Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

6/25/2021

Maiorias qualificadas em 2ª convocação

O art. 1432º do CC, que se insere na Secção IV sobre a Administração das partes comuns do edifício, na sequência dos preceitos que identificam os órgãos administrativos, os votos que cabem a cada condómino, e as datas de reunião, vem estabelecer, sob a epígrafe “Convocação e funcionamento da assembleia”, as seguintes regras:
“1- A assembleia é convocada por meio de carta registada, enviada com 10 dias de antecedência, ou mediante aviso convocatório feito com a mesma antecedência, desde que haja recibo de recepção assinado pelos condóminos.
2- A convocatória deve indicar o dia, hora, local e ordem de trabalhos da reunião e informar sobre os assuntos cujas deliberações só podem ser aprovadas por unanimidade dos votos.
3- As deliberações são tomadas, salvo disposição especial, por maioria dos votos representativos do capital investido.
4- Se não comparecer o número de condóminos suficiente para se obter vencimento e na convocatória não tiver sido desde logo fixada outra data, considera-se convocada nova reunião para uma semana depois, na mesma hora e local, podendo neste caso a assembleia deliberar por maioria de votos dos condóminos presentes, desde que estes representem, pelo menos, um quarto do valor total do prédio.
5-As deliberações que careçam de ser aprovadas por unanimidade dos votos podem ser aprovadas por unanimidade dos condóminos presentes desde que estes representem, pelo menos, dois terços do capital investido, sob condição de aprovação da deliberação pelos condóminos ausentes, nos termos dos números seguintes.
6-As deliberações têm de ser comunicadas a todos os condóminos ausentes, por carta registada com aviso de recepção, no prazo de 30 dias.
7-Os condóminos têm 90 dias após a recepção da carta referida no número anterior para comunicar, por escrito, à assembleia de condóminos o seu assentimento ou a sua discordância.
8-O silêncio dos condóminos deve ser considerado como aprovação da deliberação comunicada nos termos do n.º 6.
9-Os condóminos não residentes devem comunicar, por escrito, ao administrador o seu domicílio ou o do seu representante”.

Ora, o modo de convocação e de funcionamento da assembleia aplica-se a todo o tipo de deliberações que a referida assembleia haja de tomar, ou seja, quer a questões de mera administração, em que ordinariamente se exige apenas maioria simples, quer aos casos em que os assuntos em discussão exijam maiorias qualificadas, duplas, ou mesmo unanimidade dos condóminos.

Como resulta dos nº 2 e 4, estamos em presença duma norma prática, que resolve problemas práticos, um remédio para a possível complexidade de reunir inúmeros condóminos que pode ser um entrave real ao correcto e agilizado funcionamento de uma administração.

Poderia portanto ler-se cada alínea do preceito como estabelecendo uma regra a propósito de cada possível problema de funcionamento. Neste sentido, o legislador haveria então estabelecido que, funcionando a assembleia em segunda convocatória – no fundo, tendo sido dada uma primeira oportunidade a todos os condóminos para exercerem o seu direito de participação e votação – poderia, excepto no caso de estarmos perante exigência legal de unanimidade, deliberar a assembleia por maioria, desde que esta reflectisse um quarto do valor total do prédio. 

No caso da unanimidade, posto que alcançado determinado percentual de maioria, a perfectibilidade da decisão dar-se por efeito da sua notificação aos condóminos ausentes que, nada dizendo, se presumiria darem o seu assentimento, assim se completando, ainda que num momento posterior, a unanimidade sempre exigida pela lei.

É pois verdade que, literalmente, o preceito em questão não estabelece nenhum dispositivo para o caso das deliberações a tomar deverem sê-lo por maioria qualificada. Mas, haverá aqui uma intenção específica do legislador, de agilização da administração, com reserva de um regime especial preventivo da violação do interesse que justifica o estabelecimento de regras de unanimidade, ou o legislador simplesmente não previu o caso, e se o tivesse previsto teria agido de outro modo? Ou seja, pode o intérprete entender que há uma lacuna que deve ser integrada pelo modo que previsivelmente o legislador, em atenção aos interesses em causa, à importância ou relevância deles, teria regulado (artigo 10º do Código Civil)?

