Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

6/08/2021

Alterar o uso da fracção

Na propriedade horizontal, cada fração autónoma não é uma ilha, mas uma parte de um todo, onde, por isso, se conjugam direitos de propriedade exclusiva (sobre cada uma das frações) e direitos de compropriedade (sobre as partes comuns do edifício), sendo que os dois espaços/elementos (o objeto de propriedade exclusiva e o marcado pela compropriedade) se conjugam, entrecruzam e interpenetram, importando limitações na pretensão de uso e modificação de cada fração, como consagrado no nº 2 do art. 1422º do CC.

Uma das limitações ao exercício dos direitos resulta do disposto na al. c) do nº 2 do art. 1422º, do CC onde se preceitua que é especialmente vedado aos condóminos dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada. Nos antecedentes históricos legislativos deste normativo invocava-se que no exercício do seu direito devem os proprietários suportar as limitações necessárias ao bem de todos, em virtude das relações de vizinhança, da copropriedade nas coisas comuns e da circunstância das frações pertencerem ao mesmo edifício.

O fim a que uma fracção autónoma é destinada constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção (direito que, em princípio, não sofre compressões de ordem natural), pelo que o fim a que se destina o uso não configura posse (que é poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art. 1251.º do CC) susceptível de, por sua vez, levar à aquisição por usucapião de um direito a usar para fim distinto do estabelecido antes. Adquirem-se direitos reais, não restrições de uso.

Nos termos do art. 1418º, nº 1, 2, al. a), e 3, do CC, o título constitutivo da propriedade horizontal pode conter determinadas especificações, designadamente as relativas ao fim a que se destina cada fracção, sendo certo que, se esta especificação constar do título, ela deve ser coincidente com o que foi fixado no projecto aprovado, sob pena de nulidade. Por outro lado, o título constitutivo só pode ser modificado, salvo o caso previsto no art. 1422º-A do CC (junção e divisão de fracções) com o acordo de todos os condóminos.

Não se verificando divergência entre o fim estipulado no projecto e o fim constante no título constitutivo, a alteração do fim das fracções demanda a concordância de todos os condóminos. O carácter imperativo da norma do nº 1 do art. 1419.º do CC implica a nulidade de qualquer alteração da finalidade a que se destinam as fracções (cfr. art. 294º do CC). Aliás, cabe referir que, mesmo na situação em que o fim a que se destina a fracção não conste do título constitutivo, a alteração do uso de cada uma das fracções depende da autorização por uma maioria qualificada (2/3) de condóminos (cfr. art. 1422º, nº 4 do CC).

Acresce sublinhar que o uso que figura no TCPH deverá estar em plena consonância com o projeto de construção aprovado pela CM, caso contrário, torna-se parcialmente nulo, ou essa estipulação negocial torna-se ela própria nula, conforme competente decisão do Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06-12-2018: E neste sentido, estando omissa a indicação do uso no título constitutivo da propriedade horizontal, essa mesma circunstância irreleva para efeitos de se poder dar um uso diferente ao prédio ou à fracção. Isto é, na omissão dessa indicação no título constitutivo da propriedade horizontal terá sempre que valer o que ficou fixado no projecto de construção aprovado.

A emissão pela Câmara Municipal de licenças de utilização de fracções autónomas para fim diverso ao indicado no TCPH não torna supervenientemente nula escritura pública de constituição que prevê a afectação dessas fracções a fins habitacionais. Portanto, se um condómino pretender alterar o fim a que se destina a sua fração autónoma, para além da autorização de utilização conferida pela CM, precisa do consentimento dos restantes condóminos.

Destarte, o condómino que pretenda alterar o uso da respectiva fracção autónoma deve ter em consideração o TCPH, documento de consulta indispensável para o efeito, o qual poderá ser consultado junto do administrador ou na CRP, e do qual, em princípio, constará o fim de cada fração, se habitacional, de comércio, serviço ou indústria. Assim, por exemplo, se uma fração está destinada a habitação, o condómino não nela abrir uma loja.

Tal proibição radica pois em razões de interesse e ordem publica, embora vise também a proteção dos interesses particulares dos restantes condóminos. E sendo certo que o título constitutivo só pode ser modificado, desde que haja acordo de todos os condóminos (cfr. art 1419º/nº 1, do CC), quando em casos como o presente, os requerentes não foram devidamente informados acerca da afetação da fração tal não será possível fazer.

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