Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

6/16/2021

Legitimidade, personalidade e capacidade judiciária

A personalidade judiciária acompanha a personalidade jurídica, que consiste na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações (cfr. art. 11º, nº 2, do CPC). A personalidade jurídica é automaticamente atribuída às pessoas singulares, a partir do nascimento completo e com vida (cfr. art. 68º, nº 1 do CC), e às pessoas colectivas regularmente constituídas.

Assim, quanto às pessoas colectivas, têm personalidade jurídica as sociedades comerciais constituídas nos termos do CSC, aprovado pelo DL nº 262/86, de 2.09, cujo art. 5º pressupõe a regularidade formal e o registo definitivo do contrato, as sociedades civis sob forma comercial (cfr. art. 1º, nº 4), as associações constituídas por escritura pública (cfr. art. 158º, nº1 do CC) ou nos termos da Lei nº 40/2007, de 24.08, que aprovou um regime especial de constituição imediata de associações, as fundações reconhecidas (cfr. art. 158º, nº2 do CC), as cooperativas, a partir do registo da sua constituição (cfr. art. 16º do Código Cooperativo, aprovado pela Lei nº 51/96, de 7.09).

Assente isto, vejamos agora em que consiste o condomínio resultante da propriedade horizontal, instituto que, tal como o concebemos actualmente, não tem ainda um século de existência.

O condomínio é, assim, no dizer do autor Henrique Mesquita, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas. No fundo, o direito de propriedade sobre a parte exclusiva é combinado com o direito de compropriedade sobre as partes comuns. Daí nasce um direito real complexo, no sentido de que combina figuras preexistentes de direitos reais. É, no entanto, diferente do mero somatório dos esquemas da propriedade e da compropriedade; contendo ou uma regulamentação própria do seu exercício, constituido-se um direito real.

Ademais da regulação da figura, o legislador instituiu uma forma de organização do grupo constituído pelos condóminos, de modo a assegurar a formação de uma vontade própria e única e um sistema de gestão e funcionamento eficaz. Assim, a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador (cfr. art. 1430º, nº1 do CC).

Dimana do art. 1430º do CC que “a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador“, sendo que as funções do administrador vêm contempladas no art. 1436º do mesmo Código que delas aí faz mera enumeração exemplificativa, já que ficam de fora “... outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia; “(cfr. Ac. da Rel. de Évora de 27.4.89 e do STJ, 7.2.98, respectivamente em C.J. 1989, 2, pág. 151 e CJ./Ac do STJ, 1998, I, 86).

A assembleia é um órgão colegial, composto por todos os condóminos, ao qual cabe deliberar acerca da administração das partes comuns do edifício. Pelo processo colegial de formação da declaração colectiva opera-se não apenas uma mutação quantitativa correspondente à soma dos votos maioritários, mas uma real mutação qualitativa, que reconduz as vontades individuais à vontade do próprio grupo.

O administrador é o órgão executivo da administração das partes comuns do edifício e das deliberações da assembleia de condóminos, eleito e exonerado por ela (cfr. art. 1435º, nº 1 do CC) tem como incumbência não só o desempenho das funções enumeradas no art. 1436º, específicas do seu cargo, e noutras disposições legais, como as que lhe forem delegadas pela assembleia.

O legislador, ciente de que o condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, dota-o de organicidade e, muito embora não lhe atribua personalidade jurídica, admite que ele pode ser parte nas acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.

A negação da personalidade jurídica do condomínio, que não suscita dúvidas entre nós, assenta básica mente em dois argumentos: na falta de um reconhecimento expresso por parte do legislador; e na inexistência de um património separado. Ainda que o primeiro argumento não seja, de per si, concludente, pois para se afirmar a personalidade jurídica basta um reconhecimento implícito da parte do legislador, o segundo é inatacável: o Código Civil não atribui ao condomínio qualquer direito de natureza patrimonial. As partes comuns pertencem aos condóminos em regime de compropriedade e, quanto aos fundos e aos créditos, a lei não contém nenhuma previsão expressa.

A medida da personalidade judiciária do condomínio coincide, portanto, com a das funções do administrador — ou seja, as acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador devem ser intentadas por (ou contra o) condomínio. Fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio.

Quanto à legitimidade do administrador para estar em juízo rege o art. 1437º do CC. Assim o administrador é parte legitima quando a acção tem por objecto as partes comuns do edifício, e, também, questões de propriedade ou posse dos bens comuns, mas nestes últimos casos, quando a assembleia atribui para o efeito poderes especiais ao administrador (cfr. art. 1437º nº 2 e 3 do CC).

