Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

3/28/2022

Deliberações anuláveis

As deliberações da assembleia de condóminos são susceptíveis de enfermar dos vícios da anulabilidade, da nulidade, da ineficácia e da inexistência. No presente escrito, debruço-me sobre as deliberações anuláveis.
 
São anuláveis, nos termos do nº 1 do art. 1433º do CC, as deliberações da assembleia dos condóminos contrárias à lei e ao presente regulamento. Decorridos os prazos consagrados no preceito anterior sem que seja suscitada a anulabilidade das deliberações, ocorre a prescrição da mesma por falta de tempestiva impugnação que invalide as deliberações que enfermam de vícios.

O art. 1433º, nº 1, do CC, segundo o qual são anuláveis as deliberações da assembleia contrárias a regulamentos anteriormente aprovados, a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado, é inaplicável às deliberações que violem preceitos de natureza imperativa e às deliberações que tenham por objecto assuntos que exorbitam da esfera de competência da assembleia dos condóminos.
 
Estas deliberações, estão sujeitas ao regime da nulidade e podem ser impugnadas a todo o tempo, nos termos do art. 286º do Código Cível.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha-se, por ex., que a assembleia autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o nº 1 do art. 1421º considera forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo nº 1 do art. 1428º; que elimina a faculdade, atribuída pelo art. 1427º a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício; que suprime o recurso dos actos do administrador a que alude o art. 1438º; ou que dispensa o seguro do edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no nº 1 do art. 1429º), as deliberações tomadas devem considerar-se nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do art. 286º”, por outro lado, “quando a assembleia se pronuncie sobre assuntos para que não tenha competência (tal será o caso em que, por exemplo, a assembleia sujeite ao regime das coisas comuns, sem o consentimento do respectivo titular, uma parte do prédio pertencente em compropriedade exclusiva a um dos condóminos), a deliberação deve considerar-se ineficaz: desde que a não ratifique, o condómino afectado a todo o tempo pode arguir o vício de que ela enferma, ou por via de excepção, ou através de uma acção de natureza meramente declarativa” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 1987, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 448.)

Importa referir que acompanharemos agora Lobo Xavier, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1975, pág. 268 e ss.. A doutrina que seguimos e expomos é toda da autoria do saudoso professor. Pela nossa parte, limitamo-nos a adaptar as suas ideias, e os seus exempolos, à problemática do condomínio. Imaginemos que o iter formativo de uma deliberação é influenciado no seu procedimento (sucessão de actos ordenados de certro modo em vista da produção de determinado efeito final) por uma outra que anteriormente se aprovou e que vem mais tarde a ser anulada.

Por exemplo, o regulamento pode disciplinar o modo de convocação da assembleia, de forma de representação dos condóminos, etc.. E com as cláusulas estatutárias por este modo introduzidas ou alteradas hão-de conformar-se as subsequentes deliberações . as quais deverão considerar-se anuláveis quando violem tais cláusulas, salvo nos casos excepcionais em que a violação possa julgar-se irrelevante (por exemplo, não vencendo a prova de resistência) (pág. 269). É possível também que uma deliberação não vise directamente regular a formação de outras e, no entanto, constitua, modifique ou extinga uma situação que a lei ou o regulamento quer que se tome em conta - sob pena, em princípio, da invalidade dos respectivos actos - nos procedimentos deliberativos que vierem ulteriormente a ter lugar: uma situação que influi na efectivação do aviso convocatório da assembleia, nas condições de constituição e funcionamento do órgão da referida.

É o caso da deliberação que elege as entidades a quem cabem poderes para convocar o colégio (pág. 271). A sentença que anula qualquer deliberação pertencente a uma das mencionadas categorias - isto é, qualquer deliberação que directa ou indirectamente afecta procedimentos deliberativos posteriores - tem consequências relativamente à validade das outras que em conformidade com aquela se tomaram antes da mesma sentença.

Suponhamos que a assembleia geral suprime a cláusula regulamentar que exige o envio aos condóminos de documentação detalhada sobre todos os assuntos a discutir na ordem do dia. Entretanto, é realizada uma nova reunião, sem que tal prescrição seja observada na convocação dos condóminos. Qual a influência sobre a validade do último acto da sentença que vem depois anular a deliberação de alteração do regulamento? A resposta implica apurar se a especialidade dos casos em questão justifica para eles um desvio das regras gerais, do princípio da retroactividade.

