Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

6/16/2021

A propriedade horizontal

O condomínio resultante do regime da a propriedade horizontal, é um instituto que, tal como o concebemos actualmente, não tem ainda um século de existência.

O direito romano não tolerava a divisão do prédio por planos horizontais, por a mesma ser contrária aos princípios dominantes: se a propriedade se projectava para o alto ad astra e se aprofundava ad inferos, não havia fundamento para a separação e autonomização dos direitos de quem vivesse acima do proprietário, incompatibilidade flagrante quanto mais arreigada a convicção de que se subordinava ao proprietário do solo qualquer edificação sobre ele levantada: aedificium solo cedit et ius seguitur (cfr. Caio Mário da SilvaPereira, Condomínio e Incorporações, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 61).

A origem da propriedade horizontal encontra-se na Idade Média. Alcançou então um grande desenvolvimento, sobretudo em cidades como Rennes e Grenoble, onde os edifícios por pisos eram a regra e as vivendas estritamente pessoais a excepção, o que é justificado pelas circunstâncias que obrigavam a rodear as cidades de altas muralhas que as impediam de crescer em extensão e forçavam o crescimento em altura (cfr. Pedro Augusto Escobar Trujillo, apud Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 48).

Os princípios individualistas da Revolução Francesa, opostos a toda a forma de delimitação do domínio, não se harmonizavam com a propriedade horizontal. O Código de Napoleão não regulamentou o instituto, reservando--lhe um só artigo, o 664º, incluí do no capítulo relativo às paredes comuns. Os códigos seguintes ou seguiram o mesmo caminho do francês ou guardaram silêncio a tal respeito ou proibiram o instituto, como foi o caso do Código alemão, cujo art. 1014º consagrava a inadmissibilidade da restrição do direito de superfície a uma parte do edifício, especialmente a um só andar, o que se entendida proibir a propriedade horizontal (cfr. Mariano Fernandez Martin-Granizo, La Ley de Propiedad Horizontal en el Derecho Espanol: Comentarios a La Ley De 21 de Julio de 1960, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1983, pp. 143-147).

Ressalvavam-se da proibição as situações jurídicas anteriores, que se continuavam a reger pela legislação antiga, por força do disposto no art. 182º da Lei de Introdução ao referido Código. O ciclo de decadência do instituto inverteu-se no período subsequente à Guerra de 1914-18: o sistema da propriedade horizontal, possível devido ao desenvolvimento das técnicas de construção, surgiu como o meio de solucionar o problema da habitação que o aumento exponencial das cidades gerou (Valem aqui, mutatis mutandis, as palavras de Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (Direito das Coisas em Geral), Coimbra: Centelha, 1977, p. 17, a propósito do direito das coisa em geral: «Tratando se de bens escassos, é claro que o controle de tais bens — e a ordenação do domínio desses bens é óbviamente uma ordenação do seu controle — equivale a um controle dos meios de subsistência; isto é, a um controle sobre a vida dos cidadãos, a um controle sobre os fins e a fisionomia da cidade. 
 
Daqui resulta como primeira consequência que o direito das coisas é a pedra de toque do direito que em certa altura vigora e, mais do que isso, da sociedade em que ele vigora: do ‘projecto’ tanto cívico como político que representa a sociedade em questão. É ao nível do direito das coisas que a sociedade civil mostra os seus verdadeiros estigmas e a correspondente organização política e o seu princípio fundamental de estrutura»).

A Lei belga de 8 de Junho de 1924 foi a que primeiro regulamentou o instituto, seguindo-se-lhe, de um modo geral, a de todos aqueles países que partilham do nosso património jurídico-cultural, incluindo a daqueles que o proibiram. É o caso da Alemanha: a Lei de 15 de Março de 1951 criou o direito permanente de habitação (dauerwohrecht) e a propriedade horizontal de casas (woh nungseigentum).
 
