Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

7/11/2023

Acção Executiva - Honorários mandatário I


Deve a execução deve prosseguir para obtenção da quantia, atinente a despesas com honorários de mandatário, sendo aplicável a redacção do art. 6º do DL n.º 268/94, de 25 de Outubro, dada pela Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro?

Ora, dispõe o art. 6.º do DL 268/94, de 25/10, que a acta da assembleia de condóminos constituí título executivo contra o proprietário que deixar de pagar as contribuição devidas ao condomínio. Por seu turno, nos termos do nº 3, “consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”.

Ou seja, não só o legislador retirou do nº 1 do art. 6.º as expressões “despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum”, que importava uma clara relação com o art. 1424º do CC. Como veio deixar claro que as sanções se consideram abrangidas pelo título.

Aliás, ainda antes da nova redacção do art. 6º do DL 268/94, já havia quem considerasse que a acta constituía título executivo relativamente às penas aplicadas pela assembleia de condóminos. Assim, Sandra Passinhas, na sua tese de Mestrado, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.a ed., Coimbra, Almedina, p.272 a 275.

Mais recentemente, a civilista voltou a defender o mesmo entendimento, embora a propósito de uma outra questão. Lê-se então: se a assembleia proíbe a circulação de animais à solta nas partes comuns de um edifício, e um dos condóminos pura e simplesmente não respeita a proibição, quid iuris? Nos termos do art. 1434º, a assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações e das decisões do administrador, sendo que a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das penas constitui título executivo contra o proprietário, nos termos do art. 6º, do DL 268/94, de 25 de Outubro” - Sandra Passinhas, «Os animais e o regime português da propriedade horizontal», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, vol. II (2006).

Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 4.a ed., refr., Lisboa, Ediforum, 2015, também defendia a exequibilidade dos valores atinentes às penalidades, nos seguintes termos: “a eficácia executiva da deliberação exarada em acta inclui não só (a) as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício, (b) o pagamento de serviços de interesse comum, (c) as contribuições devidas para o fundo comum de reserva, (d) o pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio, (e) os encargos com inovações, salvo se se verificarem os requisitos de isenção fixados no art. 1426º, (f) as penas pecuniárias relevantemente estabelecidas nos termos do art. 1434º contando que haja, se necessário, deliberação da assembleia de condóminos a determinar a aplicação da penalidade”.

É certo que a deliberação da assembleia de condóminos que faz repercutir na esfera do condómino-incumpridor as despesas de contencioso, mormente com honorários de mandatário que o condomínio venha a constituir, não configura concretamente uma sanção pecuniária. Também não é menos verdade que, nos termos em que vêm sendo entendidos pela Jurisprudência, estas quantias não configuram “despesas com serviços de interesse comum”. Todavia, o legislador deixou cair, como acima se mencionou, e no âmbito do art. 6º, a referência às despesas a que alude o art. 1424º do CC,

Parecendo ter querido, propositadamente, aumentar o universo das despesas que se incluem na expressão “contribuições”. Tanto mais que, no âmbito dessa expressão, incluiu as sanções pecuniárias, por via do actual nº 3 do art. 6º. E como ensina Karl Larenz, a interpretação consubstancia-se numa actividade intelectual que procura extrair de uma fonte do direito o sentido normativo que possibilite a resolução de um caso concreto - KARL LARENZ, Metodologia de la Ciencia del Derecho (trd. Marcelino Rodríguez Molimero), Barcelona, Editorial Ariel, 1976, pp. 308 a 312.

Santos Justo aponta, a este propósito, que “toda a 'fonte' carece de interpretação que revelará o seu sentido. [a]demais, um texto comporta geralmente múltiplos significados, pode conter expressões ambíguas e obscuras e até atraiçoar o seu autor” - A. Santos Justo, Introdução do Estudo do Direito, 5.a ed., Coimbra, Coimbra Editora,2011, p. 321. São, pois, vários os factores hermenêuticos que o interprete se deve socorrer para interpretar uma norma jurídica.

