Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/02/2023

Os animais e o regime português da PH - Introdução

Introdução (1)

O problema de se saber se os condóminos podem ou não deter, e em que termos, animais no interior das respectivas fracções autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal tem vindo a ganhar maiores proporções nos dias que correm, devido ao aumento do número de animais de companhia, nomeadamente cães e gatos.

A resposta do Direito a esta questão há-de ter em conta, em primeiro lugar, o valor social do condomínio e a função do prédio como um dos lugares onde se desenvolve a pessoa humana (2), através da satisfação colectiva das exigências de habitação. A personalidade humana (3), além de uma unidade psicossomática, apresenta uma estrutura mais alargada, de teor relacional, sócio-ambientalmente inserida e que abarca dois pólos interactivos: o eu e o mundo. 

Enquanto unidade funcional eu — mundo, a personalidade humana pressupõe um certo espaço ou território e um conjunto de condições ambientais para a sua sobrevivência e desenvolvimento. Esse espaço ou território é preenchido, desde logo, pelo edifício colectivo que, enquanto fonte de estabilidade, constitui um pólo que permite o desenvolvimento da personalidade, através da satisfação de vários interesses humanos, de tipo fisiológico, psicológico e cultural, de que são exemplo o convívio, a intimidade familiar, a realização dos afectos ou o repouso.

A nossa Constituição adopta o direito à habitação como um direito de carácter social; nos termos do art. 65º, n.º 1, “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Para GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA4, o direito à habitação é não apenas um direito individual mas também um direito das famílias; em segundo lugar, é uma garantia do direito à intimidade da vida privada e familiar; finalmente, engloba um direito aos equipamentos sociais adequados—água, saneamento, electricidade, transportes e demais equipamento social — que permitam a sua fruição.

A habitação é um ponto de referência do indivíduo, um objecto de conteúdo afectivo e constituinte da sua auto-identificação (5). A casa não cumpre só a função social de assegurar um tecto ao indivíduo, mas representa também “um templo dos afectos familiares, donde a vida renascendo se perpetua, um refúgio dos sentimentos, uma fonte generosa da força de ânimo necessária para enfrentar a vida” (6). Esta asserção é reconhecida, pacificamente, no nosso ordenamento jurídico (7). 

Em si, a casa é um abrigo nu, um refúgio contra os elementos naturais; o lar é uma unidade social de espaço articulado à volta da família (8). Habitação e família (9) são, pois, dois termos estreitamente relacionados: a família influencia e é influenciada pela estrutura social a que pertence. O ambiente em que o indivíduo ou a família vivem determina as suas necessidades e o espaço determina o seu modo próprio de viver (10).

Tendo por adquirido que o valor social do condomínio se articula axiologicamente com a habitação e com a família, a resposta ao problema da detenção de animais num edifício constituído em propriedade horizontal deve reflectir, inevitavelmente, a sedimentação valorativa do crescente reconhecimento do papel dos animais na realização pessoal do indivíduo e da sua importância enquanto membros da colectividade familiar (11).

Uma comunidade habitável compreende os animais de companhia que partilham as nossas casas, a vida selvagem que habita nas proximidades e as espécies que migram através dos rios, florestas e montanhas. Todos contribuem para a habitabilidade da nossa comunidade, seja ela urbana ou rura l(12). Earl Blumenauer (13) dá-nos a conhecer que, em 2001, 40% das habitações nos Estados Unidos tinham um cão ou um gato—mais de cem milhões no total. E, em 1995, um estudo da American Animal Hospital Association havia concluído que grande parte dos donos de animais de companhia os considerava como membros da família. 

Os realizadores do estudo mostraram-se impressionados com o alto grau de importância que os donos davam aos seus animais, sendo que 70% dos inquiridos os viam como “their children” ou seja, como filhos. Em Portugal, a situação não é diferente. Muitas pessoas consideram os seus animais membros da família, despendendo tempo, atenção e dinheiro na sua alimentação, nos seus cuidados higieno-sanitários e nos seus tratamentos médicos.

O âmbito da nossa indagação está limitado aos animais de companhia, ou seja, aqueles detidos ou destinados a ser detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para seu prazer e como companhia (14). Numa altura em que o próprio critério axiológico do Direito Civil está em transformação, em que vários países europeus já qualificam os animais de companhia não como coisas mas como co-criaturas (15), pondo fim à dicotomia persona-res, a leitura a dar aos nossos textos legais não pode deixar de atender a esta evolução. Desta audaz, mas necessária, hermenêutica constitutiva, o condomínio resultará configurado como um espaço de convivência, em que os animais participam não como coisas mas como legítimos conviventes.

A presente exposição está estruturada em quatro partes: começamos por uma análise do regime geral da propriedade horizontal, com particular incidência no que respeita às proibições e restrições respeitantes a animais. Em segundo lugar, teceremos algumas considerações a respeito da interpretação e concretização dessas mesmas proibições e restrições. Em terceiro lugar, analisaremos o art. 3º do DL n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses, que estabelece um número máximo de animais a alojar em prédios urbanos, e cuja leitura pode ser equívoca. Por último, veremos como pode um condómino defender-se dos incómodos causados por um animal detido numa fracção autónoma vizinha.

