Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/09/2023

Os animais e o regime português da PH - A tutela da personalidade


A tutela da personalidade

Como já foi assinalado, muitas vezes a actividade desenvolvida na fracção autónoma não afecta outra fracção autónoma, mas antes os próprios participantes no condomínio, em aspectos diversificados da sua personalidade. Pode um condómino ouvir música na sua fracção autónoma, pela noite dentro, incomodando os vizinhos e perturbando o seu sono e repouso? Será lícito que um condómino coloque o som da televisão no máximo se o seu vizinho está em período de convalescença, após uma intervenção cirúrgica delicada? O direito de vizinhança, como vimos acima, não tutela estes interesses, sendo necessário recorrer à tutela própria da personalidade, em alguns dos seus aspectos, sobretudo o direito à tranquilidade, o direito ao repouso e o direito ao sono (72). O direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade são constituintes do direito à integridade física, e a um ambiente de vida humano, em último termo, do direito à saúde na sua vertente negativa, que consiste no direito a exigir do Estado ou de terceiros que se abstenham de qualquer acto que prejudique a saúde. Situações como as acima referidas consubstanciam um conflito entre um direito de propriedade sobre uma fracção autónoma e um direito de personalidade do condómino-vizinho. O “poder utilizar” de um entra em colisão com o respeito pelo “poder ser” do outro (73), por exemplo na situação em que o condómino tem na sua fracção autónoma um cão que ladra constantemente e pela noite dentro, impedindo ou dificultando o repouso e o sono dos restantes condóminos.

O direito geral de personalidade, segundo a definição de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA (74), é “o direito de cada homem ao respeito e à promoção da globalidade dos elementos, potencialidades e expressões da sua personalidade humana bem como da unidade psico-físico-sócio-ambiental dessa mesma personalidade humana (v.g. da sua dignidade humana, da sua individualidade concreta e do seu poder de autodeterminação), com a consequente obrigação por parte dos demais sujeitos de se absterem de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender tais bens jurídicos da personalidade alheia, sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida”.

O art. 70º, nº 1, estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. Mais uma vez, nas palavras de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, o bem da personalidade humana juscivilmente tutelado é definido como “o real e o potencial físico e espiritual de cada homem em concreto (sublinhado nosso), ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrados”. A nossa lei tutela cada homem em si mesmo, concretizado na sua específica realidade física e na sua particular realidade moral (75). Em consonância com este princípio, a jurisprudência tem entendido (76), pacificamente, que, no julgamento destes casos, o julgador não deve atender a um tipo de pessoa médio, ao cidadão normal e comum, mas a cada pessoa em concreto. O poder-utilizar de cada fracção autónoma deve respeitar os que lhe estão próximos, e o poder-ser do outro, com tudo o que este tem de fraqueza ou contingência. Se o ladrar de um cão é suportável por uma pessoa normal, mas no edifício habitam uma pessoa idosa, um doente ou um bebé, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis (77), então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho.

A fundamentação legal para a prevalência do direito de personalidade do vizinho sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial do detentor do animal, encontra-se no art. 335º, nº 2, segundo o qual, havendo colisão de interesses desiguais ou de espécie diferente (78), prevalece o que deva considerar-se superior (79). Perante um conflito entre um direito de natureza patrimonial (direito à exploração de uma actividade comercial ou industrial incómoda ou à livre utilização de um prédio) e um direito de carácter pessoal ou direito de personalidade de outrem, o conflito deve ser decidido a favor do direito de personalidade. Assim vem acontecendo, desde há longa data, nos nossos tribunais.

Casos especiais de valoração

Quando o juiz tem de valorar um caso concreto de conflito entre a faculdade de deter animais numa fracção autónoma e o direito de personalidade de outro condómino, não pode deixar de atender ainda ao valor específico que um animal de companhia tem para o seu dono, e que pode ser, inclusive, constituinte da sua personalidade. De facto, os animais, ainda que considerados pelo nosso ordenamento jurídico coisas (nos termos do art. 202º, nº 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama (80) propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade (81). Muitas pessoas detêm objectos que sentem como se fossem quase parte delas próprias; estas coisas estão ligadas profundamente à sua própria personalidade porque são o meio através do qual se constroem continuamente enquanto entidades no mundo. O critério para avaliar o significado da relação de alguém com um objecto é o do tipo de dano ou sofrimento que a sua perda causa. Neste sentido, um objecto está relacionado com a construção da personalidade de uma pessoa se a sua perda causa um dano que não pode ser reparado pela sua substituição. O oposto de ter um objecto que se torna parte da própria pessoa é ter um bem perfeitamente fungível por outro de igual valor de mercado; estes objectos têm um valor meramente instrumental para a auto-constituição pessoal.

