Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/24/2022

Auto de Vistoria - Exigências

Vou aqui replicar uma queixa apresentada por um condómino ao Provedor Municipal, relativamente ao cumprimento das exigência legais atinentes aos Autos de Vistoria.

RECOMENDAÇÃO
 
Objecto da queixa: O cidadão apresentou queixa escrita ao Provedor Municipal alegando, no essencial, que fez várias diligências junto da Câmara Municipal e dos Tribunais, para resolver o problema da infiltração de águas na sua residência, mas ainda não conseguiu solução para o mesmo.
 
A queixa foi admitida, tendo sido solicitado ao Gabinete do PER o processo referente ao “auto de vistoria” a que o queixoso aludiu naquela mesma peça.
 
Pode dar-se como assente o seguinte: O queixoso solicitou a intervenção da Câmara Municipal no sentido de ser interpelado o proprietário da fracção autónoma situada sobre a que lhe pertencente, no sentido de proceder à reparação das deficiências existentes na construção, (varanda?) por forma a evitar as infiltrações que se verificam no tecto da sala da sua própria fracção. 
 
Nos termos do disposto no art.º 10º do R.G.E.U. foi ordenada uma vistoria, à qual se procedeu com elaboração do seguinte parecer: “Para corrigir as anomalias apontadas, torna-se necessário proceder a obras de reparação na varanda do 4º andar, por forma a evitar as infiltrações verificadas no tecto da sala do 3º andar.” 
 
O auto foi rectificado passando dele a constar 3º e 2º andar respectivamente. 
 
A providência cautelar não especificada intentada pelo aqui queixoso no Tribunal da Comarca de Cascais, onde pedia a intimação do condómino para proceder às obras apontadas no auto de vistoria da Câmara Municipal, foi indeferida, no essencial com a seguinte fundamentação: “...da respectiva causa de pedir não se alcança quais os estragos que uma divisão da sua residência apresenta, nem qual seja essa divisão, quando é que foram causados os invocados estragos ou quais as obras que pretende o requerido seja compelido a efectuar.”
 
O queixoso percorreu duas vias para tentar alcançar o seu desiderato, que é, como vimos, a reparação de uma deficiência, ao que parece na varanda do andar superior ao que lhe pertence e que aponta como causa de uma infiltração de águas no tecto da sua própria sala. 
 
Recorreu à Câmara e obteve a realização de uma vistoria nos termos do disposto no art.º 10º do R.G.E.U., então ainda em vigor, e ao Tribunal onde viu indeferida a sua pretensão para intimação do aludido proprietário para fazer as reparações tendentes a por termo às infiltrações de água. 
 
O indeferimento decidido pelo Tribunal não nos merece qualquer reparo. A causa de pedir (facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido) assenta no auto de vistoria e este, como vamos ver, não é idóneo a estribar o pedido formulado. 
 
Vamos explicar a razão desta concordância com a decisão judicial de indeferimento. 
 
Como é sabido a prova pericial faz-se mediante arbitramento, que pode consistir em exame, vistoria ou avaliação. A vistoria, modalidade que aqui nos interessa, tem por fim a averiguação, feita por peritos, de factos que tenham deixado vestígios ou sejam susceptíveis de inspecção ou exame ocular e recai sobre imóveis. 
 
Isto significa que a vistoria se traduz na percepção, por meio de pessoas idóneas, de factos presentes ou na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros, (factos) caso dependa de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, isto é, de regras da experiência que não fazem parte da cultura geral ou da experiência comum. 
 
Aquilo que os peritos dotados de conhecimentos especiais devem, por isso, descrever são factos directamente percepcionados ou determinados por ilações retiradas dessa observação. Isto mesmo se retira do art.º 10º do R.G.E.U., entretanto revogado, e do art.º 90º (nº 4) do D.L. n.º 555/99 de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 177/01 de 4 de Junho que o substituiu. O auto de vistoria deve conter a identificação do imóvel, a descrição do estado do mesmo e as obras preconizadas.
 
