Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

9/19/2023

Deliberações anuláveis - casos especiais


3.2.1 Deliberações anuláveis - casos especiais
 
A assembleia pode, por mera deliberação tomada por maioria simples, modificar ou revogar o regulamento vigente no condomínio,(101) mesmo que tal regulamento tenha sido aprovado por unanimidade. Estas deliberações não se confundem com as deliberações que violem, directa e concretamente, normas gerais e abstractas contidas no regulamento, cuja cominação é algo controversa na doutrina. 
 
Com efeito, para João Vasconcelos Raposo,(102) se o regulamento do condomínio integrar o título constitutivo, a sua modificação exige unanimidade (art. 1419º, nº 1).(103) pelo que serão “inválidas”as deliberações que desrespeitem as suas cláusulas,mesmo que aprovadas por todos os condóminos – salvo, claro, se antes da tomada de tal deliberação se modificar o regulamento de modo concordante com a deliberação que se pretende aprovar. Não obstante, o autor chama a atenção para o facto de, naquele caso, tal invalidade ser insindicável, pois se todos os condóminos a aprovaram, não existirá ninguém com legitimidade para a impugnar.
 
Por outro lado, entende que perante o desrespeito pelo regulamento do condomínio que não integre o título constitutivo, e uma vez que a lei não exige qualquer maioria especial para o modificar, não parece justificável considerar a existência de qualquer invalidade na deliberação tomada com respeito por todas as formalidades. “Nesse caso, a deliberação traduzirá ou uma alteração do regulamento de condomínio ou uma derrogação pontual do mesmo, o que, em qualquer dos casos, nada terá, a (seu) ver, de ilícito. ”Em sentido diferente, Pires de Lima e Antunes Varela (104) defendem que o legislador visa, aqui, impedir a tomada de deliberações concretas contrárias à regulamentação geral contida no regulamento, pelo que é necessário que assembleia proceda, em primeiro lugar, à devida modificação do regulamento e, só depois, à aprovação da solução pretendida.
 
Para Lobo Xavier e Sandra Passinhas,(105) independentemente de o regulamento estar ou não inserido no título constitutivo,as deliberações que o contrariem (desde que estas não consistam na mera reprodução daquilo que vem na lei) nunca serão nulas, mas tão-só anuláveis (em certos casos meramente ineficazes até ao assentimento de determinado condómino). Entendem estes autores que se os condóminos acordam livremente na elaboração de um regulamento do condomínio, então devem também poder suprimir ou alteraras suas cláusulas, bem como, por maioria de razão, decidir pela sua não observância num caso concreto. Estão aqui em jogo, apenas e só os interesses dos condóminos, pelo que a deliberação que ameace tais interesses não deve ser considerada imediatamente excluída, devendo antes deixar-se nas mãos daqueles a decisão quanto aos efeitos do acto. 
 
No nosso entendimento, parece-nos que a ideia da inexistência de qualquer invalidade perante a violação do regulamento do condomínio não pode ser aceite, porquanto o “regulamento do condomínio é um conjunto de regras gerais e abstractas, destinado a disciplinar a acção dos condóminos no gozo e administração do edifício e, tal como o título constitutivo, vincula quer os condóminos, quer todos aqueles que exerçam ou venham a exercer poderes de facto sobre uma fracção autónoma, v.g., arrendatários, promitentes-compradores, comodatários”.(106)
 
Assim, a possibilidade de derrogação, a todo o tempo, do regulamento geraria insegurança e incerteza e desprovê-lo-ia de qualquer força vinculativa quando este não integrasse o título constitutivo. Posto isto, consideramos que qualquer deliberação que viole cláusulas do regulamento do condomínio, seja ele parte ou não do título constitutivo, deve ser anulável, existindo, por isso, a possibilidade de se vir a tornar definitiva, cabendo aos titulares do direito de voto a última palavra.(107)
 
Para não incorrer no risco de ver a deliberação anulada, a assembleia deverá alterar previamente o regulamento, em concordância com a deliberação que se pretende aprovar posteriormente. Imaginemos, agora por hipótese,(108) que a aprovação de uma deliberação tem por base uma outra que anteriormente se aprovou e que vem mais tarde a ser anulada. Por exemplo, um regulamento que disciplina o modo de convocação da assembleia, dispondo de uma cláusula que exige o envio aos condóminos de documentação detalhada sobre todos os assuntos a discutir na ordem do dia. Entretanto, tal cláusula é suprimida em assembleia geral. Posteriormente, é realizada uma nova reunião, não se verificando o envio da documentação na convocação dos condóminos. 
 
