Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

9/14/2023

Deliberações nulas II


Feito este enquadramento geral, e antes de atentarmos a casos concretos de deliberações das assembleias de condóminos, importa aferir critérios que permitam aquilatar se uma determinada norma tem, ou não, conteúdo imperativo.

Em primeiro lugar, o critério-base resulta da letra do próprio preceito. Assim, quando a norma indique expressamente que não pode ser afastada pelas partes ou preveja a invalidade do negócio quando não seja respeitada, tal indicia, desde logo, que o seu conteúdo é imperativo. “Não havendo referência expressa nesse sentido, o elemento essencial para determinar se uma norma tem conteúdo imperativo está relacionado com a identificação da natureza dos interesses protegidos. (77)”

Assim, a principal tarefa do intérprete consiste em aferir qual o interesse que determinada norma pretende proteger, podendo identificar interesses gerais – em que a norma procura defender todas as pessoas contra uma prática que as possa afectar -, interesses de terceiros–em que o objectivo é proteger todas as pessoas que integram um determinado grupo -, interesses de ambas as partes – visando a lei proteger as partes contra si próprias – ou interesses de uma das partes – em que o carácter imperativo visa a protecção da pessoa contra ela própria.(78)

Note-se que determinadas normas podem visar proteger, em simultâneo, dois ou mais destes interesses. Sandra Passinhas (79) sugere, a este propósito, a necessidade de uma interpretação sistemático-normativa, pelo que o primeiro critério a ter em consideração deverá ser atentar às normas que tutelam directamente o interesse público/geral ou que tutelam os interesses de terceiros.

Naturalmente, a verificação destes interesses em determinadas normas são fortes indicadores de que se tratam de normas imperativas e, nesse sentido, não haverá grande dificuldade na sua qualificação.

A tarefa mais complexa virá depois, quando seja necessário interpretar a deliberação de modo a concluir se o interesse protegido pela norma é afectado,(80) algo que só poderá ser feito em concreto.

Note-se, porém, que as deliberações que efectivamente ponham em causa a protecção daqueles interesses serão necessariamente nulas já que, se assim não fosse, i.e., se se cominassem tais vícios com a mera anulabilidade, o legislador estaria a deixar ao critério dos condóminos a derrogação de tais preceitos, com a não impugnação, em certo prazo, das deliberações viciadas.(81)

Por outro lado, existem preceitos legais destinados a proteger directamente os condóminos (interesses de ambas as partes ou apenas de uma delas) e é aí que se levantam alguns problemas delicados, uma vez que nem todos os condóminos ou administradores têm conhecimento suficientemente vasto da lei para conhecer todos os preceitos cuja violação dá origem à nulidade.

Sandra Passinhas defende que só serão cominadas com nulidade as deliberações cujo conteúdo fixe uma disciplina contrária àqueles, pois só nestes casos pode a posição de futuros condóminos ser afectada. Entende a autora que são os interesses destes que a lei pretende proteger (82) e, por isso, a deliberação deverá ainda ter um carácter permanente.(83)

Para nós, faz sentido que se pense de tal forma, já que os interesses dos próprios condóminos, actuais e presentes, representados, ou a quem as deliberações e o respectivo processo de formação deverão ser comunicados se encontram salvaguardados com os mecanismos de impugnação previstos no art. 1433º do CC.

Assim, em caso de dúvida, o intérprete dever-se-à questionar se uma determinada deliberação que infrinja uma norma imperativa afecta apenas os condóminos actuais ou se, pelo contrário, poderá atingir condóminos futuros, caso em que se cominará com a nulidade.

Notas:

77. Jorge Morais Carvalho, ibidem, p. 175.
78. Idem, ibidem, pp. 175 a 192.
79. Op. cit., pp. 252 e ss. Entendimento partilhado pelo ac. TRP de 27/09/2012.
80. Neste sentido, Jorge Carvalho Morais, op. cit., pp. 183 e 185.
81. Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., p. 448, António Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 344, Sandra Passinhas, op. cit., pp. 251 a 253 e João Vasconcelos Raposo, op. cit., p. 64. Cfr. ainda, para as sociedades, XAVIER, Lobo, Anulação..., p. 123.
82. Na esteira da doutrina de Lobo Xavier, ibidem, p. 162: “É que não pode razoavelmente contar-se com a diligência dos adquirentes das (fracções) em se informarem das cláusulas (do título constitutivo) e das deliberações em geral.”
83. No mesmo sentido, Ac. TRL de 17/12/2015.

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