Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

6/23/2021

Usar garagens para outros fins

Naquilo que nos aproveita, segundo a generalidade dos dicionários, o conceito de garagem é o de um lugar próprio para se e estacionar e guardar veículos, local onde se guardam automóveis, lugar coberto, geralmente fechado, que serve para abrigo de automóveis. No entanto, cumpre perguntar, destinam-se as garagens apenas ao parqueamento de qualquer tipo de viaturas?

O velho conceito de garagem

Garagem é o nome atribuído a um espaço, geralmente coberto e fechado (podendo ser outrossim um lugar delimitado por traços pintados no pavimento num espaço amplo, sito na cave de um edifício com múltiplos proprietários), na qual o proprietário pode parquear os veículos para os proteger do tempo inclemente e também de potenciais acções criminosas.

Estes espaços, nos projectos de arquitectura, eram os cómodos "mais pobres" da edificação, sendo mal estruturados, deficientemente revestidos, totalmente desaproveitados e desprovidos, não se sobressaindo nem convergindo com a linha arquitectónica da moradia ou prédio. Em muitos prédios têm-se mesmo como espaços exíguos em face da necessidade de se aproveitar todo o (pouco) espaço disponível, com rampas excessivamente inclinadas e/ou mal projectadas e ângulos de manobra incómodos. 

Sobre estes espaços não havia qualquer cuidado de maior porquanto geralmente estavam localizados num ambiente fechado e potencialmente húmido, por baixo da estrutura da edificação e portanto mais susceptível à ocorrência de patologias na estrutura predial pelo facto de os materiais estarem submetidos a um directo contacto com a humidade, não merecendo portanto, melhor. 

Um novo conceito de garagem

Nos projectos contemporâneos, a garagem ganha todo um novo conceito de ambiente que pode servir para outras finalidades além de acomodar o(s) veículo(s) do(s ) morador(es) da moradia/apartamento. Aliás, nas modernas construções de alto padrão, as garagens ficam, geralmente, na parte posterior do terreno, próximas da área de lazer, para permitir que o espaço possa ser aproveitado como uma sala ou uma varanda em dias de festa, quando os veículos podem ser retirados do local.

Aliás, o conceito norte-americano de garagem na frente do imóvel tem vindo a ser substituído, excepto nos terrenos de menores dimensões, que não possibilitam projectar o espaço para carros em outros pontos, já que o recuo mínimo deve ser de 5,3 metros. Mesmo nos projectos em pequenos espaços, não se usa entrar no imóvel pela garagem, ambiente que fica separado da casa. Nesses casos, a evolução e sofisticação da arquitectura ajudam a criar soluções para deixar as áreas de acomodação dos veículos mais funcionais e esteticamente bonitas.

Nesta conformidade, actualmente as garagens têm-se projectadas com uma dimensão e qualidade de construção que permita que o local seja pratico e funcional, prevendo-se espaço útil para a guarda de bens, a circulação de pessoas, e bem assim a carga e descarga de pessoas e objectos.

O gozo pleno do direito de uso

Nos termos do art. 1305º do CC, "O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso (dando-lhe o fim que melhor lhe aprouver), fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (no caso, a moradia ou apartamento), dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (cfr. art. 1422. nº 2 al. c) do CC)". 

Portanto, o uso de coisa definido neste preceito diz respeito à utilização directa da coisa (leia-se, moradia / apartamento) ou como aproveitamento imediato das aptidões naturais dela (conferindo-lhes o uso que melhor se adequar às suas necessidades actuais), conceito distinto de fruição que visa fundamentalmente a utilização da coisa como instrumento de produção - frutos, proventos, etc.

E quanto ao uso da garagem, e relativamente ao fim a que a mesma se encontra adstrita, temos que recorrer não só ao título mas às próprias circunstâncias contemporâneas dele, utilizáveis na sua interpretação. Ora, o uso extemporâneo não pode ser integrada no conceito de se estar a dar um destino diferente à garagem, como se exprime o nº 2 da al. c) do art. 1422º do CC (aplicável a toda a fracção e não a algum dos seus cómodos). Diferente seria se tal utilização (a desse cómodo ou garagem) fosse permanente, por exemplo, como armazém, em grandes quantidades, e com materiais que pudessem por em perigo os restantes condóminos.

