Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

9/27/2023

A importância da comunicação das deliberações


4.2.1.1 A importância da comunicação das deliberações 
 
Sendo a comunicação das deliberações aos condóminos ausentes uma obrigação (art. 1432º, nº 6),(157) existem duas grandes correntes doutrinais e jurisprudenciais sobre a contagem dos prazos para o exercício dos direitos conferidos pelo CC, na medida em que há quem entenda que a comunicação das deliberações é instrumental do exercício do direito de impugnação e, por outro lado, quem considere que a comunicação da deliberação aos condóminos tem como objectivo único dar-lhes conhecimento da deliberação, para que estes possam dar o seu assentimento ou discordância,não colocando em causa o exercício do direito de anulação.
 
A título exemplificativo, no ac. TRL de 20/03/2013 defende-seque o início da contagem do prazo se faz a partir da data da deliberação impugnada, independentemente de se tratar de condómino presente ou ausente na reunião.Entendeu aquele tribunal que “os condóminos faltosos terão de diligenciar no sentido de conhecerem o teor das deliberações para, se o desejarem, poderem impugná-las no prazo dilatado de 60 dias sobre a data da deliberação e não da comunicação da deliberação, como primitivamente se estipulava”. Defende-se naquela decisão que “é esta a tese que melhor se coaduna com uma interpretação histórico-actualista, sistemática e teleológica (racional), onde se presume que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. 
 
Por outro lado, os defensores da instrumentalidade da comunicação em relação ao direito de impugnação entendem que a contagem de tal prazo relativamente aos condóminos faltosos só se inicia com a comunicação da deliberação impugnada.(158) Para eles, ao serem concedidas as faculdades de convocação de assembleia extraordinária, de sujeição da deliberação a um centro de arbitragem e de  propositura de acção de anulação da deliberação, e porque para as duas primeiras hipóteses o prazo se conta desde a deliberação para os condóminos presentes e desde a data da sua comunicação para os ausentes, não se vislumbram motivos para que a solução seja diferente na terceira faculdade. Além disso, entendem os defensores da instrumentalidade que o nº 6 do art. 1432º se aplica genericamente às deliberações das assembleias de condóminos e que outra solução poderia impedir o condómino ausente de saber qual a deliberação tomada e de a impugnar, bastando para isso que o administrador nunca lhe comunicasse a deliberação ou lha comunicasse expirados os 60 dias do prazo para a acção de anulação.

Ainda para os defensores da instrumentalidade da comunicação, a possibilidade de se instaurar uma acção de anulação relativa à deliberação que resulte da assembleia extraordinária – que designaremos “posterior” – significa fazer renascer o direito caducado, porquanto, na realidade, o objecto da cação de anulação é a deliberação primitiva e não a “posterior”. Para estes autores, não poderá ter sido este o pensamento do legislador.
 
Ora, como visto supra,(159) na anterior redacção do art. 1433º não existiam quaisquer dúvidas de que o prazo para os condóminos ausentes se contava da comunicação da deliberação (§1.º). Fazendo uma interpretação literal, facilmente se conclui que o actual e correspondente nº 6 não faz qualquer referência a essa comunicação como marcando o início da contagem do prazo. De facto, a lei estabelece que o início do prazo para o condómino ausente requerer a assembleia extraordinária ou a intervenção do centro de arbitragem se dá com a comunicação que lhe deve ser feita, nos termos do nº 6 do art. 1432º. “Mas - claramente - já não usa o mesmo critério relativamente ao prazo de caducidade das acções anulatórias”.(160) Aliás, a expressa previsão de comunicação prevista no nº 2 do art. 1433º vem reforçar ainda mais o entendimento de acordo com o qual o prazo de caducidade em causa começa na data da deliberação, porquanto daquela previsão resulta que não houve qualquer omissão legislativa no nº 4.(161)
 
Acresce que “o legislador de 1994 foi tão minucioso nas alterações que introduziu ao regime da PH, através do referido DL 267/94, que só podemos entender como sendo querida expressamente esta diferença de regime”. Como é sabido, apesar de a interpretação da lei não dever ser meramente literal (art. 9º, nº 1), o intérprete não pode ter em consideração pensamentos legislativos que não tenham a mínima correspondência com a letra da lei, ainda que, por vezes, imperfeitamente expressos. Por isso, haverá de se presumir que o legislador consagrou as soluções mais correctas e soube exprimir o seu pensamento (nºs 2 e 3 do mesmo preceito). Assim, rapidamente se conclui que “a intenção do legislador foi fundamentalmente, de privilegiar os meios extrajudiciais (a assembleia extraordinária) ou para-judiciais (o centro de arbitragem) para a apreciação e eventual revogação das deliberações anuláveis a que se reporta o nº1 do art. 1433º”.
 
