Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/16/2023

(Con)vivência vs barulho da vizinhança - IV


Diferentes ruidos de vizinhança
 
Animais
 
Dedica-se um capítulo, ainda que sucinto, relativo ao tema dos animais de companhia precisamente pelo barulho que os mesmos podem provocar e afectar as fracções vizinhas. Relembrando a análise relativa à constituição da PH e que a mesma deve constar de TCPH, nos termos das disposições dos art. 1418º, 1429º-A e 1431º do CC, importa agora referir que no âmbito do direito de propriedade, cada condómino é detentor do direito de propriedade do seu imóvel, ou dito de outro modo, da sua fracção autónoma. E como tal, goza de modo pleno e exclusivo do direito de uso, fruição e disposição da sua fracção. 
 
Não obstante desse gozo pleno e exclusivo se encontrar limitado ao cumprimento das restrições impostas por lei, não decorre da lei qualquer proibição à existência de animais de companhia numa fracção autónoma, mas sim ao proprietário de cada fracção, não podendo o condomínio ter qualquer ingerência sobre a decisão que pertence a cada condómino e à sua fracção. 
 
A ingerência do condomínio, isto é, dos restantes condóminos, apenas ocorre quando têm de se pronunciar sobre questões relativas às partes comuns em assembleia de condomínio. Todavia, o deliberado numa assembleia de condomínio, assim como o que ante venha ou seja transposto para o respectivo regulamento condomínio quanto à existência e/ou permanência de animais, e ainda o número de animais nas fracções autónomas apenas vincula quem aprovou. Assim, o único meio de proibição da detenção de animais de companhia numa fração autónoma apenas pode surgir do título constitutivo (16).

Por sua vez, o DL nº 314/2003 de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses (PNLVERAZ) - prevê no seu art. 3º nº 1 “O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e ausência de riscos hígio-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.”; e ainda no nº 2 “Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.” e, por fim o nº 3 “No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número anterior.”
 
No que concerne aos barulhos e ruídos provenientes de animais de estimação, comummente o latir e o miar, entre outros, aplica-se a lei geral do ruído. Compreende-se que em causa não falamos de barulhos do dia-a-dia, provenientes do uso normal de habitação e por isso suportáveis por qualquer pessoa. Antes, estaremos perante as situações de manifestações de um ladrar ou miar considerado intenso, repetitivo e incomodativo, de forma a impeça ou a dificulte reiteradamente o descanso dos restantes condóminos. 
 
Uma vez mais, o direito de personalidade, no qual se inclui o direito ao descanso e ao sossego derroga o direito à habitação quando da mesma ocorrem barulhos provenientes da existência de um animal. Embora ambos sejam direitos constitucionalmente protegidos, isto é, os direitos de personalidade e os direitos de habitação, aqui entendidos como o direito a ter um animal e nessa medida entendido como fundamental para o desenvolvimento e harmonia de um lar, na verdade, este direito pode ser derrogado pelos direitos de personalidade (17).

Uma vez mais, quando o barulho ocorra entre as 23 horas e as 07 horas da manhã, qualquer condómino pode apresentar queixa e as autoridades policiais adoptam medidas para fazer cessar o barulho. Se o barulho ocorrer entre as 07 horas e as 23 horas, as autoridades policiais podem fixar um prazo para se pôr fim ao problema. A violação deste período de descanso constitui uma contra-ordenação ambiental, punível com coima (18).

Notas

(16) Discorre do Ac. do Julgados de Paz de Coimbra, Processo 42/2011-JP, de 29-08-2011, relator, Dionísio Campos, “(...) Os órgãos do condomínio existem para a administração apenas das partes comuns (art. 1430º, nº 1 do CC), e não já das fracções autónomas, o que impõe uma demarcação rigorosa entre o que os órgãos do condomínio podem deliberar e executar e o que, não estando na sua competência, cai fora do seu âmbito de actuação. Assim, se um condómino, dentro da sua fracção privativa, produz ou permite barulhos (por exemplo, de cães) superiores ao permitido pela lei administrativa e a horas interditas a tais ruídos, perturbando os seus vizinhos, viola o dever de não produção de ruídos de vizinhança consagrado no art. 1346º do CC e no Regulamento Geral do Ruído. 
(...) Assim, se a assembleia de condóminos aprovar uma cláusula do regulamento que proíba os condóminos de deterem animais domésticos nas suas fracções, estaremos perante uma norma que, em princípio, não vincula os condóminos, dado que atinge o domínio privativo da propriedade sobre as fracções autónomas, cujo aproveitamento pertence exclusivamente aos respectivos proprietários. Isto não significa, obviamente, que os condóminos não estejam sujeitos às restrições de vizinhança nas relações entre si, uma vez que a delimitação negativa da propriedade opera igualmente no campo da propriedade horizontal. 
Porém, em caso de violação de um dever de vizinhança pelo proprietário de uma fracção, cabe ao condómino ou condóminos afectados reagir nos termos gerais de Direito, incluindo o pedido judicial de condenação na cessação da actividade ilícita e a indemnização pelos danos sofridos (cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pp. 733-734). Mas uma coisa é uma deliberação restritiva imposta a outrem, outra são os comportamentos voluntariamente contratualizados e assumidos. 
Assim, nada obsta a que os condóminos se vinculem voluntariamente a certos comportamentos, dentro dos limites da sua autonomia contratual (cfr. Sandra Passinhas, Os animais e o regime português da propriedade horizontal, 2006, pp. 833-873). Porém, tais acordos condominiais vinculam apenas quem a eles se obrigou, e não já terceiros, como é o caso do arrendatário que a tal não se tenha concretamente obrigado. (...)”,inhttp://www.dgsi.pt/cajp.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/264977471e50638480257ac4003b1804?OpenDocument&Highlight=0,animais,barulho,condom%C3%ADnio,ru%C3%ADdo