Não obstante, sabemos, pois, que a interpretação jurídica não se deve cingir a um dos elementos de interpretação, antes sim utilizar de forma harmónica todos os factores hermenêuticos, como nos diz Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, I, Coimbra, Atlântica Livraria Editora, 1959, p. 163.

Nos termos do art. 9º do CC, a interpretação deverá cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento que não tenha o mínimo de correspondência com a letra da lei; o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.

Atentando na letra do art. 6º, parece ser possível concluir que o legislador não quis deixar de fora qualquer tipo de valor que os condóminos ou alguns deles devessem entregar ao acervo comum. Sejam, elas, despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e aos serviços de interesse comum, ou não sejam. Como escreve Santos Justo, embora o ponto de partida seja a lei, este elemento [literal] é frágil, “por isso, o elemento literal é o menos importante e raramente dispensa o recurso aos elementos lógicos, a cujo resultado devemos, em homenagem ao espírito da lei, dar preferência se conflictuar com o sentido literal” - Santos Justo, op. cit., p. 336.

O elemento histórico remete o intérprete para os trabalhos preparatórios da lei, para os precedentes normativos (como sejam a regulamentação anterior, o direito comparado, etc.), e para a occasio legis. Ora, como se sabe, a figura da propriedade horizontal remonta às Ordenações Filipinas. Previam elas que “se uma casa for de dois senhorios de maneira que de um deles seja o sótão e de outro o sobrado, não poderá aquele, cujo for o sobrado, fazer janela sobre o portal daquele cujo for o sótão, ou loja, nem outro edifício algum”. No CC de 1867, a figura não passou despercebida (art. 2335º).

Dispunha assim: “se os diversos andares de um edifício pertencerem a diversos proprietários, e o modo de reparação e concerto se não achar regulado nos seus respectivos títulos, observar-se-á o seguinte: § 1.º - [a]s paredes comuns e os tectos serão reparados por todos, em proporção do valor que pertence a cada um; § 2.º - [o] proprietário de cada andar pagará a despesa de concerto do seu pavimento e forro; § 3.º - [o] proprietário do primeiro andar pagará a despesa da escada de que se serve, o proprietário do segundo da parte da escada de que igualmente se serve, a partir do patamar do primeiro andar, e assim por diante”.

As guerras, o êxodo rural que determinou grande concentração de massas em torno das cidades, tornaram patente o problema da escassez das habitações, levando a que a imputação dos custos de manutenção se tornasse insuficiente. É precisamente neste contexto que surge a primeira referência à figura da assembleia de condóminos e ao DL nº 40 333, de 14 de Outubro de 1955. Como resulta do seu preâmbulo, o diploma “corresponde, sem dúvida, a uma necessidade dos tempos modernos”.

Nesse contexto, o próprio preâmbulo dispunha que, não obstante o diploma, nada obstava a que os comproprietários procurassem definir regulamentações especiais, mormente no que diz respeito às obrigações daqueloutros.

Do diploma resultava no seu art.23.º que “a acta da sessão que tiver deliberado quaisquer despesas constituirá título executivo, nos termos do artigo 46.º do Código do Processo Civil, contra o proprietário que deixar de entregar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, à qual acrescerão os juros legais de mora”. Por seu turno, o art.º 29.º, § 2, 2.a parte, que “[a] assembleia pode (...) fixar penas pecuniárias para a inobservância deste decreto-lei ou das decisões da assembleia ou do administrador”.

Entretanto, entrou em vigor o DL 268/94, de 25 de Outubro, que teve como ensejo “procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre condóminos e terceiros” [preâmbulo]. Aliás, tal desiderato também resulta expressamente do comunicado do Conselho de Ministros de 28/07/1994, que aprovou o DL em questão: o diploma tem como objectivo “criar soluções para resolver situações de impasse na administração dos condóminos e tornar mais claro e mais simples o exercício dessas funções” (disponível em https://www.historico.portugal.gov.pt).

