Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/08/2023

Os animais e o regime português da PH - A proibição de deter animais numa fracção autónoma.

A proibição de deter animais numa fracção autónoma.

Em jeito de balanço, façamos uma súmula das conclusões a que chegámos até aqui: a proibição de deter animais de companhia numa fracção autónoma pode ser estabelecida no título constitutivo ou no regulamento do condomínio aí inserido, ou pode ser acordada pelos condóminos entre si; a assembleia de condóminos ou o administrador não podem estabelecer, por deliberação maioritária ou por decisão simples, no regulamento do condomínio propriamente dito a proibição de deter animais nas partes próprias; as deliberações da assembleia de condóminos e as decisões do administrador sobre a utilização das partes comuns não podem conter proibições ou restrições que violem o direito de compropriedade de cada condómino sobre as partes comuns do edifício.

Determinação e interpretação da proibição de deter animais num título constitutivo ou em regulamento inserido no título constitutivo

A interpretação de um título constitutivo do condomínio que proíba a detenção de animais de companhia numa fracção autónoma tem levantado alguns problemas.

Em primeiro lugar, devem seguir-se as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos. Assim, nos termos do art. 236º, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Como o TCPH é um negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art. 238º, nº 1); esse sentido só valerá se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da exigência de forma se não opuserem a essa validade (art. 238º, nº 2).

Em segundo lugar, a interpretação do título constitutivo do condomínio desenvolve-se na especificação de um condomínio historicamente determinado. O intérprete “deverá ter presentes todas as circunstâncias caracterizadores do condomínio, a situação jurídica, económica e social dos participantes, o ambiente em que se inserem, a estrutura acessória do bairro, e qualquer aspecto que, directa ou indirectamente, incida sobre a individualização da relação condominial. Por exemplo, a proibição de as crianças brincarem nos pátios do edifício, se pode ser justificada num contexto em que existam parques infantis suficientes, não merece tutela num ambiente carente ou em que faltem estruturas essenciais para o desenvolvimento psicológico das crianças” (53).

Aos tribunais cabe a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. art. 202º, nº 2, CRP). Uma das formas de concretização deste dever dos tribunais é através da determinação e direcção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais (54). A norma jurídica constitucional só adquire verdadeira normatividade quando se transforma em norma de decisão aplicável a casos concretos, cabendo ao juiz como agente do processo de concretização um elemento fundamental. Um dos princípios que devem orientar o juiz é o princípio da máxima efectividade: a uma norma constitucional deve ser atri-buído o sentido que maior eficácia lhe dê (55). 

O juiz, ao interpretar um título constitutivo, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode olvidar a lei constitucional. Uma proibição, validamente estabelecida no TCPH, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais dos condóminos. Imaginemos que, num determinado edifício, o TCPH proíbe ter animais nas fracções autónomas. Se um dos futuros condóminos tiver um filho autista, para cujo desenvolvimento é essencial a companhia de um cão, ou for um invisual que necessite de ter um cão-guia, esta disposição do título ter-se-á por não aplicável.

O referente constitucional não é o único critério a ter em conta na interpretação do título constitutivo; a doutrina e a jurisprudência socorrem-se ainda dos referentes sistemáticos do Direito Civil. Ainda que estabelecida no título, é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra (56), antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade. 

A concretização de uma proibição genérica de detenção de animais numa fracção autónoma deve ponderar sempre a existência de um concreto prejuízo do interesse colectivo do condomínio, sob o duplo aspecto da perturbação do sossego e higiene públicos (57), ou, no mínimo, levar a uma investigação cuidada dos objectivos a que as partes se propuseram com a cláusula proibitória: se pretenderam evitar tout court a detenção de animais ou se pretenderam evitar os prejuízos que a presença de animais no edifício pode causar. 

Neste sentido, é pacificamente aceite que as cláusulas gerais que proíbem a detenção de animais não abrangem os pequenos animais, como peixes, ratos, hamsters e pequenas aves (58), porque não são susceptíveis de causar qualquer incómodo aos condóminos vizinhos (59). E no que respeita a animais que possam causar distúrbios, como cães, gatos ou aves, a proibição deverá ter necessariamente em conta o concreto prejuízo a que esses animais dão origem(60).

Determinação e interpretação das restrições relativas a animais estabelecidas por deliberação da assembleia de condóminos ou decisão do administrador.