É pois consabido que a personalidade judiciária, a capacidade judiciária e a legitimidade se incluem entre os pressupostos processuais positivos, aqueles cuja verificação se mostra necessária para que o Juiz possa e deva pronunciar-se sobre a procedência ou improcedência do pedido, a personalidade judiciária consiste na “possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei”; a regra é a de que só tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica: personalidade jurídica consiste na capacidade de gozo de direitos.

Todavia há excepções a essa regra (a da correspondência entre a capacidade de gozo de direitos e a personalidade judiciária) , sendo a primeira contemplada no art. 6º do CPC; a segunda no art. 7º do CPC (cfr. Prof. Antunes Varela - Manual de Processo Civil, 2ª ed. Pág. 107 e segs. e Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976 pag. 74 e segs e Castro Mendes - Direito Processual Civil, II, pág. 9 e segs).

A capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo, ou seja a “susceptibilidade de a pessoa, por si, pessoal e livremente, decidir sobre a orientação de defesa dos seus interesses em juízo, em aspectos que não são de mera técnica jurídica “ (cfr. Castro Mendes ob. Cit págs 38); a capacidade judiciária tem por base e por medida a capacidade de exercício de direitos (Cfr. art. 9 nº 2 do CPC).

Quer-se significar que têm plena capacidade judiciária as pessoas, singulares ou colectivas que possuam integral capacidade de exercício de direitos, havendo, porém, casos de pessoas que têm a sua capacidade de exercício qualitativamente limitada (os inabilitados, os menores) ou condicionada pela intervenção de outrem (caso de inabilidade em geral) - cfr. Prof. A. Varela Ob. Cit. pág. 9).

Porém, outro dos pressupostos processuais positivos é a legitimidade para a acção que é mister que se verifique (a par da personalidade e capacidade judiciárias) para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da acção. E aqui é necessário que quem figura na acção como autor seja perante o direito substantivo o titular dessa relação jurídica processual. Mais do que saber quem são (em sentido formal) as partes no processo, importa saber quais devem ser as partes em sentido substancial. A questão da legitimidade é essencialmente uma questão de posição das partes em relação à lida - “cfr. Prof. Alberto do Reis - CPC anotado N. I, pág. 74.

Perante isto, concluímos que no art. 1437º do CC, o legislador não trata da legitimidade processual, no sentido da legitimidade ad causam, até porque a legitimidade, que consiste no interesse directo em demandar ou em contradizer, consoante se trate de legitimidade activa ou passiva, respectivamente, é um pressuposto processual que só em concreto pode ser determinado. A norma respeita à legitimatio ad processum, ou seja, à capacidade processual .

Diz-nos apenas que a representação do condomínio em juízo incumbe ao administrador, como já resultaria do art. 26º do CPC. Se assim é, então a propositura de acção inserida no âmbito dos poderes do administrador por quem o não seja configura um caso de irregularidade de representação, sanável mediante a intervenção do titular do órgão executivo do condomínio, nos termos previstos no art. 27º, nº 1 do CPC, sem que daí derive qual quer modificação subjectiva da instância, certo como é que «parte é quem o é e não quem o representa», para usarmos a expressão de António Montalvão Machado. 
 
Sendo a acção proposta contra o condomínio, este deve ser citado na pessoa do seu administrador, recaindo sobre o autor o ónus de o identificar na petição inicial, por referência ao seu nome e residência, só assim se mostrando integralmente cumprido o que dispõe o art. 552º, nº 1, al. a). Se o citado não possuir a qualidade que lhe foi atribuída pelo autor, então o erro não residiu na identificação dele — a citação foi realizada na pessoa que se queria chamar a juízo —, mas num momento prévio, quando se concluiu indevidamente ter o citado poderes de representação do condomínio. Tratar-se-à, também, de um caso de irregularidade de representação, sanável mediante a citação do administrador. 
 
Irregularidade de representação haverá também nos casos em que o administra dor actue fora do âmbito das suas funções sem previamente ter sido autorizado pela assembleia de condóminos. É que os poderes de representação judiciária do administra dor não se restringem às matérias de gestão corrente: o administrador ainda assegura a representação do condomínio em juízo quando é incumbido pela assembleia, órgão deliberativo, de agir judicialmente em assuntos respeitantes às partes comuns, mas que exorbitam da competência que lhe é própria. É o exemplo da acção destinada a imputar, na esfera jurídica de terceiro, os danos causados em parte comum do edifício ou da acção destinada à resolução do arrendamento de parte comum do edifício. Em tais casos, os poderes de representação do administrador pressupõem uma deliberação da assembleia. A falta dessa deliberação pode ser suprida nos termos do art. 29º do CPC.

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