Notas

(1) Texto de Sandra Passinhas, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

(2) Nas palavras de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 156, “a evolução física e a evolução espiritual do homem não se processam em separado mas concomitantemente e com influências recíprocas, sendo certo por isso, nomeadamente, que a personalidade humana não é um mero dado da natureza mas também um ser permanentemente trabalhado”.

(3) Cfr. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, pág. 200.

(4) GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 345, II.

(5) NICOLO LIPARI, “Svillupo della persona e disciplina condominiale”, Scritti in onere di Salvatore Pugliatti, Vol. I, tomo II, pág. 1159.

(6) Cfr. GINO TERZAGO, “Perché sociologia del condominio”, in Sociologia del condominio, a cura di Gino Terzago e AA. VV., pág. 6.

(7) Como se pode ler no Parecer da Câmara Corporativa sobre o Projecto do DL 40 333 (que regulamentou entre nós, pela primeira vez, o regime da propriedade horizontal), “a casa de habitação não representa, apenas, um refúgio material, como o poderia ser um quarto de um hotel ou qualquer inóspito telheiro, que abrigasse o homem das inclemências do tempo e lhe permitisse o descanso estritamente corpóreo. O lar é o quadro da vida da família, que, na sua inviolabilidade, exprime a independência e a intimidade desta; é o local onde o homem encontra as suas alegrias mais profundas, o repouso mais completo e são, o lugar onde ele se sente plenamente senhor, mas senhor intensamente humano, por haurir a sua autonomia na estima e nos afectos que o ligam a todos quantos o rodeiam (...) ”. E o acórdão do STJ, de 13 de Março de 1986, in BMJ, n.º 355, 1986, págs. 356 e ss., definiu que o lar de cada um “é o recatado pequeno mundo onde se procura encontrar o retempero de forças físicas e anímicas desgastadas pela vivência numa comunidade activa, agitada e esgotada dos tempos presentes, mormente nos grandes centros urbanos”.

(8) Assim, J. M. MELLOR, Sociologia urbana, Porto, pág. 153.

(9) Nas palavras de LUÍS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1995, pág. 72: “a família é tratada como a célula social básica em que se desenvolve primariamente a vida dos homens na sociedade moderna; e, se a tomarmos no sentido da chamada pequena família (composta dos pais e filhos), podemos configurá-la como o cadinho onde se forma a mentalidade das gerações que asseguram a continuidade da vida social”.

(10) Como nos diz YVES GRAFMEYER, Sociologia urbana, E.E.A., 1994, pág. 56, “a composição social da vizinhança e do bairro é fonte de um certo número de efeitos. Embora o espaço residencial não seja propriamente um sistema de interacção, suscita, por sua vez, ocasiões de interacção ou, pelo menos, situações de coexistência. Quer seja desejada ou inesperada, quer induza sociabilidades, tensões ou condutas evasivas, a proximidade do outro não é nunca completamente indiferente. Mesmo quando se desconhecem praticamente os vizinhos, a maneira como deles se fala traduz categorias de juízo, formas de se situar a si mesmo e de situar os outros (...)”.

(11) Veja-se STEVEN M. WISE, “Recovery of Common Law for emotional distress, loss of society, and loss of companionship for the wrongful death of a companion animal”, Animal Law, 1998, 46. Em 1994, um juiz norte-americano (Bueckner v. Hamel, 886 S.W. 2d 432) exortava os tribunais a reconhecerem que grande parte das pessoas nos Estados Unidos tratam os seus animais de companhia como membros da família e, em alguns casos, os animais de companhia são mesmo a única família que têm. E em 1997, o Supremo Tribunal de Vermont (Morgan v. Kroupa, 702 A.2d 630) dizia que o valor de um animal é mais afectivo do que económico; o seu valor deriva da relação que tem com os seus companheiros humanos.

(12) Cfr. CONGRESSMAN EARL BLUMENAUER, “The role of animals in livable communities”, in Animal Law, 2001, i.

(13) Ibidem.

(14) Segundo a definição da Lei nº 92/95, de 12.9.1995, sobre a protecção dos animais, são animais de companhia como aqueles detidos ou destinados a ser detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para o seu prazer e como companhia. A definição do Dl 276/2001, de 17.10, que estabelece as normas tendentes a pôr em aplicação a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia e um regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos, é similar: “qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente, no seu lar, para seu entretenimento e companhia”. Esta definição manteve-se com o DL 315/2003, de 17.9.

(15) Cfr. o art. 285º do Código Civil Austríaco, o §90 do Código Civil Alemão e o art. 614º do Código Civil Suíço. Estas disposições são unânimes em determinar que os animais não são coisas, que são protegidos por leis especiais e que o regime geral do Direito das Coisas só lhes é aplicável na ausência de preceito específico e no que não contrarie o regime especial previsto.

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