3. Fundamentação do STJ
O STJ fundamenta a sua decisão recorrendo à doutrina e admite, de início, ser “entendimento dominante” que a lei permite às partes excluírem a renovação automática do contrato, mas que, de igual modo, impõe que “caso seja clausulada a renovação, esta tem como período mínimo uma renovação pelo período de 3 anos”.
Porém, o STJ sugere uma interpretação restritiva da norma, citando, nesta matéria, profusamente a posição do Conselheiro J. Pinto Furtado:
O Conselheiro Pinto Furtado (In Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, 2021, pp. 651 a 653.) faz uma interpretação um pouco mais restritiva deste normativo [artigo 1096.º, n.º 1] e em conjunto com o artigo 1097.º, n.º 3 do Código Civil, ao considerar que esta renovação de três anos apenas ocorre na primeira renovação, permitindo a liberdade contratual outro clausulado. Posiciona-se assim este autor, “Se, pois, se tiver estabelecido, como duração contratual, um prazo inferior a três anos, por exemplo, um ou dois anos (o que é legítimo – arts. 1095-2 e 1096-1), o que resulta, quanto a nós, do disposto no art. 1097-3 — e insiste-se — é, tão-somente, que esses contratos serão necessariamente não renováveis (o que é legítimo – n.º 1 do presente artigo). [sublinhado nosso]
O mesmo autor continua:
Ora, já se viu que o n.º 1 do presente artigo [artigo 1096.º, n.º 1] só dispõe para o silêncio contratual e, como no art. 1097-3 também não se estabelece qualquer dimensão para o ulterior período de renovação, em si, daí se seguirá, se bem nos parece, que, quando pretenda estabelecer-se renovação para um arrendamento habitacional de prazo certo terá de atribuir-se à própria duração desse contrato, pela aplicação conjugada dos dois preceitos, uma duração mínima de três anos.
Cremos, por conseguinte e em conclusão poder, pois, validamente estabelecer-se, ao celebrar-se um contrato, que este terá necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações, de dois ou de um ano, quatro ou cinco — como, enfim, se pretender.”.
Contrariamente ao referido pelo Tribunal, o autor não parece defender um prazo de renovação mínimo imperativo de três anos, quer em relação à primeira renovação do contrato, quer a renovações posteriores. Diversamente, o referido autor (salvo erro, com uma posição isolada na doutrina portuguesa a propósito deste assunto) parece considerar, atendendo a uma interpretação conjugada dos artigos 1096.º, n.º 1, e 1097.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador pretendeu estatuir um prazo inicial mínimo de 3 anos para contratos que prevejam o regime da renovação automática, sendo os prazos dessa renovação, por sua vez, livremente estipulados pelas partes, pois, segundo este autor, o prazo mínimo previsto no artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil é meramente supletivo.
Sem prejuízo, no parágrafo imediatamente seguinte do Acórdão, o STJ cita de novo o mesmo autor para avaliar a aplicação das normas da nova Lei 13/2019 a contratos de arrendamento cujo prazo de renovação já esteja em vigor (como acontece no caso sub judice):
“Sendo assim, quanto aos contratos de arrendamento habitacional existentes, que se submetiam ao disposto na Lei n.º 31/2012 e, não havendo estipulação contratual, estavam a renovar-se supletivamente, sem mais, segundo períodos de dimensão igual à duração contratual, interessará considerar os celebrados por um ou dois anos.
Estando estes contratos a renovar-se então, supletivamente, por períodos de um ano ou de dois, respetivamente, segundo a lei antiga, chegado o novo normativo agora imposto no art. 1097-3, uma de duas soluções parecerão, em princípio, aplicáveis.
Será a primeira que aqueles contratos habitacionais de durações menores, que já completaram a sua renovação ou renovações, à sombra da lei antiga, mas ainda não tenham atingido os três anos de duração contratual para haver uma primeira renovação pela lei nova, deverão submeter-se a esta, computando-se nesses três anos os períodos menores já cumpridos, preenchendo-se desse modo a bitola do art. 1097-3.
Outra será, antes, que a nova lei exige o pré-decurso trienal só para a primeira renovação: logo, os contratos que já então completaram uma primeira renovação, ainda que sem preenchimento dos três anos de duração prévia, não estão abrangidos por ela, visto o prazo renovatório menor a que obedeceram já se ter completado.