Neste quadro conceptual, os animais de companhia, enquanto propriedade, são constitutivos da personalidade de cada indivíduo (82). Os animais enriquecem as nossas vidas, têm um efeito positivo no comportamento e na saúde humanos, podem melhorar os ânimos e exercer uma influência importante nas crianças, nos idosos e nos deficientes. As pessoas que, por sofrerem de doenças graves ou pela idade, estão confinadas às suas casas, retiram um benefício terapêutico, mesmo espiritual, da presença de um animal. Àqueles que vivem sozinhos, os animais oferecem consolo e muitas vezes até uma razão para viverem. As crianças aprendem o valor da responsabilidade e da disciplina, desenvolvendo um sentido de protecção e de generosidade. Aos adultos, um animal em casa pode ainda ser uma fonte de segurança.

Na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono (83), por exemplo para uma pessoa que viva sozinha, e ao trauma psicológico que pode causar a perda de um animal. Pode acontecer que um conflito, que começou por ser um conflito entre um direito de propriedade sobre o animal e um direito de personalidade, se transforme, por força das circunstâncias do caso concreto, num conflito entre dois direitos de personalidade. Imaginemos que, num edifício constituído em propriedade horizontal, um dos condóminos é doente e vive sozinho, tendo apenas por companhia um cão que detém na sua fracção autónoma, e um vizinho, alérgico a animais, vem requer em tribunal o afastamento do cão do edifício. Ora, nesta situação, o juiz está, mais do que a resolver um conflito entre um direito de propriedade e um direito de personalidade, entre o poder-utilizar da fracção autónoma e o poder-ser do condómino-vizinho, a resolver um conflito entre dois direitos de personalidade: o direito à realização pessoal, à tranquilidade psíquica, à segurança do dono do animal e o direito à saúde do condómino vizinho. Neste caso, a valoração judicial já cabe no âmbito do art. 335º, nº 1: “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”. A decisão poderia ser, num caso concreto, estabelecer para um dos condóminos o uso do elevador e para outro o uso das escadas, ou o estabelecimento de horas em que o animal pode circular nas partes comuns.

Se existe no edifício um animal que ofenda o condómino no seu direito à tranquilidade, ao repouso ou à saúde, para tutela da sua personalidade, os condóminos podem utilizar variados meios que a lei coloca ao seu dispor (84): a acção directa, actos de polícia, procedimentos cautelares (85), o processo especial de tutela da personalidade, previsto no art- 1474º CPC (86), que adjectiva o art. 70º, nº 2, do CC, e a sanção pecuniária compulsória (87). Nos termos do art. 70º, nº 2 (tutela geral da personalidade), independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida na sua personalidade física ou moral pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

A sanção pecuniária compulsória, prevista e regulada no art. 829º-A, permite ao tribunal condenar o inadimplente ao pagamento de uma quantia pecuniária, segundo critérios de razoabilidade, por cada dia de atraso no cumprimento, ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.

Nos termos do art. 2º, da Lei 231/93, de 26 de Junho, a GNR tem por missão geral: manter e restabelecer a segurança dos cidadãos e da propriedade pública, privada e cooperativa, prevenindo ou reprimindo os actos ilícitos contra eles cometidos (alínea b), e auxiliar e proteger os cidadãos e defender e preservar os bens que se encontrem em situações de perigo, por causas provenientes da acção humana ou da natureza (al. g). E nos termos do art. 2º da Lei 5/99, de 29 de Janeiro, é competência da PSP garantir a manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas (alínea b) e garantir a segurança das pessoas e dos seus bens (al. f).

Cabe ainda referir o art. 336º, que permite o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. A possibilidade de acção directa está, todavia, sujeita ao seguinte limite: a acção directa não é lícita quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
 
Notas:
 
(72) São três os artigos da CRP a ter aqui em conta: o art. 25º, nº 1, que estabelece a inviolabilidade da integridade física e moral das pessoas; o art. 64º, nos termos do qual todos têm direito à protecção da saúde; e o art. 66º, nº 1, que dispõe o direito de todos a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado. Os dois últimos são direitos sociais, mas de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que se aplica o seu regime (art. 17º da CRP). O art. 2º, da Lei de Bases do Ambiente, concretiza que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, incumbindo ao Estado, por meio de organismos próprios e por apelo a iniciativas populares e comunitárias, promover a melhoria da qualidade de vida, quer individual, quer colectiva.

