Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/22/2022

Alterar o uso de uma fracção

A menção do fim a que se destina a fracção tem um interesse muito especial, pois permite informar que a fracção se tem apta para o fim a que se destina, seja habitação, comércio ou indústria, exercício de profissão liberal ou outro fim lícito, possibilitando ainda verificar se há conformidade entre o projecto camarariamente aprovado e licenciado e o destino dada à fracção.

Resulta do art. 1305º do CC que "O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposições das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas". Ora, por força do art. 1422º, nº 2, al. c) do CC, o fim a que uma fracção autónoma se destina constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção.

Nesta factualidade, se um condómino pretender alterar o fim a que se destina a sua fracção autónoma, deve cumulativamente, consentimento dos demais condóminos em reunião plenária, e da autorização de utilização conferida pela Câmara Municipal.

No primeiro caso, o condómino deve consultar um documento de consulta indispensável para o efeito: o título constitutivo da propriedade horizontal. Este documento poderá ser consultado junto do administrador do condomínio ou na Conservatória do Registo Predial, sendo que, do mesmo, em princípio, constará o fim de cada fracção (habitação, escritório, comércio, armazém, serviço, indústria, etc.).

Nesta factualidade, se o título constitutivo da propriedade horizontal que uma determinada fracção autónoma está destinada a habitação, o seu proprietário não pode utilizá-la para abrir um escritório ou uma loja. No entanto, importa observar que esta informação não de carácter obrigatório, pelo que o título constitutivo pode ser omisso, não constando no mesmo o fim a que se destina cada uma das fracções autónomas.

Avulta contudo esclarecer que:
 
i) Sempre que o TCPH não disponha sobre o fim a que se destina cada fracção autónoma, a alteração do seu uso carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por uma maioria representativa de 2/3 do valor total do prédio (cfr. art. 1422º nº 4 do CC);
ii) Quando o TCPH mencione o fim a que se destina uma fracção autónoma, por exemplo habitação, e o condómino pretender alterar o seu uso para comércio, a alteração carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por unanimidade (cfr. art. 1419º nº 1 do CC).

Acresce ainda salientar que a alteração do uso da fracção implica necessariamente na alteração do TCPH, sendo a que a mesma deverá obedecer ao requisito de forma exigido para a sua criação, escritura pública, lavrada por notário, ou documento particular autenticado, nos termos da lei.

Importa ainda, ressalvar que o uso havido mencionado no TCPH deverá estar em plena consonância com o projecto de construção aprovado pela respectiva CM, caso contrário, torna-se parcialmente nulo, ou essa estipulação negocial torna-se nula. E neste sentido, decidiu o Ac. Supremo Central Administrativo do Sul de 6/12/2008, Proc. nº 511/05.1BEBJA:

I – O destino a atribuir às várias fracções autónomas pode resultar apenas implícito na escritura de constituição de propriedade horizontal;
II - Sendo requerida a uma Câmara Municipal a alteração de uso de uma fracção autónoma, é lícita a exigência por essa Câmara da comprovação pelo particular requerente de que existe prévio acordo de todos os condóminos relativamente a essa alteração;
III- Do regime legal constante dos art.sº 1418.º, n.º 2, a), 3 e 1422.º, n.º 2, al. b) e 4, do Código Civil, decorre que o uso que foi atribuído pelo projecto de construção ao prédio e às várias fracções será o único uso que pode figurar no título constitutivo da propriedade horizontal. Caso este título divirja do que consta no projecto, torna-se parcialmente nulo, ou essa estipulação negocial torna-se nula. Na mesma lógica, estando omissa a indicação do uso no título constitutivo da propriedade horizontal, essa mesma circunstância irreleva para efeitos de se poder dar um uso diferente ao prédio ou à fracção. Isto é, na omissão dessa indicação no título constitutivo da propriedade horizontal terá sempre que valer o que ficou fixado no projecto de construção aprovado.
 
Atente ainda nesta outra decisão julgada nesta súmula do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-04-2010:

Está, como se referiu, vedado aos condóminos dar à sua fracção uso diverso do fim a que é destinado. O que significa que, uma vez fixada na escritura constitutiva de propriedade horizontal o fim a que cada fracção se destina, e desde que tal afectação esteja em conformidade com o fixado no projecto aprovado pela entidade pública, através da competente licença de utilização de cada fracção, apenas com acordo de todos os condóminos e por alteração ao título constitutivo poderá tal fim ser alterado, ainda que para a alteração tenha que concorrer, naturalmente, também um acto administrativo camarário, que legalize uma utilização diferente, por certo após a aprovação de um eventual projecto de alteração de obra e emissão de nova licença de utilização.

Não compete às Câmaras Municipais alterar o fim a que se destinam as fracções autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal. Não pode, ao contrário do defendido pelos Apelantes, a atribuição de licença camarária, ter a virtualidade de alterar o estatuto da propriedade horizontal e do condomínio, que a lei faz depender de acordo de todos os condóminos.

Estamos, assim, perante uma licença que não deveria ter sido emitida, quando em desconformidade com o título constitutivo. Aliás, nenhum princípio geral justifica seja dada prevalência, indiscriminadamente, a toda e qualquer norma de direito público sobre as normas de direito privado, tudo dependendo dos valores em causa.

Por isso, uma alteração de utilização de uma fracção autónoma não pode ser decidida imperativamente pela administração, com prevalência sobre as regras de afectação de uso estabelecidas em título constitutivo. Ao invés, uma alteração da utilização, sem a anuência de todos os condóminos, é que afectaria o interesse superior que levou à aprovação do projecto inicial, com base no qual se estabeleceu o estatuto da propriedade horizontal, frustrando a confiança que os adquirentes das fracções adquiriram de que sem o seu consentimento unânime se manteriam intocáveis os usos, porventura determinantes da sua resolução de adquirir

Concluindo:
1. O fim a que uma fracção autónoma é destinada constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção.
2. Nos termos do art. 1418.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, do CC, o título constitutivo da propriedade horizontal pode conter determinadas especificações, designadamente as relativas ao fim a que se destina cada fracção.
3. O título constitutivo só pode ser modificado, salvo o caso previsto no art. 1422.º-A do CC (junção e divisão de fracções) com o acordo de todos os condóminos.
4. A alteração da utilização de uma fracção autónoma não pode ser decidida imperativamente pela administração com prevalência sobre as regras de afectação de uso estabelecidas em título constitutivo.

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