O prazo de renovação de contratos de arrendamento urbano para fins habitacionais
Rita Xavier de Brito e André Hüsgen
Advogados da Área de Imobiliário e Urbanismo
Uría Menéndez-Proença de Carvalho
O presente artigo analisa um acórdão proferido recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que interpreta a nova redação do artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil (conferida pela Lei 13/2019, de 12 de fevereiro), atinente ao regime aplicável à renovação de contratos de arrendamento urbano para fins habitacionais. A referida norma legal tem sido objeto de interpretações divergentes pela jurisprudência portuguesa. Todavia, a nosso ver, esta decisão do STJ, ao invés de mitigar as dúvidas existentes, vem reforçar o estado de incerteza e insegurança jurídicas que vigora nesta matéria.
1. Interpretação do artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil
Nos termos da redação conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, o artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil estipulava que, salvo estipulação em contrário, o contrato de arrendamento habitacional celebrado com prazo certo renovava-se automaticamente no seu termo por períodos sucessivos de igual duração.
A propósito desta norma, aplicável a contratos de arrendamento urbano para fins habitacionais com prazo certo, não existiam dúvidas de que, por um lado, às partes era permitido celebrar um contrato sem renovação automática, i.e. que previsse a caducidade do mesmo com o decurso do prazo estipulado. Por outro lado, não tendo as partes excluído o regime da renovação automática, podiam as mesmas estabelecer livremente os prazos aplicáveis a tais renovações (sem prejuízo do limite máximo de 30 anos previsto no artigo 1025.º do Código Civil).
A solução era clara e de compreensão uniforme, o que promovia a segurança jurídica da legislação arrendatícia. Tal contexto veio a ser profundamente alterado com a entrada em vigor da já conhecida Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que tinha como desígnio introduzir “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”. Entre outras alterações relevantes, a Lei 13/2019 atribuiu uma nova redação ao referido artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil, que passou a dispor o seguinte:
Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
A referida alteração não veio afetar a possibilidade de as partes afastarem o regime da renovação automática do contrato de arrendamento, tal como já permitido ao abrigo da redação anterior. Porém, em relação ao regime aplicável ao prazo da renovação, rapidamente se instalou dissenso na doutrina quanto à real intenção do legislador. Essencialmente, a discussão centrou-se sobretudo em determinar se o legislador pretendeu instituir, quanto ao prazo da renovação, um regime de caráter imperativo ou, ao invés, de caráter meramente supletivo. Em suma, se o prazo de três anos de renovação referido na norma deve valer como prazo mínimo a observar na ausência de estipulação das partes, ou se tal prazo mínimo de três anos é, na verdade, um prazo imperativo, que não pode ser afastado pela vontade das partes, quando estas não excluam expressamente a renovação automática do contrato. De acordo com este último entendimento, as partes têm o direito de estipular prazos de renovação diferentes do prazo inicial do contrato, desde que por prazo não inferior a três anos, que corresponde a um limiar mínimo obrigatório.
Desde a entrada em vigor da Lei 13/2019, a jurisprudência não tem sido uniforme quanto à interpretação desta norma, verificando-se uma polarização de posições, com acórdãos que se pronunciam a favor da supletividade da norma (ver, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2022 (Nuno Lopes Ribeiro), Processo 8851/21.6T8LRS.L1-6, e de 10.01.2023 (Luís Filipe Sousa), Processo 1278/22.4YLPRT.L1-7), enquanto outros advogam a sua imperatividade (ver, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.11.2022 (Maria Adelaide Domingos), Processo 126/21.7T8ABF.E1; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (Rosália Cunha), Processo 795/20.5T8VNF.G1).
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/01/2023
Perante o contexto de divergência entre tribunais portugueses, surge um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), proferido a 17 de janeiro de 2023 (Processo 7135/20.1T8LSB.L1.S1), que veio tomar posição sobre esta matéria. Todavia, o acórdão não esclarece a dúvida interpretativa, podendo, aliás, contribuir surpreendentemente para uma situação de (ainda) maior indefinição.
Elencam-se, muito sinteticamente, os factos sobre os quais o STJ foi chamado a pronunciar-se:
i) O autor da ação celebrou, a 7 de fevereiro de 2018, enquanto senhorio, um contrato de arrendamento para fins habitacionais com a sociedade ré, que era a arrendatária.
ii) O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, com início a 1 de fevereiro de 2018, renovando-se automaticamente por um período igual de um ano.
iii) A Lei 13/2019 entrou em vigor a 13 de fevereiro de 2019.
iv) A 5 de julho de 2019, o autor deduziu oposição à renovação do contrato nos termos do artigo 1097.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, para produzir efeitos a 31 de janeiro de 2020.
v) O Tribunal de primeira instância entendeu que o senhorio não poderia ter exercido o direito de oposição à renovação, uma vez que o contrato se tinha renovado pelo prazo mínimo (considerado) imperativo de três anos, em 13 de fevereiro de 2019, nos termos da nova redação do artigo 1096.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que o contrato teria de manter-se em vigor até pelo menos 31 de janeiro de 2022.
vi) Por sua vez, o acórdão recorrido entendeu que o prazo mínimo (imperativo) de 3 anos não seria aplicável à primeira renovação do contrato, uma vez que tal renovação se deu à luz do regime jurídico anterior à entrada em vigor da Lei 13/2019. Deste modo, a renovação do contrato por um ano teria sido válida e a oposição à segunda renovação do contrato teria validamente produzido os seus efeitos a 1 de fevereiro de 2020.
Posto isto, a questão que o STJ teve de apreciar foi a de saber se a oposição à renovação do contrato de arrendamento comunicada pelo senhorio à arrendatária, recebida a 8 de julho de 2019, foi válida e eficaz e determinou a cessação do contrato a 31 de janeiro de 2020, considerando o regime legal introduzido pela Lei 13/2019, em particular a nova redação dos artigos 1096.º, n.º 1, e 1097.º, n.º 3, do Código Civil.
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