Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

08 agosto 2024

Danos causados por animais- Responsabilidade


2ª parte: vide aqui

Analisemos agora a seguinte hipótese:

AA é proprietário de uma quinta e de vários animais, incluindo gado bovino. AA utiliza os animais no exercício da sua actividade enquanto produtor de bens alimentares. AA contrata BB, guardador, para alimentar e guardar os seus animais. Certo dia, enquanto AA se encontra ausente da quinta, BB tranca incorrectamente o portão da cerca do gado e, consequentemente, um dos animais foge da quinta em direcção a uma estrada, causando um acidente entre três veículos quando um deles se tenta desviar do animal.

É claro estarmos perante uma situação de danos causados por animais. Contudo, temos dois sujeitos, o proprietário dos animais, AA, e aquele que estava obrigado à vigilância dos mesmos, BB.

A responsabilidade civil de AA existe por ser o proprietário dos animais e os utilizar no seu interesse, uma vez que é por meio deles que produz bens alimentares. Temos, portanto, verificado o primeiro pressuposto. Tal não se basta, mas também tem de existir um dano, que no caso foi o acidente entre três veículos, e os danos produzidos têm de ser um resultado do “perigo especial que envolve a sua utilização”, como dispõe o art. 502º do CC, circunstância que também consideramos verificada no exemplo descrito, uma vez que deter e utilizar animais tem implícitos riscos, sendo um deles o perigo de fuga dos mesmos, e, no caso em apreço, foi a fuga de um dos animais que originou o acidente.

Quanto a BB, por estar obrigado à vigilância dos animais, também será responsável, desta vez nos termos do art. 493º do CC e sobre ele recai uma presunção de culpa, que no exemplo acima descrito não será afastada, pois BB não tomou as diligências necessárias para obstar à produção daqueles danos.

Assim sendo, encontramo-nos perante uma responsabilidade pelo risco por parte do dono dos animais, pois como já tivemos oportunidade de explicar, este utiliza os animais no seu próprio interesse e por isso caber-lhe-á a obrigação de indemnizar independentemente de culpa, e uma responsabilidade subjectiva do obrigado à vigilância, aqui não porque tenha qualquer direito real de gozo, mas sim porque enquanto guardador, passou a ter a detenção daqueles animais, com o dever de os vigiar, falhando nessa função. Podem estas coexistir?

Na jurisprudência existem conclusões diferentes. Por um lado, de acordo com o Ac. do STJ de 13.09.2012, relatado por Ana Paula Boularot, do confronto entre os art. 493º e 502º “podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto este segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2012, Processo 1070/08.9TBGRD.C1. S1, Relator Ana Paula Boularot, disponível em: http://www.dgsi.pt/) Deste modo, hipóteses como a colocada não teriam lugar a concorrência entre duas responsabilidades, respondendo apenas o proprietário AA.

Noutra perspetiva, como se escreveu no Ac. da Relação de Coimbra de 13.04.2010, relatado por Alberto Ruço, “podem coexistir as responsabilidades fundadas tanto no art. 493, como no art. 502, ambos do Código Civil, quando a pessoa obrigada à vigilância do animal é simultaneamente seu proprietário” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.04.2010, Processo 643/07. 1TBSCD.C2, Relator Alberto Ruço, disponível em: http://www.dgsi.pt/ )

Contudo, predominam os acórdãos que admitem a concorrência das duas responsabilidades, ainda que finda a análise concluam por apenas uma delas pelo facto de, nas questões levadas a juízo, existir apenas um sujeito ou, existindo mais do que um, apenas um se verificar responsável, pelo que não lográmos encontrar situação semelhante ao exemplo descrito.

Além de jurisprudência, de acordo com Pires de Lima/Antunes Varela,9 “no caso de o utente haver incumbido alguém da vigilância dos animais, poderão cumular-se as duas responsabilidades (a prevista no art. 493º e a fixada no art. 502º) perante o terceiro lesado, caso o facto danoso provenha da presuntiva culpa do vigilante”. Também o defende o autor Mário Júlio de Almeida Costa, ao escrever “pense-se, designadamente, que a pessoa que utiliza o animal confia a outrem a vigilância deste. Então, à responsabilidade do utente pelo risco (art. 502.º), acresce a responsabilidade do vigilante baseada em facto ilícito, caso não se produza a prova indicada na parte final do nº1 do art. 493º”.

Temos então que estas responsabilidades podem coexistir. Contudo, o Código Civil não dispõe de uma norma que relacione estes dois artigos a título de indemnização ao terceiro lesado.

