Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/07/2023

Os animais e o regime português da PH - A assembleia

 

As deliberações da assembleia de condóminos

O art. 1431º estabelece que a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador. O administrador e a assembleia são os órgãos do condomínio, com carácter obrigatório e necessário, e as suas atribuições estão ligadas à sua função como expressão do grupo condominial. Os órgãos têm o poder de realizar actos jurídicos vinculativos para uma organização colectiva, in casu o condomínio, quer sejam actos prevalentemente internos, como as deliberações da assembleia, ou actos externos, como os contratos concluídos pelo administrador.

Todos os condóminos, reunidos em assembleia, formam uma vontade, e o administrador executa essa vontade. Segundo o legislador, esta é a estrutura necessária e adequada para satisfazer as exigências organizativas do condomínio. A assembleia é o órgão deliberativo, o administrador é um órgão executivo e representativo. Este esquema organizatório não pode ser modificado por acordo dos condóminos, nem podem ser criados órgãos especiais.

A assembleia de condóminos

Chama-se deliberação à expressão da vontade de um órgão plural, que corresponde à proposta que obtiver a maioria dos votos (36). As decisões tomadas pela assembleia de condóminos (37) representam o resultado das várias vontades distintas dos condóminos mas tendentes a um único escopo: a eficiente organização e gestão da vida condominial. Naturalmente, uma vez tomadas as deliberações, a vontade que constitui o seu fundamento assume uma autonomia própria a respeito dos condóminos que formaram a decisão colectiva (38). A deliberação tomada por uma colectividade, como é o caso do condomínio (39), vale como deliberação do colégio e vincula, normativamente, todos os membros da colectividade, mas é imputável a cada um dos condóminos. Os efeitos jurídicos da deliberação produzem-se na esfera jurídica de cada um dos membros da colectividade, porventura em contitularidade.

Nos termos do art. 1432º, nº 3, as deliberações são tomadas, salvo disposição especial, por maioria dos votos representativos do capital investido (40). Ao contrário do TCPH, que está inscrito no registo predial e só pode ser modificado pelo acordo de todos os condóminos, as deliberações não estão sujeitas a registo e a todo o momento poderão ser suprimidas ou alteradas pela assembleia.

Na medida em que delimitam o direito de PH, as deliberações da assembleia de condóminos têm natureza real e, por conseguinte, eficácia erga omnes, independentemente de registo; quem exerce poderes sobre a fracção autónoma, seja o próprio condómino ou um terceiro, v.g., um arrendatário ou um promitente-comprador, está sujeito à sua observância (41).

O CC refere, ainda, as deliberações “tomadas por unanimidade dos condóminos” ou “tomadas sem oposição”: segundo o art. 1432º, nº 2, a convocação da assembleia de condóminos deve informar sobre os assuntos cujas deliberações só podem ser tomadas por unanimidade dos votos; nos termos do art. 1422º, nº 2, d), a assembleia pode proibir actos ou actividades por deliberação aprovada sem oposição; o art. 1422º-A, nº 3, estabelece que para a divisão de fracções autónomas é necessário autorização da assembleia de condóminos aprovada sem qualquer oposição. Nesta última disposição, a autorização esgota o seu valor no próprio acto. Depois de autorizado a dividir a sua fracção autónoma, o condómino pode, por acto unilateral de escritura pública, introduzir a correspondente alteração no título constitutivo (art. 1422º-A, 4).

Estamos, substancialmente, perante verdadeiras deliberações ou, pelo contrário, o legislador chama “deliberação” a acordos dos condóminos? Em nossa opinião, o legislador adopta um critério formal (42): da assembleia (conjunto dos condóminos) e na assembleia (reunião) só resultam deliberações (em sentido amplo)(43). A lei coloca exigências variadas à assembleia, consoante a importância dos assuntos a tratar: maioria representativa de 2/3 do capital, qualquer maioria, desde que não haja oposição dos condóminos, maioria de 2/3 dos condóminos, desde que não haja oposição e, por último, unanimidade. Quando decida por maioria simples, os poderes da assembleia de condóminos estão circunscritos à esfera das relações respeitantes ao uso e gozo das coisas e serviços comuns. Este é um princípio geral: a assembleia não pode invadir a esfera da propriedade individual (44), em que a regulação está reservada à regulamentação convencional dos condóminos. Os limites gerais da actuação no âmbito condominial, sem invadir a esfera da propriedade exclusiva, requerem necessariamente uma série de marcos, dentro dos quais a assembleia deve conter as suas próprias decisões.

Se a assembleia de condóminos tem, tendencialmente, poderes apenas sobre as partes comuns do edifício e não pode afectar o direito de propriedade do condómino sobre a sua parte própria, a assembleia de condóminos não pode proibir a detenção de animais de companhia numa fracção autónoma. A maioria não pode emitir normas que limitem os direitos ou faculdades que os condóminos tenham, iure domini, sobre e nas respectivas fracções autónomas.