No condomínio existe um interesse colectivo (61), que não é a mera soma dos interesses dos condóminos individualmente considerados, ou seja, não se apresenta com carácter de identidade e homogeneidade relativamente aos interesses dos sujeitos ligados pela pertença à mesma colectividade. O interesse colectivo reconhece-se por referência a um elemento de carácter subjectivo — o carácter comum a vários condóminos — e a um elemento de carácter objectivo — a capacidade de o edifício ser o ponto de referência, quanto às exigências que pode satisfazer, de uma pluralidade de interesses. 

Mas a existência de um bem idóneo a satisfazer as exigências comuns de uma colectividade tem aqui um valor secundário; para além da comunhão de interesses dos vários condóminos, é de reconhecer importância determinante à organização em grupo dos condóminos para o surgir do interesse colectivo. Só tal organização, que se revela, por exemplo, na deliberação colegial e no princípio maioritário, na existência de órgãos administrativos e de um regulamento condominial, determina a síntese da pluralidade dos interesses, transformando o interesse comum dos condóminos em interesse colectivo do condomínio, sem todavia excluir que esses interesses possam continuar a ser referidos ainda ao condómino na sua qualidade de membro do grupo.

Estruturalmente, o condomínio no edifício é caracterizado por uma particular “organização de grupo” normativamente estruturada e inderrogavelmente imposta, a qual, por um lado, circunscreve e disciplina as relações internas entre os condóminos e, por outro lado, no interesse de terceiros, faz com que o grupo se apresente externamente como tal. Funcionalmente, o condomínio tem subjacente um interesse supra-individual, considerado prevalecennte sobre o interesse dos condóminos (62). O interesse do condomínio representa o elemento final e funcional da actividade de administração do edifício, o que justifica e fundamenta que os poderes de gestão sejam subtraídos aos condóminos para serem entregues ao grupo(63), através da actuação conjunta da assembleia de condóminos e do administrador.

O reconhecimento de um interesse colectivo do condomínio tem efeitos relevantes no assunto que nos ocupa, enquanto elemento conformador da administração das partes comuns. O interesse colectivo impõe-se como um critério interpretativo das disposições legais actualmente em vigor em matéria de propriedade horizontal, criando um dever especial de justificação dessas mesmas decisões. Ou seja, só serão válidas as deliberações ou as decisões de órgãos administrativos de um edifício constituído em propriedade horizontal que sejam tomadas nos termos da lei e fundamentadas pelo concreto interesse colectivo do condomínio. 

Nestes termos, a actividade decisória da assembleia de condóminos e do administrador não pode ser arbitrária, antes carece de legitimidade prático-fundamentadora; tem de se justificar, em cada caso concreto, pelo interesse colectivo do condomínio (64). Assim sendo, em cada decisão concreta, o interesse colectivo serve como critério valorativo e limite à actuação da assembleia de condóminos, quer quando ela decida sobre a actividade corrente de administração das partes comuns, quer nos casos em que lhe é permitido agir sobre as fracções autónomas. Esta hermenêutica valorativa permite-nos, pois, concluir que a assembleia de condóminos não pode, por exemplo, proibir a passagem de animais pelas partes comuns do edifício, v.g. um elevador (actividade normal de uso da coisa comum), se não se verificar em concreto um dano à segurança, higiene ou sossego do prédio.

A valoração das deliberações da assembleia de condóminos ou das decisões do administrador, no âmbito do art. 1436º, g), dependerá, assim, sempre das circunstâncias concretas do caso. Note-se que não há uma obrigação formal de fundamentação dos actos por parte destes órgãos. O que o interesse colectivo do condomínio impõe é um critério de valoração da actuação da assembleia e do administrador, que muitas vezes só será relevante em sede litigiosa.

Quais serão as consequências de uma decisão tomada pela assembleia contra o interesse colectivo do condomínio? Sendo este resultante do regime legal estabelecido para a propriedade horizontal, a solução segue o regime geral das deliberações da assembleia contrárias à lei e, portanto, será anulável a requerimento de qualquer condómino que a não tenha aprovado, nos termos do art. 1433º, n.º 1.

Notas:

(53) Cfr. FRANCESCO RUSCELLO, ob. cit., pág. 149.

(54) Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 408.