Cremos, pela nossa parte, que será esta segunda opção o entendimento a subscrever, pois como declara o art. 297-2, os prazos mais longos da lei nova só se inserem nos prazos mais curtos da lei anterior que ainda “estejam em curso”.
Assim, os contratos com duração de um ano que, findo o seu prazo de duração, se renovaram pelo mesmo período e o completaram antes de entrar em vigor a nova lei, continuam a renovar-se pelo mesmo período depois disso; mas aqueles que ainda não consumiram esse período de renovação terão de prosseguir no tempo já decorrido até perfazer o triénio de duração para que ocorra uma nova renovação (…).” [sublinhado nosso]
Referindo-se à posição do Conselheiro Pinto Furtado, o STJ reconhece logo de seguida:
Ora, é, precisamente, a situação retratada nos nossos autos.
Aqui, o contrato de arrendamento urbano para habitação permanente, foi celebrado em 7/02/2018, com início em 1/02/2018, à luz da Lei n.º 30/2012, pelo prazo de um ano, renovável por igual período. A primeira renovação deste contrato, ocorreu em 1/02/2019, ainda no âmbito da referida Lei, porquanto a Lei n.º 13/2019 entrou em vigor em 13/02/2019.
O Autor, ora Recorrido, remeteu à Ré, ora Recorrente, em 5/07/2019, carta registada com aviso de receção, a comunicar a denúncia do contrato, solicitando a entrega do arrendado até 31/01/2020.
Daqui resulta, claramente, que a primeira renovação contrato, a renovação anual ocorreu em 1/02/2019, quando a Lei n.º 13/2019 ainda não estava em vigor, pelo se verificou a primeira renovação do contrato.
Conclui, assim, o STJ, alegadamente respaldado na posição do Conselheiro Pinto Furtado, que não se aplica ao caso uma renovação por três anos em virtude de já se ter iniciado a primeira renovação do contrato aquando da dedução, pelo senhorio, da oposição à (seguinte) renovação.
Sucede, porém, que, salvo melhor opinião, o sentido da decisão do STJ diverge efetivamente da opinião do referido autor.
Com efeito, de acordo com a posição do referido autor, nos termos das disposições conjugadas da Lei 13/2019 aqui em causa, o contrato de arrendamento deverá cumprir um prazo mínimo inicial de três anos antes da sua primeira renovação.
E quanto à aplicação da lei no tempo, se, aquando da entrada em vigor da Lei 13/2019, a primeira renovação já estiver em curso (mas ainda não tiver decorrido na íntegra), a próxima renovação do contrato só poderá ocorrer quando a duração total do contrato, considerando o prazo inicial e a primeira renovação conjuntamente, tiver perfeito “o triénio de duração”. Porém, se o contrato já se tiver renovado por uma segunda vez, então essa limitação de três anos não seria aplicável. Tal parece ser, de facto, a interpretação do autor quando refere, por um lado, que “os contratos com duração de um ano que, findo o seu prazo de duração, se renovaram pelo mesmo período e o completaram antes de entrar em vigor a nova lei, continuam a renovar-se pelo mesmo período depois disso” e, por outro, que os contratos que “ainda não consumiram esse [primeiro] período de renovação terão de prosseguir no tempo já decorrido até perfazer o triénio de duração para que ocorra uma nova renovação” (sublinhado nosso).
Ora, no acórdão em análise, o STJ parece extrapolar desta posição para uma outra, segundo a qual o prazo de renovação de três anos não se aplica nos casos em que o prazo da primeira renovação ainda está em curso aquando da entrada em vigor da Lei 13/2019. Efetivamente, no caso sub judice, a primeira renovação do contrato já tinha ocorrido em 01/02/2019 e o prazo da mesma ainda estava em curso aquando da entrada em vigor da Lei 13/2019 (que, recorde-se, teve lugar em 13/02/2019) e da dedução, pelo senhorio, da oposição àquela que viria a ser a segunda renovação do contrato.
Neste sentido, se o acórdão se aplicasse ao caso sub judice aquela que nos parece ser a posição do autor citado, o senhorio só poderia terminar o contrato após decorridos três anos iniciais, i.e. a 1 de fevereiro de 2022.