Evidentemente, o caso sobre que se debruçou o referido acórdão da Relação do Porto impressiona bastante: tratava-se da instalação de antenas, com perigo inclusive de radioactividade para os condóminos. Compreende-se assim que fosse intolerável deixar funcionar a regra da parte final do nº 4 do preceito, e obter uma aprovação por condóminos representando apenas um quarto do valor do prédio.

Simplesmente, ou se entende que há uma lacuna ou se entende ao contrário, e no primeiro caso a integração comungará da natureza geral e abstracta das normas, sendo pois indevido considerar que, por exemplo, num caso como o presente que não apresenta particular perigosidade, não se deva operar tal integração. E no fundo, se pensarmos, o caso é dum prédio afinal detido maioritariamente pela Autora, havendo mais dois condóminos apenas, claramente minoritários, e que decidem fazer obras de inovação, contra a posição maioritária da Autora, ou seja, no fundo, o que está em causa é o direito de propriedade, no qual se contém evidentemente o poder de determinar a manutenção ou alteração dum tipo morfológico sobre o qual, no limite, o proprietário pode fazer um juízo relativo ao seu valor de mercado.

A norma em questão não constava da versão original do Código Civil, segundo a qual: “(…) 2. As deliberações são tomadas, salvo disposição especial, por maioria dos votos representativos do capital investido. 3. Se não comparecer o número de condóminos suficiente para se obter vencimento, é convocada nova reunião dentro dos dez dias imediatos, podendo neste caso a assembleia deliberar por maioria de votos dos proprietários presentes, desde que estes representem, pelo menos, um terço do capital”.

A versão actual foi introduzida pelo DL 267/94 de 25.10, em cujo preâmbulo se encontra como justificação das alterações introduzidas o desenvolvimento da construção urbana em altura e por isso das temáticas relacionadas com a propriedade horizontal e com a gestão de condomínio, sem que contudo se encontre referência específica à alteração que introduz a disciplina da unanimidade. 

Podemos pois entender que é apenas porque, da segunda parte da década de 60 do século transacto até aos anos 90, o padrão típico de habitação se alterou consideravelmente, edifícios em propriedade horizontal bem maiores, com bem maior número de condóminos foram sendo construídos, dificultando, por esse maior número, uma situação de consenso ou de gestão facilitada, do mesmo modo que a possibilidade de afectação, pela vontade de poucos, dos interesses de muito mais, e sobretudo no caso de decisões que a lei entende que só todos poderiam tomar, se tornou uma realidade corrente.

Não nos parece absolutamente claro que a leitura do nº 4 do preceito se reporte ao nº 3, ou seja, que perante a regra geral da deliberação por maioria simples, as regras de funcionamento e validade deliberativa em segunda convocatória se reportem apenas a essa regra geral, pois, como vimos, todo o preceito regula todos os tipos de deliberações que podem ser tomadas. 

Mas também não nos parece lógico que, sendo o fim último da lei a protecção da maioria contra actuações minoritárias, e tendo baixado o limite mínimo de votos de um terço do valor do prédio para um quarto do valor do prédio, o legislador afinal tenha introduzido, apenas por uma questão de agilização da administração, uma menorização ou desprezo dos casos em que exige maioria qualificada. 

Se tais casos revestem importância suficiente para o legislador exigir maioria qualificada, como explicar então que relativamente a eles, a circunstância de se frustrar a primeira convocatória seja suficiente para uma minoria que representa apenas um quarto do valor do prédio vincular os restantes três quartos?

Tendemos assim, salvo melhor opinião, a pensar que existe efectivamente uma lacuna, que se verifica analogia pois que no caso das deliberações por maioria qualificada procedem, ainda que com menor intensidade, as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei – isto é, a salvaguarda dos interesses maioritários – e que a solução passa por considerar a ficção duma norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.

Alinhando pois pelo acima citado acórdão da Relação do Porto, entendemos também que “Essa lacuna tem de ser suprida pela analogia com a situação que melhor se lhe adapte, ou seja, com a continuação da exigência de maioria de dois terços, podendo neste caso bastar que votem favoravelmente a deliberação, logo na assembleia, a maioria dos condóminos e do capital investido, mas ficando a deliberação sujeita à condição de haver manifestação posterior da restante parte necessária para fazer as maiorias qualificadas exigidas, podendo essas posteriores formas de manifestação ocorrer nos mesmos moldes previstos nos nº 6 a 9 do art. 1432º”.