(17) Discorre do acórdão TRL, Processo 1229/05.0TVLSB.L1-2, de 01-10-2009, relatora Ondina Carmo Alves, “(...) como refere CAPELO DE SOUSA, ob. cit., 547, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflictuantes direitos de outro tipo». 
Urge, portanto, averiguar se, no caso concreto, a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, visto que, como antes ficou dito, o sacrifício e limitação do direito considerado inferior – direito de propriedade - deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante. Para o efeito, importa lançar mão dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, ou seja, há que sopesar a adequada proporção entre os valores em análise, aquilatando em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva. No caso em apreço, não ficou demonstrado que os cães pertencentes aos réus estivessem constantemente a ladrar não parando de ladrar, de dia e de noite e que, por isso, os autores estivessem impossibilitados ou com enormes dificuldades em dormir e que a filha dos autores tivesse, por virtude desse facto, dificuldade de se levantar de manhã. 
(...) É verdade que ficou provado que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir, admitindo-se que em consequência do ladrar dos cães, mas por provar ficou que, por essa circunstância, os autores não tenham conseguido dormir inúmeras noites –v. resposta negativa dadas aos artigos 20º da Base Instrutória. 
(...) A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros como, de resto, ficou demonstrado nos autos. Os próprios autores, pese embora sofram de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães dos réus, eles próprios são igualmente produtores de ruído – v. nºs 23 a 25 dos Fundamentos e Facto –sendo certo que os autores também têm na sua habitação um cão que não pode deixar de ladrar, sendo susceptível de causar algum incómodo a outras pessoas igualmente hiper-sensíveis ao ruído. 
Em face da prova produzida entende-se que a reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada. Não é aceitável, atento o circunstancialismo fácito apurado, que os réus/apelados não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães. (...)”, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/40604c53baeec5978025767a0061e331?OpenDocument
 
(18) Discorre do acórdão do TRL, Processo 613/08.2TBALM.L1-2, de 15-10-2009, relator Neto Neves, “(...) Para o caso, tratando-se de ruídos incómodos provocados por animais de estimação, deverá questionar-se a violação grave e reiterada de regras de sossego. (...) Como se referiu, alguns moradores do prédio, dois das fracções imediatamente por cima e por baixo da arrendada e um terceiro de uma fracção do mesmo andar desta, queixam-se da existência de barulho provocado pelos cães do R. e da interveniente, que ladram durante o dia e esporadicamente durante a noite, quando tocam ou batem à porta daqueles ou quando sentem alguém no patamar do 4º andar ou aquando da paragem do elevador. Este facto não aponta para uma gravidade extrema do ruído. 
Por um lado, o barulho é essencialmente diurno – o qual, por regra, é absorvido pela própria actividade e conversas de cada morador, também elas geradoras de ruído, frequentemente acrescidas de sons hoje em dia provenientes do funcionamento de aparelhos domésticos, entre eles os rádios e as televisões e, portanto, de pequeno impacto, por via de regra, não sendo normal que se durma nessa parte do dia – e, por outro lado, só esporadicamente nocturno, mas, sendo este devido a factos como o tocarem ou baterem à porta do R., passagem de pessoas no patamar do andar ou paragem nele do elevador, não se evidencia que o ladrar dos cães seja constante, prolongado e que ocorra a horas muito tardias da noite. 
(...) Na apreciação da gravidade do ruído deve, ainda, ter-se em conta que, devendo embora ser sempre respeitado no essencial o direito ao sossego e repouso nocturno, mormente em prédios em que, pelo número de habitações que os compõem, os ruídos mais facilmente se multiplicam, é socialmente tolerada, mesmo em tais prédios, a existência de animais domésticos de companhia e de pequeno porte, ainda que causadores de um certo nível de barulho, desde que nem elevado nem constante ou muito repetitivo e não persistentemente nocturno. 
Não se vê, pois, que a conduta do R. e mulher, ao possuírem os três cães causadores dos ruídos incómodos apurados, se revista de gravidade e gere consequências que torne inexigível para um locador normal a subsistência do contrato de arrendamento. (...), in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a7514017d204b39480257673005f3d5d?OpenDocument&Highlight=0,animais,barulho,condom%C3%ADnio,ru%C3%ADdo

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