Segundo os ensinamentos do Dr. L.P. Moitinho de Almeida, in Propriedade Horizontal, pags. 88/89, 2ª Edição, Ed. Almedina, Coimbra 1997, "A proibição do uso diverso do fim a que a fracção é destinada (art. l 422, n.° 2, ai. c)), refere-se, como a própria lei estipula, à fracção no seu todo. Visa-se os casos em que a fracção se destina a habitação, querendo-se significar que não pode ser destinada a comércio ou profissão liberal, e vice-versa. Cada condómino, dentro da sua fracção, é livre, como dispõem os preceitos atrás citados, de fazer o que muito bem entender, salvaguardados os direitos de terceiros. E não se vê como pudessem ser prejudicados os demais condóminos pelo facto de aquela garagem se converter em arrecadação ou em garagem e arrecadação simultaneamente. Como se disse, a garagem ou a arrecadação são partes da fracção, em pé de igualdade (porque nada na lei dispõe em contrário) com a cozinha, a sala comum ou qualquer outro quarto. Assim, e mau grado o que consta no título constitutivo da propriedade horizontal, é evidente que o condómino não está impedido de destinar o quarto de banho a quarto de arrumos ou de transformar a cozinha em quarto de dormir. Assim, e por igualdade de razões, não seria objecção séria a de que, o espaço destinado à garagem poderia passar a ser destinado a arrecadação ou outra finalidade idêntica. Aliás, mesmo permanecendo como garagem, aquele espaço pode não ser utilizado como tal, porque, por exemplo, o condómino respectivo não tem carro. Não teria sentido privá-lo de dar-lhe uma finalidade útil.

A regulação dos contratos de seguro

Como é consabido, o regime geral do contrato de seguro extrai-se, ainda hoje, do Código Comercial de Veiga Beirão. Do respectivo art. 426º e § único retira-se "encontrarmo-nos perante um contrato formal, que deve ser reduzido a escrito num instrumento denominado “apólice do seguro”, do qual constam os nomes do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, bem como o objecto e a natureza do contrato, o valor e os riscos cobertos".

Do art. 427º do CCom conclui-se que o contrato de seguro se regula pelas estipulações da respectiva apólice, não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código. Note-se que, hoje em dia, decorrendo das normas dos art. 32º nº 1 e 2 e 34º nº 2 Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL nº 72/2008 de 16/4), e ao contrário do que era exigência do CCom (do art. 426º cit. extraía-se que o contrato deveria ser reduzido a escrito, em formalidade que assim, e por decorrência da aplicação dos princípios gerais, se entendia ser um pressuposto da validade do contrato, uma formalidade “ad substantiam”), a formalização do contrato em documento escrito ou suporte electrónico duradouro assume-se agora como mera formalidade de prova, um requisito/documento “ad probationem” do contrato (assim, Prof. Romano Martinez et al., Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2009, pg. 170).

Aliás, a interpretação do contrato de seguro tem por base as normas legais dos art. 236º a 238º do CC, aos princípios decorrentes da boa fé contratual (cfr. art. 762º nº 2 do CC), e o disposto no DL nº 446/85 de 25/10 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais - LCCG), quanto à parte do clausulado (ou todo ele) que possa revestir a natureza de cláusulas contratuais gerais. Subsistindo alguma dúvida na interpretação das cláusulas do contrato de seguro, deverá pois prevalecer a interpretação mais favorável ao segurado, nos termos do art. 11º nº 2 do DL nº 446/85 de 25 de Outubro.

Ora do disposto no art. 11º nº 2 do LCCG extrai-se que só haverá ambiguidade se as regras comuns dos art. 236º e ss. do CC não resolverem o problema, de modo que a referida ambiguidade seja efectiva. Portanto, as cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real (cfr. art. 11º nº 1), na dúvida prevalecendo o sentido mais favorável ao aderente (cfr. nº 2), sendo nulas as cláusulas contrárias à boa fé (cfr. art. 16º).

Do art. 236º, extrai-se que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Todavia, porque se trata, no caso, de um negócio formal, o art. 238º vem restringir os termos do art. 236º, estipulando que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Trata-se da usualmente designada doutrina da impressão do destinatário, recondutível ao âmbito do princípio da protecção da confiança, impondo ao declarante um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, desde forma se concedendo primazia ao ponto de vista do destinatário da declaração, a partir de quem tal declaração deve ser focada (cfr. Prof. Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente, pg.206). Todavia, a lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário, significando o entendimento subjectivo deste, mas apenas concede relevância ao sentido que apreenderia o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – a pessoa com capacidade, razoabilidade, conhecimento e diligência medianos (cfr. Prof. P. Mota Pinto, op. cit., pg.208).