O STJ conclui, porém, da seguinte forma:
É já no âmbito da segunda renovação do contrato que o Autor pretende opor-se à sua renovação, pelo que, seguindo a posição assumida pelo Conselheiro Pinto Furtado e bem assim a que foi seguida no Acórdão recorrido, não tem aplicação neste contrato a renovação por três anos, porquanto se trata da segunda renovação contratual, sendo que as partes estipularam expressamente a renovação anual.
Conforme acentua o Acórdão recorrido, este contrato de arrendamento “escapou” à disciplina imperativa resultante do artigo 1097.º, n.º 3, do Código Civil, porquanto a primeira renovação que se verificou teve lugar ainda na anterior versão da Lei e não quando a Lei n.º 13/2019 já se encontrava em vigor.
Não se disputa a interpretação dada pelo Tribunal ao artigo 1097.º, n.º 3, que prevê que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo. De facto, estando em causa no presente caso a oposição à segunda renovação do contrato, aquele artigo não se aplica.
O cerne da questão está, de facto, na interpretação do artigo 1096.º, n.º 1, e o processo interpretativo do STJ parece ser o seguinte: (i) num primeiro momento, o STJ menciona o entendimento doutrinário dominante relativo à imperatividade do prazo de renovação de 3 anos previsto no artigo 1096.º, n.º 1; (ii) de seguida sugere, todavia, uma “interpretação restritiva” da norma, citando a posição do Conselheiro Pinto Furtado, que, de acordo com o STJ, considera “que esta renovação de três anos apenas ocorre na primeira renovação”; (iii) porém, na verdade a tese do referido autor defende a supletividade do prazo de 3 anos do artigo 1096.º, 1, pugnando antes pela existência de um prazo inicial mínimo de três anos antes da primeira renovação do contrato no contexto da interpretação conjugada com o artigo 1097.º, n.º 3.
Parece assim que, apesar de partir de uma posição doutrinária supostamente dominante, à que sugere uma interpretação “restritiva” do Conselheiro Pinto Furtado, o acórdão acaba por se desviar quer de uma, quer da outra, e seguir uma via diferente.
4. Nota final
Atualmente, os tribunais portugueses seguem, pelo menos, três interpretações diferentes em relação ao disposto no artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil, a saber, que a norma consagra (i) um prazo de renovação mínimo imperativo de três anos; (ii) um prazo de renovação mínimo supletivo; ou que (iii) além de um prazo de renovação mínimo supletivo, a norma, quando interpretada em conjugação com o disposto no artigo 1097.º, n.º 3, obriga ao decurso prévio de três anos de duração inicial antes da primeira renovação automática do contrato, conforme se conclui da análise do acórdão do STJ acima descrito.
De facto, a nosso ver, o STJ acaba por sustentar, ainda que de forma pouco clara, que o prazo de renovação de três anos tem natureza supletiva. No final de contas, concordamos com essa conclusão, que nos parece ser a interpretação mais apropriada da norma. No entanto, discordamos da fundamentação exarada pelo STJ, que não é clara e, na senda da posição do Conselheiro J. Pinto Furtado, associa a supletividade da norma à necessidade da decorrência prévia de um prazo inicial mínimo de três anos para a renovação do contrato ao abrigo do artigo 1096.º, n.º 1.
Salvo melhor opinião, a consagração de tal prazo inicial mínimo não tem correspondência na letra da lei, resultando da confusão de conceitos distintos. O facto de nos termos do disposto no artigo 1097.º, n.º 3, a oposição à primeira renovação do contrato, deduzida pelo senhorio, só produzir efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, não obriga a um prazo inicial mínimo de três anos. De outro modo, poder-se-ia dar o caso de o arrendatário não se poder opor à renovação de um contrato com renovação automática celebrado pelo prazo inicial de um ou dois anos, o que resultaria numa limitação dos direitos do arrendatário que, atendendo aos objetivos da Lei 13/2019, nos parece difícil de sustentar.
Em suma, esta decisão do STJ não elimina as dúvidas que pairam sobre o regime da renovação automática de contratos de arrendamento para fins habitacionais, antes evidencia as dificuldades interpretativas que a letra da lei coloca.
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