Como salienta o autor, a lei alemã de 1951 tem as seguintes características: 
 
a) a propriedade das casas é uma compropriedade robustecida por uma proprie dade privada especial diminuída quantitativamente por uma propriedade especial alheia; 
 
b) a propriedade especial é uma autêntica propriedade individual no sentido do conceito de propriedade previsto no BGB e não somente um direito real, limitado pela totalidade da coisa que está sob a compropriedade de todos os proprietários da casa; 
 
c) as relações que derivam da propriedade de casas têm o seu fundamento jurídico na relação de vizinhança fortemente intensificada sobre a base da estreita comunidade especial dos proprietários das casas; 
 
d) segundo essa lei, a participação da propriedade de um imóvel é determinante na propriedade especial, apresentando-se como uma propriedade subjectivamente real, desconhecida para o direito até então que, conforme o previsto no § 96 do BGB, é elemento constitutivo da participação da compropriedade, participando da sua natureza jurídica.

Entre nós, a primeira referência ao instituto encontra-se nas Ordenações Filipinas (Cf. L. P. Moitinho de Almeida, Propriedade Horizontal, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, pp. 12-13.), cujo § 34 do Título LXVIII (Dos Almotacés) do Livro I, dispunha que «[s]e huma casa for de dous senhorios, de maneira que de hum delles seja o sótão, e de outrem o sobrado, não poderá aquelle cujo for o sobrado, fazer janella sobre o portal daquelle, cujo for o portão, ou logea, nem outro edificio algum».

O Código Civil de 1867, no seu art. 2335º, que teve por fonte o art. 664º do Código Civil francês, apenas cuidou do modo de reparação e conserto dos diversos andares de um edifício que pertencessem a diversos proprietários, quanto isso se não encontrasse regulado nos respectivos títulos.

A Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, estabeleceu, no seu art. 30º, único da Parte III, intitulada Propriedade por andares, que o Governo devia, no prazo de 6 meses, proceder à revisão e regulamentação do art. 2335º do Código Civil, estabelecendo o regime de propriedade por andares ou propriedade horizontal. Tal regulamentação apenas surgiu com o Decreto-Lei nº 40 333, de 14 de Outubro de 1955, que esteve em vigor até ao Código Civil de 1966.

Neste, o instituto está regulamentado nos arts. 1414º a 1438º, sendo notória a influência dos arts. 1117º a 1139º do Código Civil italiano (Titolo VII: Della Comonione; Capo II: Dei Condomi negli edifici).

O art. 1414º do Código Civil, ao dizer que as fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal, consagra uma derrogação ao princípio superficies solo cedit, nos termos do qual um edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio — direito que abrange toda a constru ção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro.

Na propriedade horizontal, os titulares das várias fracções ou unidades independentes — condóminos, na terminologia legal (cfr. art. 1420º do CC) — são ainda comproprietários das partes do edifício que constituem a sua estrutura comum ou estão afectadas ao serviço daquelas fracções (cfr. art. 1421º do CC).

As fracções independentes fazem parte de um edifício, na acepção do art. 204º, nº 2 do CC, de estrutura unitária, o que necessariamente cria especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer pelo que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo no que respeita às fracções autónomas.

O núcleo do instituto da propriedade horizontal é constituído por direitos privativos de domínio, a que estão associados, com função instrumental, mas de modo incindível e perene, direitos de compropriedade sobre as partes do prédio não abrangidas por uma relação exclusiva.

Foi para distinguir as situações de propriedade horizontal das de simples contitularidade ou comunhão sobre coisa indivisa que o legislador recorreu ao conceito de condomínio, acolhendo as teorias de Planiol, Ripertebaudry-Lacantinerie (Domenico Peretti-Griva, Il Condomínio dele Case Divise in Parti, Turim: UTET, 1960, p. 79; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, IV, 6.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 179).

O condomínio é, assim, no dizer de Henrique Mesquita, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas. No fundo, o direito de propriedade sobre a parte exclusiva é combinado com o direito de compropriedade sobre as partes comuns. Daí nasce um direito real complexo, no sentido de que combina figuras preexistentes de direitos reais. É, no entanto, diferente do mero somatório dos esquemas da proprie-dade e da compropriedade; contendo o uma regulamentação própria do seu exercício, constitui a se um direito real.

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