Quanto aos seus poderes sobre as partes comuns, a actuação da assembleia de condóminos encontra um limite no direito de compropriedade de cada condómino individual. Nos termos do art. 1406º, como vimos supra, a qualquer dos condóminos é lícito servir-se da coisa comum, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. A assembleia, no âmbito dos seus poderes de administração, pode contemperar o uso da coisa comum, no interesse colectivo do condomínio, mas ao fazê-lo não pode violar o direito de compropriedade de cada condómino, privando-o do uso da coisa. Assim, se a assembleia de condóminos pode estabelecer que o condómino não possa descer no elevador quando acompanhado de animais de companhia (mas ainda aqui a licitude da proibição depende das circunstâncias do caso concreto, por exemplo, se o condómino é uma pessoa idosa ou doente, ou se vive num 4.º andar, porque consubstancia uma verdadeira privação, a proibição tem-se como não válida), já não pode impedir que o condómino circule acompanhado de um animal de companhia nas partes comuns do edifício, porque desse modo estaria a privar o condómino do poder de usar aquilo de que é comproprietário. Reentra, todavia, nos poderes da assembleia a faculdade de disciplinar o uso das partes comuns, impondo deveres especiais de cuidado com a higiene das partes comuns ou com a segurança, quer do edifício, quer das restantes pessoas que nele habitam (impondo a proibição de o animal vir à solta, por exemplo (45)).

Se a assembleia proíbe a circulação de animais à solta nas partes comuns de um edifício, e um dos condóminos pura e simplesmente não respeita a proibição, quid iuris? Nos termos do art. 1434º, a assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias (46) para a inobservância das suas deliberações e das decisões do administrador, sendo que a acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das penas constitui título executivo contra o proprietário, nos termos do art. 6º, do DL 268/94, de 25 de Outubro (47).

Notas:

(36) Seguimos quase ipsis verbis LUÍS BRITO CORREIA, Os Administradores das Sociedades Anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, pág. 425.

(37) GIUSEPPE BRANCA, Commentario del Codice Civile, pág. 454, caracteriza a assembleia como o órgão supremo, natural, estrutural, permanente do condomínio. Destarte, não pode dizer-se que seja a mera soma dos condóminos: as suas deliberações são obrigatórias também para aqueles que não as aceitaram. Também VOLKER BIELEFELD, Der Wohnungseigentümer, 5.ª ed., Verlag Deutsche Wohnungswirtschaft GmbH, 1995, pág. 392, considera a assembleia de condóminos como o “oberste” órgão de administração. Para NICOLETTI/REDIVO, Il regolamento e l’assemblea nel condominio degli edifici, 2.ª ed., Cedam, Pádova, 1990, pág. 100, a assembleia, na medida que pode decidir recursos contra os actos do administrador, é o órgão superior da administração.

(38) Cfr. NICOLETTI/REDIVO, Il regolamento e l’assemblea nel condominio degli edifici, pág. 96.

(39) PINTO FURTADO, Deliberações dos sócios, pág. 49, entende como deliberação a declaração juridicamente imputável a uma pessoa colectiva ou simplesmente a um órgão seu, ou ainda, globalmente, a um grupo não dotado de personalidade jurídica, formada mediante o concurso dos sujeitos de direito que a compõem e moldada pela fusão das declarações individuais receptícias por eles emitidas (votos) que, no mínimo, integrem o núcleo mais numeroso de declarações de sentido idêntico.

(40) As normas sobre a constituição da assembleia e a validade das suas deliberações não podem ser contrariadas por nenhum acto negocial. Entendemos que os condóminos não podem alterar a maioria legalmente estabelecida; o estabelecimento de uma maioria mais exigente comporta uma correlativa restrição dos poderes que a lei concedeu à assembleia e dificulta a actividade de administração das partes comuns. Neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 19 de Abril de 1990, in CJ, II, págs. 289 e ss., considerou nula a cláusula que exigia a totalidade dos votos representativos do capital investido para a aprovação das deliberações. “Neste ponto, a lei é imperativa. De resto, até se poderá, com razão, dizer que as cláusulas contratuais, para poderem ser conformes à lei, terão de poder dar um mínimo de funcionalidade às situações a que se destinam. Ora, exigir a unanimidade para toda e qualquer deliberação da assembleia de condóminos, era praticamente o mesmo que tornar ingovernável o condomínio. Tal situação teria necessariamente de ser afastada pelo legislador que, obviamente, não criou um instituto na lei para permitir que ele não funcionasse de modo minimamente aproveitável, ou, mesmo, deixando a possibilidade de situações amiúde verificáveis em que tal instituto ficasse paralisado. Bastaria a vontade de qualquer dos condóminos, desconforme com a dos outros, para que nada na propriedade horizontal e condominial pudesse funcionar”. Na doutrina, v. ARAGÃO SEIA, Propriedade Horizontal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, pág. 177.
Esta questão é altamente controversa entre a doutrina italiana. Em sentido concordante com o estabelecimento de uma maioria mais elevada, NOBILE, L’amministratore del condominio, 4.ª ed. revista e actualizada por Guido Belmonte, Casa Ed. Dott. Eugenio Jovene, Nápoles, 1966, pág. 93, GINO TERZAGO, Il Condominio – Trattato Teorico-Pratico, 4.ª ed., Giuffrè, 2000, pág. 545, e LINA BREGANTE, Il regolamento di condominio, Giuffrè, Milão, 2000, pág. 55. Pelo contrário, LAZZARO/STINCARDINI, L’amministratore del condominio, pág. 52, e NICOLETTI/REDIVO, Il regolamento e l’assemblea nel condominio degli edifici, pág. 22, não aceitam a possibilidade de estabelecer uma derrogação à maioria estabelecida ex lege, exigindo uma mais elevada, pois estas disposições visam tutelar interesses fundamentais do condomínio ou de terceiros.
Na doutrina alemã, entende-se que o kopfstimmrecht é disponível. Por todos, v. VOLKER BIELEFELD, Der Wohnungseigentümer, pág. 413.

