Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/24/2022

Barulho de animais II

Acórdão: Tribunal Relação de Lisboa
Data: 01/10/2009
Descritores: Direito de personalidade
                      Direito de propriedade
                      Principio da proporcionalidade

Súmula:

1. A existência de uma relação tendencialmente conflituante entre direitos constitucionalmente garantidos - o direito ao descanso e sossego, enquanto direito de personalidade - e o direito de propriedade - leva à necessidade de dirimir o conflito de direitos daí decorrente, de acordo com o contexto jurídico e a respectiva situação fáctica.
2. Sendo embora de respeitar a real prevalência dos direitos de personalidade relativamente ao direito de propriedade, fruto da hierarquia decorrente, designadamente, das normas constitucionais, essa hierarquia não é absoluta, havendo que sopesar a realidade factual em concreto, tendo em consideração que o direito hierarquicamente inferior – neste caso, o direito de propriedade - deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
3. Há que averiguar se, no caso concreto, a prevalência de um direito relativo à personalidade não resulta em desproporção inaceitável, apelando-se aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, por forma a aquilatar em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro, vedando-se o uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
4. A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros.
5. A reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada, não sendo aceitável, atento o circunstancialismo fáctico apurado, que os réus não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães. 

Caso:

Fundamentaram os autores, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de possuírem os réus, seus vizinhos, no jardim da sua moradia, numa jaula, dois cães, que estão constantemente a ladrar, privando os autores, bem como a filha destes, de descanso e tranquilidade, o que se tem agravado substancialmente nos últimos tempos. Mais alegaram que, perante a inércia dos réus e a falta de eficácia da acção da autoridade policial a que recorreram, intentaram contra aqueles um procedimento cautelar, vindo o mesmo a terminar por transacção, uma vez que os réus colocaram coleiras eléctricas nos cães, impedindo-os de ladrar com tanta intensidade.

Contudo, e porque os animais deixaram depois de usar as ditas coleiras, os autores intentaram contra os réus novo procedimento cautelar onde os mesmos foram intimados a adoptarem medidas necessárias a eficazmente impedir os seus animais de os continuarem a incomodar, ou, caso o não conseguissem de imediato, a entregar os cães a um fiel depositário. Alegaram ainda os autores que, perante a reiteração da passividade dos réus, solicitaram a remoção dos animais para o canil municipal, já que o ruído provocado pelos mesmos lesa gravemente o respectivo direito ao repouso, descanso e tranquilidade, bem como o direito à saúde da sua filha menor, registando já os autotes um profundo mal estar, caracterizado por cansaço e por irritabilidade extremos, o que determinou alterações no rendimento profissional do autor, e no rendimento escolar da filha.

Computaram os autores os danos sofridos em consequência do comportamento dos réus, para efeito de compensação, em € 15.000,00. 

Ficou provado nos autos que autores e réus residem em moradias contíguas e que os réu, que sempre possuíram cães, têm no jardim da respectiva moradia um canil onde permanecem dois cães de raça pastor alemão, tal como sucede com a maioria das casas do bairro onde todos residem e que servem para guardar as respectivas casas, protegendo-as de assaltos.

Tais cães ladram de forma correspondente ao porte que têm, em determinadas ocasiões do dia e da noite, quando alguém se aproxima do portão da casa dos réus, ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão, o que sucedeu até serem removidos, por virtude de decisão cautelar.

Igualmente se apurou que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir. Admite-se que essa circunstância haja sido em consequência do ladrar dos cães, tanto mais que as desinteligências entre as partes em torno dos cães remontam a alguns anos atrás - pelo menos a 2002 - como o demonstram os procedimentos cautelares intentados pelos autores contra os réus, a participação crime efectuada pelos réus contra os autores, bem como o recurso à autoridade policial efectuada pelos autores, deslocando-se tal autoridade policial ao local.

Reconhece-se, por outro lado, o direito dos réus à propriedade privada, usando-a para os fins que entenderem, e nela poderem usufruir da convivência de animais de companhia, como sejam os cães, utilizando-os também por questões de segurança da respectiva habitação. E, considerando que a tutela dos direitos de personalidade implica que se tenha como referência a pessoa em concreto, igualmente se admite que haja ocorrido, no caso em apreço, alguma perturbação no direito dos autores ao descanso e sossego.

Mas, importa ponderar se tal ocorrência implica automaticamente uma limitação do direito dos réus ou, ao invés, se a imposição dessa limitação dependerá da intensidade e do desvalor da invocada perturbação do direito dos autores, o que nos leva a apreciar a questão subsequente.

No caso em apreço, não ficou demonstrado que os cães pertencentes aos réus estivessem constantemente a ladrar não parando de ladrar, de dia e de noite e que, por isso, os autores estivessem impossibilitados ou com enormes dificuldades em dormir e que a filha dos autores tivesse, por virtude desse facto, dificuldade de se levantar de manhã.

Em suma, não ficou provado, conforme fora alegado pelos autores, que em consequência do barulho provocado pelos cães dos réus, os autores se encontrem privados constantemente do descanso e tranquilidade e que tal se haja agravado nos últimos tempos.

É verdade que ficou provado que os autores, algumas noites, tiveram dificuldade em dormir, admitindo-se que em consequência do ladrar dos cães, mas por provar ficou que, por essa circunstância, os autores não tenham conseguido dormir inúmeras noites.

Acresce que tão pouco se provou que as noites mal dormidas pelos autores, bem como pela filha destes, lhes hajam causado, nos dias imediatos, qualquer mau estar, caracterizado por um cansaço e irritabilidade, ou que tal facto lhes haja causado alterações no rendimento profissional ou escolar.

Da prova produzida não pode deixar de se concluir que é mínimo o atentado ao descanso e sossego dos autores.

A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros como, de resto, ficou demonstrado nos autos.

Os próprios autores, pese embora sofram de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães dos réus, eles próprios são igualmente produtores de ruído sendo certo que os autores também têm na sua habitação um cão que não pode deixar de ladrar, sendo susceptível de causar algum incómodo a outras pessoas igualmente hipersensíveis ao ruído.

Em face da prova produzida entende-se que a reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada.

Não é aceitável, atento o circunstancialismo fáctico apurado, que os réus/apelados não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães.

Concorda-se, pois, com a Exma. Juíza do Tribunal a quo quando conclui que a axiológica e normativa superioridade dos direitos de personalidade, sobre os direitos de propriedade, não se verifica no caso concreto, isto é, os contornos circunstanciais dos interesses dos Autores, por um lado, e dos interesses dos Réus, por outro, não justificam que se imponha a estes o sacrifício do seu direito, face à natureza da lesão do direito daqueles (princípio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para os Réus, afectados pelas medidas restritivas requeridas (princípio da razoabilidade).

Improcedeu, portanto, o recurso de apelação, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.

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