenção de zoonoses. Mal se compreenderia, num diploma desta natureza, uma limitação geral, feita em abstracto (sem qualquer atenção, por exemplo, à dimensão da fracção autónoma) aos poderes conferidos ao proprietário pelo Direito Civil. O limite máximo aqui estabelecido releva para efeitos de luta e vigilância epidemiológica, indiciando riscos higío-sanitários, não pretende regular relações de vizinhança, nem tutelar direitos de personalidade dos outros conviventes no prédio. Verificando-se os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos, com a concomitante ausência de riscos de epidemia, reentramos no âmbito normal dos poderes do proprietário, tal como está definido no CC.

Como pode um condómino defender-se dos incómodos causados por um animal detido por um condómino-vizinho?

A protecção contra um animal de companhia que causa incómodos ou distúrbios pode ser obtida em diversos instrumentos legais, consoante a natureza do incómodo e as circunstâncias do caso concreto: pelo direito público, pelas regras gerais do direito de vizinhança ou pela tutela da personalidade.

Notas:

(65) Com as alterações introduzidas pelo DL nº 315/2003, de 17 de Dezembro.

(66) Bem andou o TRL ao decidir o acórdão de 26.06.2001 (in www.dgsi.pt.jtrl.nsf) que prevendo a lei a existência de animais de companhia no lar, tem de se entender que o uso habitacional do arrendado não fica desvirtuado quanto ao seu fim quando eles lá permanecem: “O gato, sendo um animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, considera-se animal de companhia. Inexistindo na Lei qualquer limite quanto ao número de gatos que podem ser alojados em cada fogo e não se provando que estes, embora em número que excede três dezenas, produzam cheiros ou ruídos que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou incómodo para os vizinhos, não se encontra caracterizado o fundamento do despejo – práticas ilícitas – previsto na al. c) do n.º 1 do art. 64º do RAU”. A situação não é, aliás, inédita. O Tribunal de Köln (OLG Köln, de 26.09.95, citado por HERMANN KAHLEN, Praxiskommentar zum Wohnungseigentumsgesetz, pág. 119) já havia desenvolvido, em 1995, um raciocínio idêntico a propósito de um condómino que detinha mais de 100 pequenos animais, mas de cuja fracção não emanavam quaisquer cheiros ou barulhos e, portanto, não resultava qualquer dano para os condóminos vizinhos.

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