Parece-nos que a intenção do legislador tem sido a de evitar situações onde haja uma verdadeira concorrência entre a culpa e o risco. Por exemplo, quando existe tanto a responsabilidade do comitente e do comissário, se o primeiro actuou sem culpa, poderá exigir deste o reembolso de tudo o quanto haja pago (nº3 do art. 500º). Aqui, não há a preocupação de determinar a medida da indemnização que a cada um cabe.

O mesmo no caso de uma colisão de veículos em que um dos responsáveis não actuou com culpa. Apesar de, numa primeira análise, ser objetivamente responsável, posteriormente temos que “se houver culpa de algum ou de alguns, apenas os culpados respondem”, conforme o nº 2 do art. 507º do CC, logo a responsabilidade desse condutor seria excluída.

Assim sendo, qual seria a solução para aqui se proceder da mesma forma? Aplicar por analogia a solução apresentada no nosso Código para a responsabilidade do comitente? Recorrer a outra analogia relativamente ao nº 2 do art. 507º do CC, quanto à colisão de veículos, e excluir a responsabilidade do dono do animal?

Ora, excluir a responsabilidade do dono do animal parece-nos contrariar o objectivo da sua responsabilidade existir em primeiro lugar. O lesado tem o direito a haver-se ressarcido dos danos sofridos, mesmo que o dono do animal não tenha tido culpa na actuação irracional do mesmo. Se assim não fosse e a lei consagrasse apenas o regime do art. 493º do CC, muitos seriam os casos em que não haveria lugar à indemnização, pois bastaria ao dono do animal, que aí assumiria um mero papel de vigilante, afastar a culpa presumida ou provar que os danos aconteceriam mesmo que não tivesse culpa.

Relativamente à analogia com o art. 500º do CC, parece-nos que a relação entre o dono do animal e o guardador se assemelha à relação entre o comitente e o comissário. Assim, seria o caso de os tribunais considerarem ambos responsáveis e, no caso de ser o dono do animal a satisfazer a indemnização perante o lesado, gozaria do direito de pedir o reembolso total ao obrigado à vigilância do animal.

Consideramos interessante mencionar, ainda que num tema relativamente distinto, que existem casos de concorrência entre o risco de um veículo e a culpa do lesado (art. 570º do CC) e é ao tribunal quem compete decidir. Conforme o Ac. do STJ de 01.06.2017, relatado por Lopes do Rego, “compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática (…)” /Acórdão do STJ de 01.06.2017, Processo 1112/15.1T8VCT. G1.S1, relatado por Lopes do Rego, disponível em: http://www.dgsi.pt/)

É com esta apreciação do caso concreto que o tribunal, posteriormente, determina se a indemnização devida por parte do condutor se manterá, se será diminuída ou mesmo excluída.

Além disso, se analisarmos este instituto em fase anterior ao Código Civil, o Professor Vaz Serra efectuou um Estudo denominado “Responsabilidade pelos Danos Causados por Animais”, in BMJ 86 do ano de 1959. Aí, termina apresentando uma proposta de articulado e, «no art. 4º, sob a epígrafe “Encarregados de vigilância do animal. Pluralidade de responsáveis”, pode ler-se: (…) 3. Quando responderem, ao mesmo tempo, o utente do animal e a pessoa encarregada da vigilância deste, a sua responsabilidade é solidária. 4. Se os utentes do mesmo animal forem vários, responde cada um na proporção do seu interesse nele, (…)».

Ora, os vários responsáveis pelos danos têm uma responsabilidade solidária, nos termos do nº 1 do art. 497º do CC, sendo que este preceito também refere que o direito de regresso entre eles deve ser exercido na medida das respetivas culpas, conforme o seu nº 2. Não obstante, o exemplo que temos para análise impossibilita concretizar a medida da culpa de um dos sujeitos, pois não a há.

Ainda assim, e porque as “propostas de articulado transitaram, na sua essência – responsabilidade por facto ilícito e pelo risco -, para o CC, pelo que tem toda a pertinência, na compreensão do actual regime, o estudo feito”, parece-nos que seria de admitir uma interpretação extensiva do preceituado no art. 497º do CC. Nesse sentido, parece-nos que adequado seria caber ao Tribunal a elaboração de um juízo de equidade, tal como na concorrência entre o risco de um veículo e a culpa do lesado, e determinar para cada circunstância se o dono do animal será ou não responsável em conjunto com o obrigado à vigilância e, em caso afirmativo, ser o Tribunal a determinar para os vários responsáveis como respondem na proporção do seu interesse nele (animal).

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