No fundo, em paralelo adaptado ao que sucede quanto às votações por unanimidade, onde se exige a maioria qualificada que legalmente se encontra abaixo desta unanimidade, e a posterior confirmação, aqui exige-se a maioria abaixo desta maioria de dois terços, ou seja a maioria simples dos votos representativos do capital investido (nº 3 do art. 1432º) e depois a confirmação dos restantes condóminos que seja necessária para perfazer a maioria de dois terços.

Ora, com esta disciplina, já se vê que no caso dos autos, nem sequer se alcançou na assembleia a maioria simples dos votos representativos do capital investido, pelo que a deliberação tomada resulta assim inválida, e anulável nos termos do art. 1433º nº 1 do CC.

Todavia, pode ainda perguntar-se se o silêncio da Autora, após receber a carta de comunicação da acta, valeu como aprovação da deliberação comunicada.

Com efeito, como se escreveu supra, o art. 1432º nº 7 estabelece que os “condóminos têm 90 dias após a recepção da carta referida no número anterior para comunicar, por escrito, à assembleia de condóminos o seu assentimento ou a sua discordância”, sendo que “8 - O silêncio dos condóminos deve ser considerado como aprovação da deliberação comunicada nos termos do nº 6”. Está provado que a Autora não se pronunciou.

Este conjunto dispositivo tem porém de ser compaginado com o preceito constante do art. 1433º nº 1 e nº 4 do CC, segundo o qual o direito de impugnar a deliberação caduca no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação, ou seja, que com grande probabilidade o prazo para impugnar é inferior ao prazo para assentir por silêncio, donde, se tiver dado entrada acção de impugnação, naturalmente que a manifestação processual da vontade de impugnar significa que não se completa o prazo findo o qual se poderia considerar que o silêncio valera como aprovação.

Segundo o Ac. do TRL de 15-02-2018:

“O facto de terem decorrido em segunda convocatória as deliberações tomadas a respeito da implantação, nada de especial traz ou retira à questão em crise, por se entender que ao caso não é aplicável a disciplina do art. 1432º, nº 4. Este preceito vem na sequência do nº 3, onde se haviam ressalvadas as hipóteses para as quais fosse exigido disciplina especial, como era a presente. É certo que o nº 5 previu, para as deliberações tomadas em segunda convocatória, um regime especial para os casos em que seja exigida unanimidade para a deliberação (mas em que não estivessem presentes todos os condóminos), e não previu explícitamente qualquer preceito para aqueles casos em que, saindo do regime geral de maiorias simples, se exigisse maiorias qualificadas de dois terços do capital e cumulativamente a maioria de condóminos.

No entanto, é importantíssimo reparar que o nº 5 continuou a exigir a unanimidade na deliberação, não a dispensando, para aqueles casos que já a exigiam para as deliberações tomadas em primeira convocatória. O que o nº 5 veio fazer foi facilitar a deliberação em segunda convocatória, fazendo com que essa unanimidade pudesse ser construída tendo como base imediata a presença e a aprovação unânime de dois terços do capital investido, na condição da restante parte do capital se vir a manifestar posteriormente, também por unanimidade, por qualquer das formas previstas nos números seguintes desse mesmo art. 1432º do CC. 

Se a lei foi tão coisa em continuar a manter a exigência da unanimidade em segunda convocatória para as deliberações que a exigiam na primeira, apenas aceitando a forma de ela se manifestar, entendemos que o mesmo tipo de preocupação está subjacente ao tipo de deliberações que exijam um regime especial também exigente, encontrando-se, consequentemente nesta situação, todos aqueles casos que se coloquem à margem da simples administração ordinária. 

Existe portanto uma lacuna legal para as deliberações que exijam maiorias qualificadas e que venham a ser tomadas em segunda convocatória da assembleia geral. Essa lacuna tem de ser suprida pela analogia com a situação que melhor se lhe adapte, ou seja, com a continuação da exigência de maioria de dois terços, podendo neste caso bastar que votem favoravelmente a deliberação, logo na assembleia, a maioria dos condóminos e do capital investido, mas ficando a deliberação sujeita à condição de haver manifestação posterior da restante parte necessária para fazer as maiorias qualificadas exigidas, podendo essas posteriores formas de manifestação ocorrer nos mesmos moldes previstos nos nº 6 a 9 do art. 1432º do CC. Como as deliberações tomadas não preenchem esses requisitos, entendemos que são elas anuláveis.”

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