Ora, vindo a deliberação que suprimiu aquela exigência a ser anulada, o que acontece às deliberações resultantes da última assembleia? Por outras palavras, “qual a influência sobre a validade do último acto, da sentença que vem depois anular a deliberação de alteração do regulamento? ”Pergunta-se, assim, se fará sentido anular tudo o que venha a ser deliberado numa assembleia na qual não se cumpriu o envio da documentação. 
 
O caminho apontado pelos autores – e que entendemos ser o mais equilibrado – é o seguinte: o condómino que requeira a impugnação da deliberação que revogou a cláusula regulamentar que exigia o envio da documentação deve ter o cuidado de impugnar também, “à medida que forem tendo lugar e dentro do prazo legalmente previsto”, todas as deliberações que venham a ser tomadas de acordo com a primeira.(109)
 
Não existe, portanto, uma eliminação automática e indiscriminada de todas as deliberações, pelo que impenderá sobre o autor da acção de anulação o ónus de escolher quais os actos que devem ser, de facto, anulados. Note-se que, diferentemente, na hipótese de ser tomada uma deliberação que se conclua que seria nulas e uma anterior deliberação não tivesse sido tomada ou se já tivesse sido anulada, todos os efeitos produzidos pela deliberação posterior em análise, por ser nula, deverão ser excluídos – eficácia ex tunc-, caindo ipso iure, porquanto não se trata de um vício superveniente, mas de uma verdadeira nulidade. 
 
Concretizando, pense-se na hipótese de a primeira deliberação exonerar o administrador do condomínio e a segunda nomear um outro administrador, sendo a primeira, posteriormente, anulada. Caso a validade da segunda deliberação (da nomeação do novo administrador) ficasse ao critério dos condóminos, permitindo-lhes impugná-la ou não, num determinado prazo, poder-nos-íamos deparar com uma situação que a lei não permite: a existência de duas administrações para o mesmo condomínio (cfr. nº 5 do art. 1435º).

Notas

101. Vide, a este propósito, «Vício nas deliberações», referente às nossas considerações sobre a natureza do regulamento do condomínio inserido no título constitutivo. Contra: Aragão Seia, op. cit., p. 49.
102. Op. cit., pp. 58 e 59.
103. No mesmo sentido, ac. TRL de 21/10/2008.
104. Op. cit., p. 448.
105. Lobo Xavier, Anulação..., p. 148 e Sandra Pass,op. inhascit., pp. 257 e ss. (esta última, novamente, estribada na doutrina daquele autor, adaptando-a à problemática do condomínio)

106. Ac. TRL de 25/06/2013.
107. Em consonância com o que foi dito supra, ressalvam-se as deliberações que ofendam cláusulas regulamentares que concedam direitos especiais aos condóminos ou que restrinjam alguns dos seus direitos.
108. Os exemplos avançados constam de Sandra Passinhas, op. cit., pp. 253 e ss. e de Lobo Xavier, Anulação..., pp. 268 e ss

109. Tomadas duas deliberações relativas à mesma matéria, quando a segunda deliberação possa surgir como inválida por força da superveniente sentença anulatória da primeira, pode-se afirmar que aquela se encontra num estado de (in)validade pendente ou suspensa. Significa isto que a eventual sentença anulatória da primeira deliberação resulta, não numa causa de invalidade da segunda, mas num evento resolutivo do estado de pendência em que se encontra a última, que – havendo impugnação – será também anulada

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