Por outro lado, do ponto de vista constitucional importa referir que, uma vez assegurados os direitos dos condóminos através das várias vias de impugnação, o legislador cumpriu o princípio de acesso ao Direito e aos tribunais, vertido no art. 20º, CRP. Além disso, constitui também argumento o facto de a efectiva tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos condóminos nas suas relações entre si ou com o condomínio ser distinta da que é atribuída aos cidadãos nas suas relações com a administração pública. Por isso, é do interesse dos condóminos estarem presentes nas assembleias para as quais sejam convocados, por si ou representados, pelo que podemos  depreender que o legislador, valorizando essa liberdade individual, colocou naqueles o ónus de diligenciarem no sentido de se informarem sobre se teve ou não lugar uma assembleia de condóminos e sobre o teor das deliberações que daquela resultem.(162)
 
Sem prejuízo do disposto, é evidente que “tal dever de zelo não pode ir ao ponto de o(s) obrigar a contactar todas as semanas o administrador para saber se está agendada alguma assembleia, não esquecendo as situações certamente raras mas possíveis, de assembleias cuja realização é intencionalmente e de má fé não comunicada a um condómino”.(163) Importa, assim, referir que entendemos que esta tese só fará sentido se tiver na base o pressuposto de que todos os condóminos foram regularmente convocados (ou, pelo menos, os que vieram a faltar à primeira assembleia), porquanto não fará sentido exigir que os condóminos faltosos se informem sobre a assembleia e respectivas deliberações se não lhes foi dada, sequer, a possibilidade de saber que tal assembleia teve lugar.(164)
 
Caso o condómino ausente só tenha efectivo conhecimento da deliberação através da comunicação prevista no nº 6 do art. 1432º, mesmo que já tenham decorrido os 60 dias e, por isso, já não possa intentar a acção anulatória dessa deliberação em concreto, terá sempre a possibilidade de recorrer, com respeito pelos respectivos prazos legais, às faculdades que lhe são concedidas nos nºs 2 e 3.(165) Além daquelas vias, lançando mão da assembleia extraordinária, o condómino poderá ainda instaurar uma acção de anulação da já referida deliberação “posterior”, no prazo de 20 dias, pelo que não se poderá nunca afirmar que o direito de anulação se perde definitivamente com o decurso do prazo para intentar acção relativa à primeira deliberação.(166) É este o entendimento defendido pela maioria da jurisprudência,(167) por parte da doutrina (168) e é também o nosso entendimento.
 
Quanto ao argumento de que “o direito caducado renasce”, consideramos que nunca deverá proceder, já que o legislador faz uma clara distinção entre o direito de instaurar uma acção de anulação de uma deliberação primitiva e o mesmo direito em relação a uma deliberação que resulte de uma assembleia extraordinária, fazendo-o com base na diferenciação dos prazos que estabelece para as mesmas. É que o objecto da acção de anulação é a deliberação “posterior”que confirmou a primitiva e não esta última. Não se coloca em causa que o decurso dos 60 dias implica a caducidade do direito de anulação da primitiva deliberação e que este prazo jamais poderá renascer. Mas há,  efectivamente, algo que nasce com a assembleia extraordinária: um novo direito do condómino legitimado que consiste em pedir a anulação da deliberação que dali resulte, no prazo de 20 dias.(169) 
 
Curiosa é ainda a posição de Abílio Neto,(170) ao admitir que o prazo para a acção de anulação se inicia na data da primeira assembleia, mas entendendo que a possibilidade de o condómino pedir a anulação da “deliberação confirmatória” significa, na realidade, instaurar uma acção cujo objecto é, única e exclusivamente, a deliberação inicial. Para este autor, a solução passa então por o condómino ausente dispensar a realização de assembleia extraordinária, optando directamente pelo recurso à via judicial, respeitando-se assim o prazo de 60 dias previsto no nº 4 do art. 1433º. 
 
Sobre tal consideração, e uma vez que a justificação social do art. 1433º é, como já referimos, privilegiar as vias não judiciais, cabe-nos apenas dizer que a mesma não merece o nosso acolhimento, na medida em que o autor tenta resolver a questão através de uma solução que vai contra a ratio legis da norma em apreço. Em síntese, entendemos que o condómino faltoso - regularmente convocado - deverá agir de acordo com o critério do bom pai de família, sendo interessado e diligente no sentido de acompanhar as assembleias e as deliberações que daquelas resultem. A mesma diligência é de exigir relativamente à possibilidade de a assembleia reunir em segunda convocação. Assim, caso pretenda a anulação das deliberações dali decorrentes, deverá agir tempestivamente, sem aguardar pela comunicação das mesmas. Por outro lado, caso não tenha, efectivamente, conhecimento de nenhuma deliberação, sempre poderá dispor da possibilidade de pedir a convocação de uma assembleia extraordinária após a comunicação da deliberação primitiva,bem como a sua apreciação judicial - ainda que indirecta -, nos termos explanados supra.
 