O sócio que requereu a anulação da deliberação primeiramente aprovada - por exemplo, a deliberação que revogou a cláusula regulamentar relativa ao envio de documentação detalhada - para alcançar todas as vantagens desta anulação, deverá ter o cuidado de impugnar também, à medida que forem tendo lugar e dentro do prazo legalmente previsto, todas as deliberações que venham a tomar-se em conformidade com a primeira. A solução contrária seria, em última análise, inconveniente para os seus próprios interesses. Com efeito, não lhe convirá, amiúde, a eliminação automática e indiscriminada de todas as deliberações que se encontrem nas circunstâncias descritas. A sujeição do autor da acção anulatória da primeira deliberação ao ónus da impugnação das deliberações subsequentes apresenta uma face positiva para este sujeito, enquanto lhe permite escolher, de entre os últimos actos, aqueles que pretende efectivamente ver eliminados.

Interessa ao condomínio a obtenção de segurança quanto à produção dos efeitos das deliberações da assembleia e à estabilidade de tais efeitis (ág. 301). A lei tutela este interesse de um modo particularmente cuidadoso. Em breve tempo, ficam os interessados seguros a respeito da eficácia da deliberação (se esta não foi impugnada) ou advertidos da possibilidade de a mesma vir a ser suprimida (caso o processo tenha sido efectivamente instaurado).

Ora, não cabem dúvidas sobre o interesse que neste conflito deve ter a primazia, de acordo com as valorações do sistema (pág. 397). Em conclusão, as deliberações cujo procedimento se conformou com uma anterior deliberação anulável, devendo o processo assim instaurado decidir-se de harmonia com a sentença que põe (pág. 382) termo à acção de anulação do acto anterior. Para o efeito, terá naturalmente o juiz de suspender a instância, até no outro processo ser proferida a aludida sentença, caso ainda o não tenha sido.

O segundo dos dois tipos de conexão necessária é aquele em que o conteúdo (a regulamentação de interesses a que o acto dá vida) de uma deliberação é influenciado pela deliberação primeiramente tomada (pág. 383). Imaginemos que a assembleia exonera o administrador. Numa reunião subsequente, é designado um novo administrador. Depois disto, a deliberação de exoneração vem a ser anulada pelo tribunal. Também aqui a eficácia da segunda deliberação (da que nomeou o administrador) apresenta-se como incompatível com a eliminação dos efeitos da anterior - que destituiu o administrador em exercício ao tempo (pág. 414).

O que acontece, na verdade, é que, caso continuasse a julgar-se plenamente eficaz a deliuberação em causa - a deliberação de nomeação - e, assim, subsistisse a designação do administrador, ficaríamos perante uma situação que a lei indubitavelmente não quer sancionar - e a que põe um obstáculo absolutamente inarredável: a existência de dois administradores. Esta deliberação tem de cair ipso iure, uma vez pronunciada a sentença que anula aquela outra que exonerou os administradores.

O problema que tem de pôr-se é somente o de saber se, pronunciada a sentença relativa à deliberação primeiramente tomada, a eliminação dos efeitos da outra deve ou não verificar-se ex tunc - e, assim, se a nomeação do novo administrador deve (pág. 423) ou não julgar-se ineficaz também em relação ao período que precedeu aquela sentença. A respeito dos referidos efeitos no tocante ao período considerado suporia negar efeito retroactivo à sentença anulatória em questão.

Com a anulação da deliberação primeiramente aprovada, os efeitos da segunda não resultam apenas atingidos a partir desse momento: o que acontece é que toda a eficácia do último acto fica pura e simplesmente excluída (pág. 424). Não pode fugir-se a considerar absolutamente privada de efeitos jurídicos a deliberação cuja sorte se discute. E, como tal resultado se liga directamente ao conteúdo do acto - valorado este, embora, à luz de uma circunstância extrínseca e posterior (a anulação da deliberação precedente) -, podemos afirmar que não é de uma superveniente eficácia (stricto sensu), mas sim de verdadeira invalidade que se trata aqui; ou melhor, de nulidade. Seria nula - por oposição do seui conteúdo a uma regra legal imperativa - a deliberação que tivesse designado o novo administrador depois de anulada a exoneração do administrador anterior (pág. 433). Nenhuma dúvida pode haver de que a deliberação cujo destino se discutiu estaria ferida de nulidade se, ao tempo em que se tomou, já tivesse sido decretada a anulação da deliberação anterior.

