Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/06/2023

Os animais e o regime português da PH - O condomínio

O condomínio

No condomínio temos uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária (o edifício), que pertence a vários contitulares, tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial — daí a expressão condomínio — sobre fracções determinadas (16), as partes próprias, e uma comparticipação no direito de propriedade que incide sobre as restantes partes do edifício, as partes ditas comuns. Esta é, se assim a podemos chamar, a noção objectiva de condomínio( 17) e aquela que vem expressamente consagrada no art. 1420º, nº 1, do CC (18): “Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício”. Como vem sintetizado no art. 1422º, nº 1, “os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis”.

As partes próprias

A fracção autónoma identifica-se com a parte própria do condómino, ou seja, com a parte do edifício que é objecto da sua propriedade exclusiva, e constitui um todo unitário, que pode, no entanto, ser mais do que o lugar destinado a habitação (ou a outro fim), como por exemplo, “um apartamento com garagem e arrecadação”.

O condómino tem um verdadeiro direito de propriedade sobre a sua fracção autónoma, a que se aplica o regime geral da propriedade; assim, nos termos do art. 1305º, goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da fracção autónoma que lhe pertence, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. De forma muito simples, o uso consiste no poder do proprietário se servir da coisa para a satisfação das suas necessidades. A fruição traduz-se no poder de gozar a coisa indirectamente, através de tudo o que ela produz periodicamente (produtos naturais ou civis, de que são exemplo as rendas), sem prejuízo da sua substância. O poder de disposição inclui poderes materiais, como o de transformar a coisa, e poderes jurídicos, como os de a onerar ou alienar. O proprietário goza destes poderes de modo pleno e exclusivo.

Em jeito de primeira regra, podemos para já reter a ideia pacífica (19) de que cabe nos poderes de uso do proprietário em geral, e de um condómino em particular, a detenção de animais de companhia num imóvel (20).

As partes comuns

As partes comuns são as elencadas no art. 1421º, que distingue entre as partes imperativamente ou necessariamente comuns (nº 1) e as partes presumidamente comuns (nº 2). As partes necessária ou imperativamente comuns (21) são as partes estruturais do edifício, designadamente o solo, os alicerces, as colunas e pilares e as paredes-mestras; os elementos de cobertura, o telhado ou certos terraços; os elos que permitem a circulação, a comunicação, ou a ligação espacial entre as várias fracções, e entre estas e as partes comuns do prédio ou as saídas para a rua: entradas, vestíbulos, escadas e corredores — elos ou elementos comunicantes; são ainda partes necessariamente comuns as instalações gerais, que estão funcionalmente afectadas ao uso comum (22).

São partes presumidamente comuns (23) os pátios e os jardins anexos ao edifício, os ascensores, as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro e, por analogia, os locais destinados aos serviços comuns; as garagens e outros lugares de estacionamento. Materialmente estamos perante um critério de serviço comum: presumem-se comuns as coisas destinadas a proporcionar melhor habitabilidade a cada fracção autónoma.

O art. 1421º, nº 2, al. e), presume ainda comuns as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. Neste sentido, a ausência de atribuição privativa da coisa no título constitutivo funciona como presunção da sua titularidade em comunhão. Os condóminos têm, sobre as partes comuns, um direito de compropriedade. Na formulação legal do art. 1403º, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Por força do art. 1404º, as regras gerais da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão sobre as partes comuns de um edifício constituído em PH.

Quanto ao uso das coisas comuns, o art. 1406º estabelece que, na falta de acordo, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se da coisa comum, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. No uso das partes comuns, não são consentidos aos condóminos, nem àqueles que possam vir a ocupar a sua posição, v.g. um arrendatário ou um comodatário, excessos que venham a limitar ou a restringir o igual direito dos outros condóminos, desrespeitando os limites da normalidade e da razoabilidade, de acordo com as circunstâncias do caso concreto (24). O igual direito dos outros condóminos não deve ser entendido como uso idêntico — já que a identidade espacial e temporal de utilizações concorrentes comportaria uma proibição substancial para qualquer condómino de fazer um uso particular da coisa comum —, mas antes deve ser avaliado abstractamente, de acordo com a relação de equilíbrio que deve ser mantida entre todas as possíveis utilizações concorrentes por parte dos participantes no condomínio.

Assim, no âmbito dos seus poderes de uso das partes comuns do edifício, cabe ao condómino a faculdade de circular acompanhado dos seus animais de companhia em entradas, vestíbulos ou corredores (25), mas já não pode utilizar um local de passagem comum como local de permanência e de aprisionamento de um cão próprio (26).

O estatuto do condomínio

O estatuto da PH, rectius, de cada edifício constituído em PH, é fixado pela lei (o legislador fixa um conjunto de normas inderrogáveis pelos particulares), pelo TCPH, pelo regulamento do condomínio e pelas deliberações da assembleia de condóminos, e é executado pelo administrador. Escolhendo um local, o condómino escolhe um imóvel, mas também um regime jurídico (27).

 O título constitutivo

Nos termos do art. 1417º, nº 1, são TCPH o negócio jurídico, a usucapião ou uma decisão judicial proferida em acção de divisão da coisa comum ou em processo de inventário. O título constitutivo é um acto modelador do estatuto da PH e o seu conteúdo tem natureza real e, portanto, eficácia erga omnes: vincula, desde que registado, os futuros adquirentes das fracções, independentemente do seu assentimento (28). Trata-se de um dos poucos casos em que a autonomia da vontade pode intervir na fixação do conteúdo dos direitos reais, o qual, nesta medida, deixa de ser um conteúdo típico (29).

