Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

9/18/2023

Deliberações anuláveis


3.2 Deliberações anuláveis
 
A anulabilidade está relacionada com interesses de índole particular, o que justifica que os negócios anuláveis possam consolidar-se com o decorrer do tempo. Um negócio anulável nasce, portanto, válido, ainda que precário, produzindo efeitos desde a sua celebração e só se tornando inválido se for posteriormente anulado,(89) sendo que a arguição da anulabilidade (90) terá de ser feita tempestivamente e por quem tenha legitimidade para tal, não sendo, portanto, de conhecimento oficioso.(91). 
 
A sentença de anulação tem efeitos retroactivos (art. 289º, nº 1), pelo que se “considera que os efeitos visados não se produziram desde o início, como nunca tendo tido lugar”.(92). Enquanto não existir sentença de anulação, os condóminos e o administrador estão, deste modo, vinculados às deliberações que hajam sido tomadas pela assembleia. 
 
As deliberações anuláveis distinguem-se das restantes em aspectos relevantes: podem estas ser sujeitas a renovação, i.e., ser substituídas por outras que tenham o mesmo conteúdo, masque estejam já em conformidade com a lei, o título constitutivo ou o regulamento, deixando a deliberação anterior de ser anulável,(93) e podem ainda ser alvo de confirmação desde que o vício já tenha cessado e o interessado tenha conhecimento do vício e do direito de anulação (art. 288º)(94)
 
Diferentemente, as deliberações nulas e inexistentes não podem ser confirmadas, mas apenas “repetidas ex novo”.(95) Deliberações tomadas com vícios formais são anuláveis quando violem prescrições legais ou regulamentares relativas à convocação da assembleia: “quando se verificou a falta de convocação de algum dos condóminos, ou de terceiros com direito a participarem na assembleia (usufrutuário, usuário, locatário, nos contratos de leasing para habitação, depositário judicial e fiduciário), ou quando a convocação foi efetcuada com prazo inferior a dez dias”.(96)
 
Também a convocação realizada por pessoa diferente do administrador ou por condóminos que representem menos de 25% do capital investido no prédio se traduz em falta de convocação (excetpo, como já foi referido, quando se trate de convocação de assembleia para recorrer de acto do administrador), o que implica que as deliberações que resultem de tal reunião sejam anuláveis. O mesmo se verifica quando do aviso convocatório não conste o dia, a hora e/ou o local da reunião e, ainda, quando a assembleia reúna em local distinto do indicado ou antes da hora prevista na convocação. São ainda anuláveis as deliberações tomadas sobre matérias que não constem da ordem do dia (97) ou quando estejam presentes terceiros não autorizados na reunião. 
 
O regime da anulabilidade assume, porém, uma função residual ou mesmo de regra geral da invalidade, porquanto todas as deliberações contrárias à lei, estatuto e regulamentos que não sejam nulas, ineficazes ou – se assim se aceitar – inexistentes, serão anuláveis, aplicando-se-lhes o disposto no art. 1433º, nºs 2 a 4. 
 
Não obstante, a inexistência de uma base legislativa que dê segurança e certeza à delimitação entre aquelas que são deliberações anuláveis e aquelas que são nulas torna a tarefa do intérprete, maxime, condómino, difícil, “porquanto um eventual erro na qualificação pode levar à perda do direito de impugnação, pelo decurso dos prazos fixados nos nºs 2 a 4 do art. 1433º”(98)
 
Assim, embora a doutrina e a jurisprudência venham tomando entendimentos uniformes quanto ao regime a aplicar, afigura-se insuficiente o seu contributo, verificando-se, uma vez mais, falhas no regime legislativo da PH. Com efeito, melhor seria que o legislador tivesse seguido aquela que foi a opção tomada no CSC, designadamente no seu art. 58º, pois que mesmo não fazendo uma enumeração taxativa das situações cominadas com anulabilidade (nem tal se pediria), este preceito estabelece um “quadro objectivo e circunstanciado das hipóteses gerais de anulabilidade, ajudando assim o intérprete a caracterizar a figura com mais nitidez e precisão”.(99)
 
Posto isto, Aníbal Neto (100) entendeque, por uma razão de cautela, o disposto no art. 1433º, nomeadamente no que concerne aos prazos, deve ser aplicável a todos os casos de invalidade das deliberações, já que só assim se garante uma “arguição tempestiva, sem incorrer no risco da respectiva consolidação, por efeito da inobservância dos prazos ali estabelecidos”. Porém, esta solução gera um problema maioritariamente teórico: ao ser dado o mesmo tratamento às invalidades, a distinção existente entre ambos os vícios deixa de fazer sentido, tratando-se uma deliberação anulável como nula e vice-versa. 
 
