Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

4/14/2022

Requisitos das fracções autónomas

Nos termos do art. 1415º do CC, as fracções autónomas só podem ser objecto de PH se constituírem unidades independentes, forem distintas e isoladas (1) entre si, e com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (2). A par destes requisitos, as fracções autónomas têm de satisfazer uma série de exigências de direito público, maxime as impostas pelo RGEU.

Já a falta de requisitos legalmente exigidos (3) importa a nulidade (4) do TCPH e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade (5), pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada no TCPH ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção autónoma (cfr. art. 1416º, nº 1 do CC) (6). O negócio jurídico é nulo por vício do objecto - legalmente impossível (cfr. art. 280º do CC) - e não pode produzir os seus efeitos normais: a constituição da PH. O que não significa que não produz efeitos jurídicos. Por conversão igual (7), o acto vale como constitutivo de um direito de compropriedade, sem dependência dos requisitos exigidos pelo art. 293º do CC. A conversão só tem lugar, note-se, quando o vício que atinge o negócio jurídico diga respeito ao objecto,  e não quando haja qualquer outra deficiência no TCPH, como, por exemplo, um vício formal (8)


(1) Sendo exigido o isolamento das fracções autónomas, não pode considerar-se conforme à lei a prática que consiste em delimitar as garagens, quando o TCPH lhes atribua natureza privativa - considerando-as fracções autónomas de per si ou elementos de outras fracções -, através de linhas marcadas no pavimento (e não através de paredes). Tal processo apenas será admissível quando a parte do imóvel afectada a garagem seja comum e as linhas de demarcação se destinem tão somente a disciplinar o poder de uso que a todos os condóminos compete, assinalando o espaço reservado a cada um (assim, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado,anot. ao art. 1415º, pág. 400, 4).

(2) Nos termos do art. 59º, nº 1 e 2 do CN, os instrumentos de constituição da PH só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela CM, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazerem os requisitos legais. Tratando-se de prédio construído para venda em fracções autónomas, tal documento pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projectos de alteração aprovados pela CM. O art. 49º do RJUE dispõe que não podem ser celebradas escrituras públicas de primeira transmissão de imóveis construídos nos lotes ou de fracções autónomas desses imóveis sem que seja exibida, perante o notário, certidão emitida pela CM, comprovativa da recepção provisória das obras de urbanização ou certidão, emitida pela CM, comprovativa de que a caução destinada a garantir a boa e regular execução das obras de urbanização é suficiente.

(3) Para Luís Carvalho Fernandes (A conversão dos negócios jurídicos civis, Quid Iuris, Lisboa, 1993, pág. 611), com a expressão «requisitos legalmente exigidos» o legislador pretendeu abranger os requisitos "civis" enumerados no art. 1415º e os requisitos "administrativos", nomeadamente os definidos no RGEU, "que são ditados por razões da mais diversa ordem, cuja observância condiciona, não só a construção de edifícios, em si mesma, mas também a sua utilização. No domínio da PH ganham, em especial, particular relevância as questões ligadas à destinação das várias fracções e também as relativas à delimitação das partes do prédio que constituem fracções autónomas e partes comuns. O TRP, no seu Ac. de 30/10/1086, decidiu que "no caso de a constituição da propriedade horizontal resultar de sentença proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário, ou de usucapião que uma sentença reconheça, cabe ao tribunal verificar se as fracções obedecem aos requisitos exigidos pelos art. 1414º e ss. e não à autoridade administrativa". O juíz não tem um papel passivo, como o notário, perante quem não se desenvolve qualquer processo que lhe permita verificar os apontados requisitos legais, sendo que a verificação compete à CM. Pelo contrário, o processo judicial permite ao juiz essa averiguação. Não se trata de uma mera homologação da decisão da autarquia, mas de uma verdadeira constituição da PH por sentença.