Deste modo, é-nos lícito formular a conclusão seguinte: nas hipóteses em que, por virtude do seu objecto (stricto sensu) ou do seu conteúdo, uma deliberação deveria julgar-se nula, caso não fosse precedida de outra deliberação com determinado alcance, ou caso esta, tomada efectivamente, já tivesse sido anulada, nula há-de julgar-se, também, quando somente após a sua aprovação veio aquela anulação a ser decretada (pág. 435). O facto, pois, de tal anulação sobrevir ao acto cuja sorte se pretende distinguir, em vez de o preceder, é, nesta medida, irrelevante.

Tomadas sucessivamente duas deliberações cujo conteúdo se conexiona por forma tal que a segunda seria anulável se porventura tivesse sido aprovada já depois da anulação da primeira, qual o destino daquela, na hipótese de lhe sobrevir a sentença anulatória do outro acto? Imaginemos que o regulamento do condomínio impõe que o administrador seja um profissional. Numa assembleia, os condóminos deliberam, invalidamente, revogar esta cláusula. Posteriormente, nomeiam um não profissional como administrador do edifício (pág. 509).

Em semelhante hipótese, os efeitos da deliberação sobre cujo destino nos interrogámos não ficam ipso iure eliminados; mas também não se mantêm necessariamente de pé: caso haja sido impugnada dentro do prazo que, em via geral, a lei prescreve - e assim, eventualmente, antes mesmo de pronunciada a sentença relativa ao outro acto -, a sentença em causa virá, por sua vez, a ser anulada, no termo do processo que lhe respeita. Resta acrescentar que o juiz deverá suspender a instância, até ser proferida a sentença referida à deliberação anterior, se o não tiver sido ainda (pág. 537). 

Quando a deliberação surge como inválida por força da superveniente sentença anulatória de uma deliberação conexa anteriormente tomada deve fazer-se apelo a um conceito que possa explicar cabalmente a situação por assim dizer expectante - susceptível de se resolver quer pela invalidade quer pela validade - em que se encontra a deliberação. Para tal, afigura-se-nos adequado o conceito de validade (ou invalidade) suspensa ou pendente (pág. 538). A esta luz, a sentença anulatória da deliberação primeiramente tomada não é causa de invalidade da outra, mas tão-somente funciona como evento resolutivo do estado de pendência que se verificava em relação à validade (ou invalidade) desta última.

Nos casos de conexão negativa - os casos em que uma deliberação anulável é adequada a influenciar o processo formativo ou o conteúdo da deliberação subsequente, a qual, todavia, não vem a conformar-se com a anterior, por modo que, julgada à face desta, deveria considerar-se inválida - a validade ou invalidade da deliberação tomada por último encontra-se também pendente, aparecendo igualmente como eventos resolutivos dessa pendência, quer a sentença anulatória da deliberação anterior, quer os factos de onde decorra a convalidação deste mesmo acto. Só que o sentido de tais eventos é agora perfeitamente inverso: a referida sentença resolve positivamente o estado de pendência, importando a validade da deliberação em causa; os outros factos mencionados resolvem-no negativamente, de maneira que tal deliberação terá de julgar-se inválida (pág. 545).

Por último, estudemos o caso de conexão voluntária entre a deliberação anulada e deliberações posteriores.

Suponha-se que o condomínio denunciou o contrato com a empresa de jardinagem, e que esta deliberação veio a ser anulada quando uma outra já havia estabelecido a rotatividade dos condóminos no tratamento dos jardins (pág. 548). Há as maiores probabilidades de que estes actos estejam ligados do ponto de vista da vontade dos sócios que aprovaram o último: ao fazê-lo, tais sócios, actuaram naturalmente em consideração da existência da deliberação anterior (pág. 551). Para avaliar da existência e da relevãncia desta conexão (pág. 553), tudo procede do próprio teor da deliberação em causa e das demais circunstâncias que a ela respeitam - uma vez que estas últimas sejam atendíveis, à luz dos critérios válidos no domínio da interpretação das deliberações sociais.

Nos casos em que se manifesta, por modo tácito ou expresso, semelhante intenção de dependência, ela importa que, sendo anulada a deliberação primeiramente aprovada, há-de considerar-se a deliberação posterior como desprovida de eficácia desde o momento em que teve lugar, sem necessidade de qualquer impugnação dirigida a tal resultado (pág. 576 e 577). Nem interessa que os votantes tenham ou não possuído nítida e completa noção do alcance jurídico desta dependência, ou até que tenham ou não representado a possibilidade de a primeira deliberação ser nula ou as vicissitudes susceptíveis de vir a influenciar a sua eficácia (pág. 578 e 579). O facto de os seus efeitos resultarem afectados com a anulação de outra deliberação funda-se imediatamente no vontade dos sócios, e não em qualquer vício de que o acto deva julgar-se atingido, como consequência da referida conexão.