Apesar de ser neste sentido que a própria lei parece ir, quando se refere, indiferenciadamente, a “deliberações inválidas ou ineficazes”, mandando aplicar a todas elas o mesmo regime impugnatório (art. 1433º, nº 2), entendemos que aquele raciocínio só poderá ser tomado em consideração como “nota meramente prática” para as partes (e seus mandatários), não podendo nunca – como, de resto, é evidente - uma decisão judicial indeferir uma determinada petição que alegue a nulidade de uma deliberação com base na intempestividade da sua propositura.

Numa última nota, importa destacar que a legitimidade para impugnar as deliberações compete a “qualquer condómino que as não tenha aprovado” (art. 1433º, nº 1, in fine). Abílio Neto entende que apenas o condómino que já o seja no momento em que a deliberação é tomada é que tem legitimidade para a impugnar. Tal interpretação significa, no nosso entendimento, que quem venha a tornar-se condómino depois da aprovação da deliberação anulável, não obstante saber que aquela deliberação está inquinada com determinado vício – e não obstante a deliberação o vincular tal como vincula todos os condóminos que já o eram no momento da sua aprovação -, tem de se conformar com a mesma, mesmo que ainda esteja dentro do prazo para a impugnar. Ainda que se trate de uma conjectura pouco provável, não é isto que, a nosso ver, resulta da lei, podendo tal entendimento dar cobertura a situaçõesde incumprimento da mesma.

Notas

89. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, reimpressão da 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pp. 648 e ss.
90. Apesar da existência de uma acção especialmente destinada a esse efeito, a anulabilidade pode ser arguida por via de excepção (cfr. art. 287º, n. 2, in fine).
91. Pinto Furtado, op. cit., p. 706.
92. Mota Pinto, op. cit., p. 621.

93. Acs. TRL de 06/11/2008 e de 03/11/2011 e Sandra Passinhas, op. cit., p. 251.
94. “A razão de ser da consagração da possibilidade de confirmação também está relacionada com o eventual interesse daquele que tem legitimidade para arguir o vício em colocar um ponto final na situação de indefinição da sorte do negócio jurídico” – António Menezes Cordeiro, Da Confirmação no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2008, p. 13.
95. Neste sentido, Abílio neto, op. cit., p. 721.
96. Sandra Passinhas, op. cit., p. 258.

97. Tem vindo a tornar-se costume a inclusão de um ponto tão genérico quanto abrangente, prevendo a possibilidade de se “tratar de quaisquer outros assuntos com interesse para o condomínio”. Deste modo – defende João Vasconcelos Raposo (op. cit., p. 25) -, permite-se que “numa assembleia reunida para a discussão de certo ou certos assuntos seja dada a oportunidade aos condóminos de se expressarem sobre outras matérias, aproveitando o facto de já estarem cumpridas as formalidades necessárias a tal reunião. Não o permitir levaria a uma diminuição da possibilidade de discussão e participação dos condóminos ou à necessidade de convocação de múltiplas assembleias sempre que alguém visse necessidade de discutir algum assunto”. Abílio Neto (op. cit., pp. 686 e 687), por seu turno,entende que estão vedadas, por lei, deliberações sobre matérias que não constem da ordem de trabalhos, expressas de forma clara e inequívoca na convocatória, “salvo se estiverem presentes todos os condóminos e concordarem que se delibere sobre o assunto”. Veja-se, também neste sentido o ac. TRP de 04/05/2010 e o ac. STJ de 04/10/2011. Entendem aquele autor e a citada jurisprudência que o art. 1432º/2, ao exigir a indicação da ordem de trabalhos visa evitar deliberações-surpresa, principalmente quando estas impliquem encargos patrimoniais para os condóminos ausentes ou alterações do estatuto. “Assim, se um ou vários condóminos, no decurso da assembleia, tomarem a iniciativa de requerer a inclusão na ordem de trabalhos de novos assuntos, esse requerimento deve ser recusado desde que haja condóminos ausentes; se for admitido e houver votação sobre a matéria, as deliberações tomadas incorrem no vício da anulabilidade.”
98. Abílio Neto, ibidem, p. 722.

99. Pinto Furtado, op. cit., p. 633.
100. Op. cit., p. 721.

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