Ao iniciarmos este capítulo com considerações sobre a importância da segurança e da estabilidade das deliberações e da produção dos seus efeitos, revelámos desde logo qual seria a nossa tendência. Entendemos que a administração deve poder tomar medidas adequadas à implementação das deliberações aprovadas em sede de assembleia num curto espaço de tempo e que só assim é possível equilibrar o princípio do acesso ao direito com os princípios da eficácia e da segurança jurídica. Uma tese oposta, no sentido de considerar que o prazo de caducidade de 60 dias (mesmo quando todos os condóminos foram regularmente convocados) só se inicia após a comunicação da deliberação resultará, no nosso entender, numa situação - que cremos não ser a pretendida pelo legislador – de inércia e de negligência que, por sua vez, conduzirão à insegurança e à paralisação da vida condominial.

Notas

157. A maioria da doutrina tem defendido que, a propósito da convocatória para a assembleia de condóminos, o período de 10 dias previsto no nº 1 do art. 1432º se inicia na data de expedição da carta. O mesmo entendimento deverá ter lugar relativamente à data em que se considera feita a comunicação por carta registada enviada para efeitos do nº 6 do art. 1432º (cfr. Aragão Seia, op. cit., p. 171, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed. revista e aumentada, Princípia, Cascais, 2013, p. 131, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed. actualizada e revista, Quid Juris, Lisboa, 2009, p. 394, Menezes Leitão, op. cit., p. 332 e João Vasconcelos, Raposo op. cit.,p. 15)
158. Ac. do STJ, de 21/01/2003 e na opinião de autores como Aragão Seia, op. cit., p. 86, Sandra Passinhas, op. cit., pp. 249 e 250, nota 626 e Pires de Lima / Antunes Varela, op. cit., p. 448
159. Cfr. nota de rodapé 130.
160. Ac. TRL de 20/03/2013.
161. Ac. TRL de 22/11/2012

162. Ac. TRL de 22/11/2012
163. Ac. TRP de 10/10/2006 e João Vasconcelos Raposo, op. cit., p. 68 e Abílio Neto, op. cit., p. 726, acrescentando ambos os autores que “parece certamente insustentável estabelecer que um condómino ausente e não convocado (...), eventualmente nem sequer residente no condomínio ou em período de ausência prolongada, tem o dever de se informar do teor das deliberações de uma assembleia de condóminos extraordinária cuja realização desconhece em absoluto”.
164. Tal argumento deixa de ser invocável quando se trate de assembleia ordinária, uma vez que, nos termos do art. 1431º/1, esta terá lugar na primeira quinzena de Janeiro de cada ano (ou, quando assim não seja, a data da mesma constará do título constitutivo do condomínio – cfr. nota de rodapé 10), pelo que todos os condóminos têm o dever de saber que naquele período se realiza a assembleia e “o correspectivo ónus de se informar(em) das deliberações, sob pena de não poder(em) requerer a sua anulação”. Vide, neste sentido, João Vasconcelos, Raposo ibidem.
165. De acordo com o ac. n.º 482/2010 do TC de 09/12/2010, publicado no DR nº 18/2011, Série II, de 26 de Janeiro de 2011, fls. 5184 a 5186: “O prazo de 60 dias – em face dos termos da estatuição do nº 4 e da sua inequívoca adstrição ao direito nele previsto – não pode valer, independentemente do que possa ter sido a intenção legislativa, como um prazo-limite objectivo para todas as vias de impugnação, mas apenas o prazo especificamente aplicável à propositura directa da acção de anulação, pelo que o seu decurso total em nada prejudica o exercício do direito de impugnação, pelos meios previstos no nº 2 ou nº 3 do art. 1433º, dentro dos respectivos prazos.”

166. A este propósito se pronuncia também o referido acórdão do TC, defendendo que o decurso do prazo de 60 dias previsto no nº 4 do art. 1433.º “nem sequer importa o afastamento do recurso à via judicial, pois, se o condómino optar pela convocação de uma assembleia extraordinária, a deliberação desta (...) é anulável judicialmente; se optar pelo recurso a um centro de arbitragem, a decisão arbitral terá, sem mais, a força e produzirá os efeitos de uma decisão judicial (art. 26º, nº2, da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto)”.
167. Além da jurisprudência já citada neste sentido, vide também acs. do STJ de 11/01/2000, de 03/10/2002 e de 17/03/2005; acs. do TRL de 25/11/2008 e de 28/04/2009; acs do TRP de 03/07/2012, de 27/09/2012, de 23/02/2015 e de 04/12/2017 e ac. do TRC de 06/12/2016.
168. Rui Vieira Miller, op. cit., p. 272 e João Vasconcelos Raposo, op. cit., p. 68.
169. Tal deliberação terá de ter, evidentemente, carácter confirmatório, pois sendo revogatória deixa de existir fundamento para a intervenção judicial. Neste sentido, ac. do STJ de 17 /03/2005.
170. Op. cit., p. 724

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