Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/28/2022

Deliberações nulas

As deliberações da assembleia de condóminos são susceptíveis de enfermar dos vícios da anulabilidade, da nulidade, da ineficácia e da inexistência. No presente escrito, debruço-me sobre as deliberações nulas.

Quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública, as deliberações tomadas devem considerar-se nulas e, como tal, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado nos termos do art, 286º CC. Se assim não fosse, estaria nas mãos dos condóminos derrogar os preceitos em causa; bastaria que, após a aprovação das deliberações, nenhum deles as impugnasse. Por exemplo, a assembleia poderia autorizar a divisão das partes necessariamente comuns do edifício (cfr. art. 1421º, nº 1 CC) ou, desrespeitando o art. 1429º, poderia dispensar o seguro contra o risco de incêndio ou suprimir o recurso dos actos do administrador, apesar do disposto no art. 1438º do CC.

Se a anulabilidade fosse aplicável a todas as deliberações desconformes com os preceitos legais, isso significaria estar nas mãos dos condóminos a produção de quaisquer efeitos jurídicos através de deliberações da assembleia, efeitos esses que estabilizariam, caso nenhum condómino viesse a impugnar judicialmente o acto em causa, dentro do curto preza estabelecido (cfr. para as sociedades, Lobo Xavier, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1975).

"Deveria falar-se de nulidade de um negócio jurídico sempre que se esteja em face de um negócio efectado por um vício genético que o torne inapto para a produção dos efeitos a que se destina, de tal forma que essa produção seja automaticamente excluída, em regra desde o início e de modo absoluto e insanável. Por sua vez, dir-se-á anulável o negócio afectado por um vício genético que o priva, em regra retroactivamente, dos efeitos a que se destina, se a pessoa ou pessoas para tanto legitimadas obtiverem nesse sentido uma decisão judicial ou o acordo da contraparte (cfr. Rui de Alarcão, Sobre a invalidade do negócio jurídico, Separata do BFD, Coimbra, 1981, pág. 18).

São nulas as deliberações que violem normas gerais imperativas, nomeadamente, são nulas as deliberações cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (cfr. art. 280º CC). A deliberação tem de ser clara e determinada, sob pena de nulidade (cfr. Weitnauer, Kommentar, 8ª edição, Verlah Franz Vahlen, Munique, 1994).

São assim nulas, nos termos dos art. 286º e 287º do CC, e como tais, impugnáveis a todo o tempo por qualquer interessado, as deliberações que colocarem em causa o conteúdo de normas imperativas, a saber, as normas que tutelam directamente o interesse público ou que estabelecem tutela autónoma de terceiros, enquanto preceitos da lei de natureza imperativa, cuja violação dá origem à nulidade da deliberação, nomeadamente os art. 1421º, nº 1, 1422º, nº 2, 1423º, 1427º, nº 1, 1428º, nº 1, 1429º, 1432º, nº 3 e nº 4, 1435º, nº 1, 1437º e 1438º, todos do CC.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1987, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 448), “quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha-se, por ex., que a assembleia autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o nº 1 do art. 1421º considera forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo nº 1 do art. 1428º; que elimina a faculdade, atribuída pelo art. 1427º a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício; que suprime o recurso dos actos do administrador a que alude o art. 1438º; ou que dispensa o seguro do edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no nº 1 do art. 1429º), as deliberações tomadas devem considerar-se nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 286º”.

Conhecer os preceitos da lei cuja violação dá origem à nulidade da deliberação e um problema de interpretação sistemática-normativa. Pertencem necessariamente ao conjunto dos precitos em causa as normas que tutelam directamente o interesse público ou que estabelecem tutela autónoma de terceiros.

Na medida em que a lei não remeta para o exame do regulamento ou das deliberações da assembleia dos condóminos, deve o futuro adquirente de uma fracção autónoma poder confiar em que a regulamentação legal governará, efectivamente, o condomínio, ficando desonerado de mais averiguações. Isto não significa que se não possam julgar nulas as deliberações quando a ilegalidade do seu conteúdo não se traduza na ofensa de disposições legais expressas. Assim, por exemplo, conquanto a lei não o diga expressamente, é evidente que ao titular do direito de voto cabe igualmente o direito de discutir os assuntos sobre os quais irá deliberar a assembleia. Ora, é nula a deliberação que, com vista a assembleias, ulteriores, suprima o último direito mencionado.

Quanto às regras legais destinadas a proteger directamente os condóminos, e não terceiros ou o interesse público, o tema da nulidade levanta alguns problemas delicados. Só quando a violação das normas mencionadas em último lugar se traduz no conteúdo da deliberação, id est, quando fixa disciplina oposta à que aquelas prevêem, poderá o acto julgar-se nulo. Pois por esta via é susceptível de ser afectada a posição dos futuros condóminos, cujos interesses os preceitos em causa pretendem salvaguardar.

É necessário que o acto tenda a criar uma situação com um certo carácter de permanência - o que desde logo sucede com as deliberações que alteram o regulamento do condomínio. Há, ainda, normas endereçadas à tutela dos condóminos que excluem absolutamente a eficácia das deliberações que estabeleçam ma disciplina com elas constante, seja qual for a duração prevista para a referida disciplina. O legislador quis garantir a funcionalidade do condomínio, ligada a considerações de justiça material.

Deste jeito, a deliberação que, pelo seu conteúdo, viola tais normas, deve julgar-se nula, ao menos por contrariar aquela esquema mínimo de organização do condomínio que corresponde às exigências mínimas do legislador - designadamente quanto à salvaguarda da posição individual de cada condómino no âmbito da colectividade - ou, enfim, por não servir quaisquer interesses merecedores de tutela jurídica. Referimo-nos, verbi gratia, aos art. 1429º, nº 1, al. a), 1430º, nº 1 e 2 e 1435º do CC.

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