(73) Segundo MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1990, pág. 206, os direitos de personalidade constituem “um círculo de direitos necessários, um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa”.

(74) O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pág. 93.

(75) Cfr. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 116.

(76) Cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Fevereiro de 1987, in CJ, I, pág. 141: “os ensaios de uma orquestra, quando perturbadores do direito à tranquilidade dos vizinhos violam o direito à saúde e à integridade física e moral das pessoas, como um direito eminentemente pessoal. Nestes casos o julgador, ao aplicar a lei, não deve atender a um tipo humano médio, ao conceito de cidadão normal e comum, mas à especial sensibilidade do lesado, tal como é na realidade”. Esta doutrina foi seguida pelo acórdão da Relação do Porto, de 6 de Fevereiro de 1990, in CJ, I, pág. 92.

(77) RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 232, nota 491, citaHubmann, considerando que “cada um tem de suportar os pequenos aborrecimentos causados ocasionalmente pelos seus vizinhos, mas já não tem de suportar uma chicana sistemática”. A vida em comum seria impossível sem cada um sofrer certas incomodidades, nas palavras de FRANÇOIS CHABAS, Biens, Droit de propriété et ses démembrements, Leçons de Droit Civil por HENRI e LÉON MAZEAUD e FRANÇOIS CHABAS, tomo II, 10.º volume, 8.ª ed., Montchrestien, Paris, 1994, pág. 98.

(78) “Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são “abertos”, “móveis”, e, mais precisamente esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si”. Assim, KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª ed., tradução de José Lamego, FCG, Lisboa, 1989, pág. 491.

(79) “Quando se trata de bens constitucionais, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. (...) Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”. Assim, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,1998, pág. 1098.

(80) Na doutrina anglo-saxónica, MARGARET JANE RADIN, in Reinterpreting Property, 1993, pág. 35 e ss., chama-lhe propriedade constitutiva, para evitar o equívoco resultante da expressão personal property.

(81) O valor preponderante, e muitas vezes exclusivo, de um animal de companhia para o seu dono não é económico. Como considera STEVEN M. WISE, “Recovery of Common Law damages”, i, nota 2, se o valor económico de um animal não é mais que incidental para o seu dono então ele não pode ser definido como um animal de companhia.

(82) Cfr. STEVEN M. WISE, “Recovery of Common Law damages”, pág. 67.

(83) O acórdão da Relação do Porto, de 2.05.2002, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf, considerou viável o pedido de indemnização, por danos não patrimoniais, relacionados com a morte de um cão, fundado na privação do direito de propriedade do impetrante sobre o animal. O tribunal considerou que o desgosto de perder o animal, pelo qual os autores nutriam grande afeição, não é uma mera incomodidade ou contrariedade, mas antes assume dignidade de reparabilidade por dever ser considerado, à luz do critério acolhido no artigo 496.º, com gravidade tal que o faça merecer a tutela do direito.

(84) Para a violação dos direitos de personalidade valem os princípios gerais da responsabilidade civil. O acórdão do STJ, de 13 de Março de 1986, BMJ, n.º 374, 1988, págs. 443 e ss., confirmou o pagamento de uma indemnização de Esc. 100.000$00, para ressarcimento dos prejuízos resultantes do barulho produzido em casa dos vizinhos, provenientes do bater de portas, do arrastamento de móveis, e dos aparelhos de rádio e televisão em funcionamento. A Autora teve de recorrer a tratamentos médicos, tendo sido forçada a pedir a pessoas amigas que lhe facultassem pernoitar em suas casas por não poder suportar os ruídos que a maltratavam na sua habitação. Segundo o acórdão, “nem interessa distinguir se a ofensa é cometida deliberadamente ou não, pois em qualquer hipótese sempre existe a ofensa, e, no caso em análise pelo menos houve negligência dos recorrentes por isso que não empregaram as cautelas devidas e não alteraram seus comportamentos mesmo depois da prevenção que lhes foi dirigida quanto ao estado da demandante e aos cuidados que requeria”.

(85) Decidiu o Tribunale di Napoli, 25.10.1990, in Giustizia Civile, 1991, I, 446, que o juiz pode ordenar como procedimento de urgência o afastamento de cães dos apartamentos dos condóminos se causam distúrbios e incómodos, entregando a execução aos órgãos públicos com a obrigação de fechá-los em canil (público ou privado) ou de os ter sob custódia de privados, à escolha do proprietário, com obrigação de não o deixar livre no exterior.

(86) Sobre a execução destas acções, v. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, págs. 481 e 482.

(87) V. ainda as normas aplicáveis à detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro.

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