O título constitutivo de um regime de PH não pode violar disposições legais imperativas. Mas, no seu domínio de aplicação, é o elemento normativo com força superior, não podendo ser contrariado por qualquer regulação inferior, seja por um regulamento do condomínio, seja por uma deliberação da assembleia de condóminos ou por um acto do administrador.

Sendo um acto que, com relativa autonomia, pode fixar ou modelar o conteúdo do direito de condomínio, o título constitutivo pode, licitamente, proibir a detenção de animais de companhia nas fracções autónomas. Ao fazê-lo, está a modelar o direito de propriedade de cada condómino, excluindo do círculo dos seus poderes de uso aquele de deter animais. Esta proibição abrange todos os futuros adquirentes de fracções autónomas no edifício, e só pode ser alterada por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos, nos termos gerais do art. 1419º, nº 1. O TCPH pode estabelecer um número máximo de animais por fracção autónoma ou ainda sujeitar a detenção de animais numa fracção autónoma a aprovação pelo administrador do condomínio, que no entanto só a poderá recusar com base num razão ponderosa e objectiva.

Notas:

(16) Veja-se a título de exemplo, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, com a colaboração de MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Código Civil Anotado, vol. III, anot. ao artigo 1414.º, pág. 398, 9. LUÍS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral I, pág. 55, fala em condomínio horizontal.

(17) Para LINO SALIS, Il condominio negli edifici, in Trattato di Diritto Civile Italiano, sob a direcção de Filippo Vassali, vol. V, tomo III, Torino, 1950, pág. 158, o condomínio é um direito e não é correcto chamar condomínio ao conjunto dos condóminos, ligados entre si pela existência de interesses comuns. Mas, no nosso ordenamento jurídico, a doutrina, a jurisprudência e a lei utilizam habitualmente a expressão “condomínio” num sentido subjectivo, para designar o conjunto dos condóminos.

(18) Todas as disposições legais citadas, sem referência em contrário, pertencem ao Código Civil.

(19) Cfr. HERMANN WEITNAUER, Wohnungseigentumsgesetz, 8.ª ed., Franz Vahlen, München, 1995, pág. 295. Nas palavras de LINA BREGANTE, Il regolamento di condominio, Giuffrè, Milão, 2000, pág. 282, a detenção de animais numa fracção autónoma é entendida como especificação do direito dominial de cada condómino sobre a sua fracção autónoma.

(20) Nos termos do art. 1422º, nº 2, al. c), é especialmente vedado aos condóminos destinar a sua fracção a uso ofensivo dos bons costumes. Cabem aqui situações, como aquela julgada num tribunal alemão em que um condómino detinha em casa 11 serpentes e uma grande quantidade de ratos e ratazanas (OLG Frankfurt, AZ 20 W 149/90, citado por BÄRMANN/PICK/MERLE, Wohnungseigentumsgesetz, 7.ª ed., Beck, München, 1997, pág. 428). Esta decisão é apoiada, unanimemente, pela doutrina. Ver, por todos, KONSTANTIN RIESENBERGER, Alles zum Wohnungseigentum, 4.ª ed., WRS Verlag, München, 1999, pág. 125.

(21) HENRIQUE MESQUITA, “A propriedade horizontal no Código Civil Português”, in RDES, ano XXIII, n.º 1-4 (1976), pág. 129, fala a este propósito de compropriedade necessária e permanente.

(22) Temos, assim, uma afectação estrutural, uma afectação envolvente ou de cobertura, uma de comunicação e uma funcional. Sendo que a enumeração prevista na lei não é taxativa, estes vectores servirão como critérios orientadores no caso de surgirem dúvidas sobre a natureza comum ou privativa de uma parte. Veja-se o nosso A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, Almedina, Coimbra, 2006.

(23) Esta presunção de comunhão do nº 2, do art, 1421º, é uma presunção iuris tantum, logo susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário, a realizar no título constitutivo.

(24) O acórdão da Corte di Cassazione, secção II, 3.11.2000 n.º 14353, in Giustizia Civile, 2001, pág. 1012, I, (2), decidiu que usar os espaços comuns de um edifício condominial fazendo circular um cão, sem as cautelas exigidas segundo critérios normais de prudência (como açaime ou trela), pode constituir uma limitação não consentida do igual direito que os outros condóminos têm sobre os mesmos espaços, se resultar que a falta de adopção das ditas cautelas impede estes últimos de usarem e gozarem livremente esses espaços comuns.

(25) GUIDO VIDIRI, Il condominio nella dottrina e nella giurisprudenza, Giuffrè, Milano, 1999, pág. 107.

(26) Neste sentido, v. o acórdão da Relação do Porto de 19.03.2002, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf.

(27) Assim, CHRISTIAN ATIAS, La Copropriété immobilière, Dalloz, Paris, 1995, pág. 29.

(28) HENRIQUE MESQUITA, A propriedade horizontal no Código Civil Português, págs. 94 a 102.

(29) A propriedade horizontal no Código Civil Português, pág. 94.


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