(55) GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, págs. 1095 e 1097.

(56) Para ANTONIO VISCO, “I cani...in regime condominiale”, in Nuovo dir., 1972, pág. 168, é absurda a proibição indiscriminada de ter um cão, ainda quando esta respeite apenas a diversas espécies destes animais. O cão além de ser um amigo que faz companhia e brinca com as crianças, é útil para a guarda. No mesmo sentido, GINO TERZAGO, “Detenzione di animali negli appartamenti di edifici in condominio”, Nuovo dir., 1969, págs. 415 ss. e LINO SALIS, “Il cani e il...condominio”, Riv. Giur. Edil., 1971, I, pág. 451. GIVORD/GIVERDON, La Copropriété, 4.ª edição, Dalloz, Paris, 1992, pág. 278, dão-nos notícia de a Cour de Cassation interpretou uma cláusula proibindo ter um cão como limitada aos “cães barulhentos”. E DARCY ARRUDA MIRANDA, JR., Dicionário Jurisprudencial do Condomínio, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, pág. 10, considera que improcede a acção cominatória proposta pelo condomínio contra o proprietário de apartamento visando compeli-lo à retirada de animal doméstico se, não obstante constar de proibição expressa, não se prova qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos moradores. A jurisprudência e a doutrina alemãs vão no mesmo sentido; cfr., por todos, HERMANN WEITNAUER, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 379.

(57) Nas palavras de ANTONIO VISCO, “I cani...in regime condominiale”, pág. 170, a cláusula “é proibido deter animais domésticos no apartamento” deve ser entendida não num sentido absoluto, mas antes relativo, devendo ser relacionada com as consequências, ou seja, com o distúrbio provocado pelo animal. Se o cão ou o gato, ou qualquer animal, não é causa de distúrbio para quem vive fora do apartamento, o autor considera que a proibição não tem valor porque constitui uma intolerável limitação à liberdade individual.

(58) Cfr. LUDWIG RÖLL, Handbuch für Wohnungseigentümer und Werwalter, pág. 56, e MARCEL SAUREN, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 144.

(59) HERMANN KAHLEN, Praxiskommentar zum Wohnungseigentumsgesetz, Luchterhand, pág. 176.

(60) Esta asserção tem vindo a ganhar força também na jurisprudência. Em Itália, a Pret. de Campobasso (Campopiano c. Mónaco), em 12.5.90, in ALC, 1991, 176, considerou que a simples detenção de um animal não faz o condómino incorrer na violação da proibição de deter animais, sendo necessário que se verifique, efectivamente, um prejuízo à colectividade dos condóminos. Na Alemanha, a BayObLG MDR (citada por MARCEL SAUREN, Wohnungseigentumsgesetz, pág. 144) já decidia neste sentido em 1972.

(61) ROBERTO AMAGLIANI, L’amministratore e la rappresentanza degli interessi condominiali, págs. 61 e ss.. CHRISTIAN LARROUMET, Les Biens, pág. 421, fala do interesse do imóvel distinto do interesse de cada um dos condóminos. Refere-se a interesse geral dos condóminos, LUCIO GIARLETA, “L’amministratore diventa datore di lavoro quando assume dei prestatori di lavoro per fare eseguire determinate opere per conto del condominio?”, in MT, 1974, pág. 600. Segundo MARINA/GIACOBBE, “Condominio negli edifici”, Enciclopedia Del Diritto, VIII, pág. 821, a posição de cada um converge na posição dos outros, em relação à unidade do interesse geral.

(62) Cfr. LAZZARO/STINCARDINI, L’amministratore del condominio, Giuffrè Editore, 1992, pág. 2.

(63) Assim M. ZACCAGNINI, “Il potere di convocazione dell’assemblea da parte dell’amministratore e da parte dei condomini”, Nuovo dir., 1970, pág. 809.

(64) Também quem entenda que, com base no art. 1422º, nº 2, al. d, (é especialmente vedado aos condóminos praticar quaisquer actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição), a assembleia pode proibir a detenção de animais numa fracção autónoma – o que nos parece, cada vez mais, duvidoso, pois a detenção de um animal não se enquadra na expressão “praticar actos ou actividades” tal como vem enunciada nesta disposição normativa – está sujeito, nessa decisão, à necessidade fundamentadora do concreto interesse colectivo do condomínio.



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