Enquanto cláusulas contratuais gerais, regendo as normas do DL nº 486/85 cit., as regras gerais já apontadas de interpretação e integração dos negócios jurídicos são levadas em conta, no contexto de cada contrato singular em que se incluam (cfr. art. 10º do CC). 

Para a identificação do local de risco de um seguro de danos (multi-riscos habitação ou condomínio) não releva a descrição matricial ou registral do imóvel, mas já assume importância a referência aos bens seguros (não apenas ao valor como à respectiva descrição), designadamente como constam da proposta subscrita pelo tomador do seguro, a não sinalização na proposta de qualquer anexo, arrecadação ou garagem cujo conteúdo pretendesse assegurar-se, a indicação na mesma proposta da estrutura da habitação (individual, em banda ou em PH).

Na ausência destas ressalvas, tudo a concluir, por um declaratário normal, estar em causa apenas a habitação do proprietário e respectivo recheio/conteúdo, que não também a totalidade do edificado em que aquela habitação se integrava, cujo aproveitamento possa ter-se feito como arrecadação / garagem / depósito.

O direito de uso vs o contrato de seguro

Há quem defenda que as consequências do uso diverso do imóvel para o fim a que se destina podem ainda reflectir-se a outros níveis, como por exemplo no que toca à actuação dos seguros,. Assim, se ocorrer um incêndio num lugar de parqueamento que se encontre parcialmente ocupado com bens móveis e/ou lenha, o seguro do condomínio, relativo às partes comuns, não cobrirá o sinistro. 

Esta tese não merece o melhor acolhimento, porquanto em causa não está a alteração do fim a que o imóvel se destina, no limite, estará a alterar-se o uso de um cómodo do imóvel, no vertente caso, uma garagem, parcial ou totalmente, para um fim mais adequado às necessidades do proprietário, pelo que, por este expediente, não há razão válida para que o seguro se furte às suas responsabilidades em caso de sinistro.

Coisa diversa resultará, naturalmente, se o proprietário, independentemente de alterar, parcial ou totalmente o fim a que se destina o cómodo, nela faz guarda e/ou depósito de materiais e/ou substâncias potencialmente perigosas (quaisquer líquidos, gases ou sólidos, corrosivos, comburentes, inflamáveis ou espontaneamente inflamáveis, explosivos ou tóxicas que ponham em risco o imóvel), sejam proibidas por lei, ou mesmo quando admitidas, não constam da proposta subscrita pelo tomador do seguro.

Destarte, no pleno gozo do seu direito de uso (cfr. art. 1305º CC), o proprietário pode trocar um quatro por uma sala e vice-versa, dividir uma sala ampla, criando como novo cómodo um quarto extra, ou desconstruir uma parte da parede eliminando um quarto e anexando-o à sala ou à cozinha, pode num quarto que não necessite como tal, passar a usá-lo como ginásio particular, sala de música, biblioteca, sala de jogos, escritório pessoal ou dando-lhe uma qualquer outra utilização lúdica ou de lazer.

Mas cumpre perguntar, e se o proprietário fecha uma varanda posterior ou parte de um terraço, ou todo o terraço, com marquise, deles ou de parte deles fazendo uma "lavandaria", com máquinas de lavar e secar roupa e ferro de engomar? E no que ao aproveitamento da garagem concerne, havendo uma lareira, recuperador de calor ou salamandra a lenha, está o proprietário impedido de comprar lenha à tonelada (como é o uso e costume geral), tendo que a comprar a lenha ao quilo porque não a pode guardar numa garagem? E dentro de casa, já a pode guardar? Lenha não, e briquetes ou pellets, sim? E uma garrafeira, terá que ficar na sala em detrimento da garagem? Se o proprietário se tiver adepto da pesca desportiva ou se realiza trabalhos de bricolage, não pode guardar tais coisas num móvel, na garagem?

Nesta conformidade, a seguradora é estranha ao tipo de uso e/ou aproveitamento que o proprietário faz do seu imóvel, apenas se podendo desresponsabilizar da sua obrigação de indemnização face a um qualquer sinistro, se se provar que o proprietário o empregou para fim diverso ao que se destinava ou se no uso, houve algum manifesto abuso daquilo que se possa considerar um uso normal e prudente.

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