A assembleia pode, através de mera deliberação, modificar ou revogar o regulamento do condomínio vigente. Esta modificação ou revogação é feita por deliberação tomada por maioria simples, ainda que o regulamento anterior tenha sido aprovado por unanimidade. Todavia, o legislador considera anuláveis as decisões concretas que violem a norma geral e abstrata contida no regulamento, onerando os condomínios a modificá-lo previamente.

Entre os preceitos nulos, não podem contar-se as determinações contrárias a normas estatutárias (que não sejam, como por vezes sucede, a reprodução pura e simples do conteúdo de regras legais). Se os condóminos livremente acordarem na elaboração do regulamento do condomínio, os mesmos condóminos podem depois suprimir ou alterar as suas cláusulas e, por maioria de razão, renunciar à sua observância num caso concreto (cfr. Lobo Xavier, ob. cit., pág. 148). Sendo assim, não estão aqui em causa interesses que não sejam os dos condóminos que o forem em cada momento. E a protecção destes interesses não requer que a eficácia a que tente a deliberação que os ameaça se considere, ab origine, absoluta e definitivamente excluída: tais interesses ficarão suficientemente protegidos entregando-se aos condóminos a decisão sobre os efeitos do acto. Quer isto dizer que o vício de que enferma a deliberação que simplesmente contraria estipulações do regulamento nunca se traduzirá na nulidade, mas tão-só na anulabilidade -, ou, em certos casos, na ineficácia até ao assentimento de determinado condómino.

Henrique Mesquita, A propriedade horizontal, pág. 140, nota 140, considera que o art. 1433º, nº 1, carece de uma interpretação restritiva, devendo entender-se que os regulamentos a que nele se alude são, apenas, os de raiz negocial - os que constem do TCPH (do título originário ou de alterações nele introduzidas posteriormente, mediante acordo de todos os condóminos). Parece-nos, todavia, que a interpretação restritiva não vai de encontro às reais intenções do legislador. Resulta da lei que se quer atribuir um valor diferenciado às deliberações aprovadas pela assembleia de condóminos e ao regulamento do condomínio, ainda que este seja aprovado por assembleia através de deliberação (conforme o princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos). Veja-se o art. 1424º, nº 2, que estabelece que as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento do condomínio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição, desde que devidamente especificados e justificados os critérios que determinam a sua imputação. A lei atribui um valor reforçado ao regulamento do condomínio e, por isso, sujeitou esta decisão sobre as despesas à forma de regulamento.

São ainda anuláveis as deliberações afectadas de vícios formais, isto é, tomadas em violação de prescrições legais ou regulamentares atinentes ao procedimento de convocação da assembleia: quando se verificou a falta de convocação de alguns dos condóminos, ou de terceiros com direito a participarem na assembleia (usufrutuário, usuário, locatário, nos contratos de leasing para habitação, depositário judicial e fiduciário) ou quando a convocação foi efectuada com um prazo inferior a dez dias. À falta de convocação é equiparada a convocação por pessoa diferente do administrador ou de condóminos que representem, pelo menos, 25% do capital investido (salvo no caso de um condómino recorrer de actos do administrador). Considera-se, ainda, que há falta de convocação se o aviso não contiver a indicação do dia, hora ou local  da reunião, ou se a assembleia reunir fora do local indicado para a reunião ou antes da hora aí estabelecida.

As deliberações da assembleia são anuláveis quando incidam sobre matérias não indicadas na ordem do dia ou quando estejam presentes terceiros não autorizados na reunião. A lesão do direito de participação dos condóminos nas suas três vertentes, não produz efeitos invalidantes sobre a constituição da assembleia, não sendo equiparável à falta de convocação, mas reflecte-se na deliberação adoptada, que se torna impugnável: de facto, a cada participante na assembleia de condóminos deve reconhecer-se o direito de manifestar a sua vontade, não apenas mediante a expressão conclusiva do voto, mas ainda mediante a intervenção na discussão, a fim de levar ao conhecimento dos outros presentes as razões do seu sentido de voto.

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