Houve clara intenção do legislador em simplificar, agilizar, facilitar o exercício das funções da assembleia e do administrador e em fazer cumprir as decisões dos órgãos - à data, e no que toca a incumprimentos, o legislador havia ficado a “meio caminho”, no que ao direito estrangeiro diz respeito. Veja-se, por exemplo, o caso alemão. O §18 do Wohnungseigentumsgesetz estabelece que na hipótese de o condómino violar intensamente os seus deveres, os restantes condóminos podem exigir que aqueloutro aliene a sua fracção, sendo que uma das causas de violação intensa dos deveres é precisamente o não pagamento de despesas ao condomínio. Em Espanha, temos que o art. 21º da LPH (Ley de Propriedade Horizontal), permite o recurso ao procedimento de injunção para cobrança das quotas condominiais, das despesas atinentes aos honorários do advogado que patrocina o condomínio e, ainda, às respectivas custas judiciais. Em França, em caso de dívida, o condomínio pode exigir do condómino incumpridor as quotas condominiais vencidas e vincendas até ao final do ano em curso, dando lugar ao procedimento de injunção (art. 60º do Décrét 67-223) na falta de pagamento, podendo o tribunal ordenar a penhora dos bens do devedor e, em última instância, a venda da fracção autónoma (art. 19, 19-1 e 19-2 do Décrét), sendo que o condómino incumpridor responde pelas despesas com advogados e com as custas judiciais.

O elemento histórico aponta para o legislador ter querido facilitar e simplificar o exercício das várias funções inerentes ao funcionamento do condomínio, assim como procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, nomeadamente no que diz respeito à cobrança de dívidas. Aliás, a Lei nº 8/2022 surgiu com o mesmíssimo intuito.

Como muito bem explica Claus Wilhelm Canaris, o fundamento do elemento sistemático de interpretação reside na ideia de que a ordem jurídica tem unidade e coerência, pelo que uma norma haverá sempre que ser interpretada no quadro normativo afim ou paralelo. - Claus Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência Jurídica (trad. Menezes Cordeiro), Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1996, pp. 157 a 166.

Ora, dispõe o art. 703º, nº 1, al. d), do CPC que à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. Não olvidamos, pois, que essas disposições especiais configuram, tal como o preceito indica, normais excecionais, o que significa não ser possível o recurso à analogia. Nada obsta, porém, a uma interpretação extensiva do preceito. O que vem sendo feito quer pela doutrina, quer pela Jurisprudência, relativamente a outras situações.

Por exemplo, no âmbito do NRAU. Este no seu art. 14º-A, permite ao senhorio executar o arrendatário por rendas, encargos, ou outras despesas que corram por conta deste último. O conceito de penalidades/indemnização não cabe, literalmente, no preceito de renda, no preceito de encargo, nem no preceito de despesa. Todavia, apesar do abismo Jurisprudencial, vem sendo aceite, de forma maioritária, a hipótese de o senhorio executar o arrendatário pela indemnização prevista no art. 1041º. 

Justificam os decisores que a indemnização cabe, por recurso à interpretação extensiva, no conceito de renda, e que, querendo o NRAU alargar a eficácia executiva conferida aos actos promovidos pelo senhorio, para evitar o recurso à acção declarativa, seria contrário ao preceito permitir a cobrança coerciva das rendas, e simultaneamente exigir ao senhorio o recurso à acção declarativa para obter um título executivo sobre valores sucedâneos com os que permitem o recurso à acção executiva.

O que nos leva, necessariamente, para o elemento teleológico/racional. A possibilidade de aplicação de penalidades pela assembleia de condóminos decorre da lei. Considerando que as despesas do condomínio não se cingem unicamente às previstas no art. 1424º do CC. Pelo menos, na definição que vem sendo adoptada pela doutrina e pela Jurisprudência. Que sentido faria o legislador permitir o recurso à acção executiva para a cobrança das contribuições devidas, encontrando-se abrangidas no âmbito dessa expressão as sanções pecuniárias, e exigir ao condomínio que percorra o caminho de uma acção declarativa para cobrar esta despesa em concreto, dependente e sucedânea do incumprimento do condómino? A nosso ver, esta possibilidade afronta a ratio do preceito do art. 6º.

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