O auto de vistoria, elaborado na sequência do pedido de intervenção da Câmara por parte do agora queixoso, apenas alude a “anomalias apontadas” e “a obras de reparação na varanda por forma a evitar as infiltrações verificadas no tecto da sala do 3º andar.” 
 
Não cumpre, manifestamente, as exigências legais porquanto não só não descreve o estado do imóvel, (factos concretos percepcionados...,v. g., rachas, manchas, humidade visível, tinta e/ou estuque soltos etc...ou determinados por ilações...,v. g., aqueles factos são consequência directa e necessária de infiltração de água proveniente de...) como também as obras preconizadas (factos, v.g., é necessário remover ... e depois aplicar ... etc...) 
 
Não fazendo o auto tal descrição e limitando-se a petição introduzida em juízo, no essencial, a remeter para o mesmo, facilmente se conclui que a causa de pedir estava deficientemente formulada. A providência cautelar “não tinha pés para andar”, por deficiência é certo do auto de vistoria, mas sobretudo do requerente que não supriu, como devia, tal deficiência. 
 
Explicada esta vertente da questão, importa agora analisar a intervenção dos serviços da Câmara, essa sim “sindicável” nesta sede. A vistoria retratada no auto é deficiente e, como tal, deverá ser corrigida nos termos indicados. Uma coisa é certa, o munícipe não pode ser penalizado por tal facto e tem direito a ver analisado o pedido de intervenção formulado. 
 
Em nova vistoria deverá verificar-se o estado do imóvel, apurarem-se as obras consideradas necessárias a solucionar o problema, disto se lavrando novo auto corrigido em conformidade, seguindo-se os demais termos hoje previstos nos art.ºs 89º a 91º do citado D.L. n.º 555/99 com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º177/01. 
 
A confirmarem-se as queixas do munícipe não restarão dúvidas quanto a estar-se perante um caso de obras urgentes de conservação necessárias à correcção de más condições de salubridade e eventualmente de segurança... 
 
Transparece da queixa a ideia de que o condómino proprietário da fracção situada por cima da pertencente ao queixoso não colabora na resolução do problema. Não descortinamos qual a razão desta falta de colaboração. Todavia, caso o referido proprietário, regularmente notificado, não cumpra o que lhe for determinado na sequência da nova vistoria, deverão os serviços dar início ao procedimento coercivo a que hoje alude o art.º 91 do citado Dec. Lei. 
 
Finalmente, importa enfatizar que a descrição do estado do imóvel e a indicação precisa das obras preconizadas é indispensável, desde logo para que possa aferir-se do cumprimento integral ou defeituoso determinado e o valor estimado para essas mesmas obras em vista da eventualidade da sua realização coerciva. 
 
Formula-se, assim, a seguinte recomendação dirigida aos departamentos competentes para ordenar vistorias a imóveis: A vistoria traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas, de factos presentes ou na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros, (factos) caso dependa de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, isto é, de regras da experiência que não fazem parte da cultura geral ou da experiência comum. 
 
A vistoria em causa não cumpre, manifestamente, as exigências legais, porquanto o respectivo auto não só não descreve o estado do imóvel, (factos concretos percepcionados..., v. g., rachas, manchas, humidade visível, tinta e/ou estuque soltos etc...ou determinados por ilações...,v. g., aqueles factos são consequência directa e necessária de infiltração de água proveniente de...) como também as obras preconizadas (factos, v.g., é necessário remover ... e depois aplicar ... etc...)
 
A vistoria retratada no auto é deficiente e, como tal, deverá ser corrigida nos termos indicados. 
 
Em nova vistoria deverá verificar-se o estado do imóvel, apurarem-se as obras consideradas necessárias a solucionar o problema, disto se lavrando novo auto corrigido em conformidade, seguindo-se os demais termos previstos na lei. 
 
Cascais 07/07/03 
O Provedor Municipal 
Alberto M. G. Mendes

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