(41) Cremos que o transmitente de uma fracção autónoma é obrigado a comunicar ao adquirente as deliberações anteriormente aprovadas. Nos termos do art. 9.º do DL 268/94, o administrador, ou quem a título provisório desempenhe as funções deste, apenas tem o dever de facultar cópia do regulamento aos terceiros titulares de direitos relativos às fracções. Assim, o administrador pode, legitimamente, recusar-se a apresentar o livro de actas a um terceiro que se apresente como eventual adquirente de uma fracção autónoma. Por outro lado, a culpa in contrahendo prevê deveres de esclarecimento a cargo das partes em negociação (cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 549); a conclusão de um contrato na base de falsas indicações ou na base de falta de informação implica o dever de indemnizar, por culpa na formação dos contratos. Na prática, os futuros adquirentes não procuram o administrador para verificarem as actas, porque acreditam na palavra do condómino-alienante ou entendem o seu silêncio como sinal da ausência de problemas. A dificuldade agrava-se quando o condómino-alienante é o próprio administrador do condomínio. Esta opinião não é, contudo, consensual; v. HENRIQUE MESQUITA, A propriedade horizontal, págs. 134 e 135.

(42) No sentido de que a vontade comunitária só pode formar-se na reunião formal da assembleia de condóminos, v. ANTÓNIO VENTURA-TRAVESET, Derecho de Propiedad Horizontal, Bosch, Barcelona, 2000, pág. 490.

(43) O legislador refere-se ainda ao acordo de todos os condóminos no art. 1419º, nº 1, para a modificação do título constitutivo. Parece, quanto a este acordo, que ele pode ser obtido fora da assembleia de condóminos.

(44) Neste sentido, NICOLETTI/REDIVO, Il regolamento e l’assemblea nel condominio degli edifici, pág. 97 e BÄRMANN/PICK/MERLE, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 428.

(45) LUDWIG RÖLL, Handbuch für Wohnungseigentümer und Werwalter, 7.ª ed., Verlag Dr. Otto Schmidt, Köln, 1996, pág. 57, e MARCEL SAUREN, Wohnungseigentumsgesetz, Beck, München, 1995, pág. 145. A proibição de os animais andarem à solta dentro das partes comuns do edifício não só evita a poluição destes locais e outros estorvos, como permite identificar, com facilidade, a permanência aí de animais estranhos ao edifício.

(46) PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Coimbra, 1990, págs. 139 e ss., trata destas sanções ao lado das sanções de índole disciplinar – pena associativa (“Vereinssstrafe”). São penas impostas pelos órgãos de uma associação, “graças a um poder – sancionatório – inerente ao grupo, para fazer cumprir os deveres associativos pelos respectivos membros”. A pena associativa destina-se “a exortar os sócios a assumirem um comportamento conforme ao que a associação lhes exige, de acordo com os estatutos e segundo os padrões ético-sociais específicos do grupo. Por isso é que a sua imposição passa por um juízo valorativo (Bewertung) ulterior, através de um procedimento algo semelhante ao de um processo judicial (...)”. A pena associativa “tem finalidades intimidativas (Abschreckung) e de expiação (Sühne) (...) de acordo com a sua função essencial: assegurar a disciplina dos membros da associação e o respeito pelos deveres associativos”. Quanto à legitimidade das penas associativas e das penas pecuniárias do condomínio, ela é naturalmente diferente. Continuando a seguir os ensinamentos do Autor, a legitimidade das sanções associativas decorre do princípio da autonomia associativa. Mas há analogia evidente na finalidade a cumprir. As penas associativas visam “assegurar o respeito pelas suas regras internas de funcionamento e a disciplina do respectivo grupo ou colectividade”. As penas da assembleia de condóminos são “sanções estabelecidas por um grupo – a assembleia de condóminos –, a fim de fazer respeitar as suas deliberações, as disposições legais pertinentes ou as decisões do administrador”. Entendemos nós que, ao contrário das associações, em que a legitimidade das penas é interna, decorrente da autonomia associativa dos seus membros, no condomínio existe uma legitimidade de origem externa, decorrente de um elemento objectivo: a convivência, a sociabilidade resultante da unidade estrutural do edifício.

(47) Neste sentido decidiu o acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Junho de 2001, in www.dgsi.pt/jtrc.nsf.

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