(4) O Ac. do TRL de 13/2/1981, decidiu que "estando em vigor e tendo carácter imperativo as disposições do RGEU e as correspondentes normas municipais de Lisboa, sendo as quais os edifícios a construir em arruamentos com largura superior ou igual a 23 metros, ou seja, edifícios com, pelo menos, 8 pisos, devem dispor de parque de estacionamento de automóveis para os utentes respectivos, é nula a escritura de constituição da propriedade horizontal na parte em que afectou a garagem de um edifício nessas condições ao uso exclusivo do proprietário de um dos andares".

(5) Sobre esta sujeição, e os vários problemas que aí se colocam, imprescindível ver Luís Carvalho Fernandes, A Conversão, pág. 610 e ss.

(6) Segundo Luís Carvalho Fernandes (A Conversão, pág. 615 e ss.), se o dono do prédio celebrou contratos-promessa de compra e venda de fracções autónomas, antes ou depois de constituir a PH em relação a um prédio sem os requisitos legais, "a celebração desses contratos torna eficaz o negócio constitutivo da propriedade horizontal e, portanto, opera a conversão prevista no art. 1416º. O que, no caso, tem como resultado que esses negócios valem como contratos-promessa de compra e venda da quota correspondente à "pretensa" fracção. Não há, também, obstáculo a que, com esse valor, se admita a execução específica dos referidos contratos".

(7) Como ensina Luís Carvalho Fernandes (A Conversão, pág. 648 e ss.), a nota particular da conversão legal, que a demarca da conversão comum, prende-se com o facto de aquela não depender de uma vontade conjectural favorável. Na conversão legal, "a eficácia sucedânea é estabelecida pela norma de forma apriorística e abstrata, para uma certa categoria negocial. Daí que não se possa levar em conta mais do que o fim  que normalmente determina os autores de um tal negócio a celebrá-lo. Mas, ainda assim, a eficácia sucedânea é dominada por critérios legais e tem de se ajustar à razão de ser da norma injuntiva cuja violação está na origem da nulidade do negócio.

A conversão legal de um negócio jurídico nulo permite que este produza certos efeitos que sem ela não se desencadeariam. Nesse sentido, a conversão confina as consequências da violação de uma norma imperativa a uma área mais limitada que a determinada pela sua própria injunção. Quer dizer: a injunção que impõe a verificação de certas características no edifício, para que possa ficar sujeito ao regime do condomínio horizontal, tolera a produção de efeitos que conformam uma situação jurídica sucedânea da que o negócio faria nascer se produzisse os seus efeitos típicos. Neste sentido a conversão legal justifica-se como factor de moderação da imperatividade de certas normas jurídicas. Como tal, é um meio específico de aproveitamento do negócio inválido e, do mesmo passo, uma aplicação concreta do princípio do favor negotti. Daí que os efeitos imputados ao negócio inválido sejam efeitos legais e não negociais.

A conversão legal funda-se "em razões de ordem objectiva que levam o legislador a assegurar, a partir do negócio celebrado, certas consequências jurídicas afins das que ele produziria se fosse válido. A ponderação dos efeitos tolerados é feita pelo legislador em função de uma valoração objectiva dos mesmos interesses gerais que estão na origem da injunção legal que o negócio convertido violou. Só podem justificar a conversão legal ponderosas considerações de justiça imanentes na ordem jurídica no seu conjunto. Está fora de causa a justiça negocial em concreto. Enquanto fundada em imposições da justiça global e como manifestação específica do princípio do favor negotti, que aponta no sentido da manutenção possível da actuação negocial das partes, a conversão legal está legitimada como instituto com regime próprio".

(8) Para Luís Carvalho Fernandes (A Conversão, pág. 609 e ss.), "o acto passa a valer como constitutivo de outros efeitos jurídicos: em vez de nascer um direito de condomínio, nasce um direito de compropriedade e esta eficácia é atribuída ao negócio sem dependência dos requisitos do art. 293º, salvo pelo que respeita à exigência de forma legal. Na verdade, nada havendo na lei que as dispense, não pode deixar de se entender que a conversão só se verifica quando tenham sido observadas as formalidades legalmente exigidas para a constituição da compropriedade - a escritura pública (art. 89º, al. a) do C. Not.)".

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