Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

5/25/2021

O direito ao silêncio é absoluto?


“O ruído faz pouco bem, o bem faz pouco ruído”
(Francisco de Sales)
 
 
A utilização de uma fracção autónoma destinada à habitação pressupõe que a mesma tenha condições para que os seus utilizadores a possam utilizar como o seu lar e o seu local de conforto, direito que tem garantia legal e constitucional na vertente do princípio ao respeito pela dignidade da pessoa humana e o direito a um ambiente sadio e equilibrado, com o inerente direito de o poderem defender (cfr. art.s 25º e 66º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e art. 70º, nº 1, do CC).

O competente Ac. do TRL de 30-10-2018, decidiu que, "Há um direito fundamental que a sociedade tem de preservar, porque preservando, preserva também a saúde mental dos seus cidadãos: o direito ao silêncio! Parecendo-nos ser inquestionável que não se trata de um direito absoluto, certo é que o mesmo deve ser interpretado num contexto que permita que todos possam usufruir de um ambiente saudável. Este direito, protegido por vários mecanismos legais, entre eles, pela Lei do Ruído (DL 7/2009), deve ser observado de forma cuidadosa".

Ruído de exploração de actividade económica

Estando-se perante a verificação objectiva, efectiva e diária de danos continuados ao direito ao sossego e à saúde em geral dos moradores de uma fracção autónoma, enquanto direitos de personalidade com tutela jurídico-constitucional, em confronto com o direito à exploração de um estabelecimento comercial que viola o direito daqueles, sempre teríamos de concluir pela prevalência dos primeiros uma vez que os danos assim causados devem ser considerados como inaceitáveis.

Alias, toda a nossa jurisprudência tem considerado que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade são pressupostos da realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente dos direitos à integridade física e moral, a um ambiente de vida sadio, constitucionalmente tutelados como Direitos Fundamentais no campo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, porquanto, estando em confronto direitos de personalidade e direitos de natureza económica, os primeiros devem prevalecer relativamente aos segundos, nos termos previstos para a colisão de direitos no nº 2 do art. 335º do CC.

A norma do nº1 do artº 335º do CC prevê a solução jurídica para a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, caso em que deve haver a sua cedência recíproca, na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior perda para qualquer dos seus beneficiários; se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deve considerar-se superior (nº 2).

Assim, num primeiro momento, impõe-se uma tarefa de ponderação e harmonização no caso concreto, através do princípio da “concordância prática” ou da “ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”, por forma a atribuir a cada um desses direitos a máxima eficácia possível. "Sendo inviável essa harmonização, ocorre a prevalência do direito que seja tido como superior" (Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 3ª ed., pág. 1195).

No que respeita à hierarquia dos direitos conflituantes, a CRP confere predomínio aos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos económicos, sociais e culturais, o que conduz a reputar de prevalecentes os direitos de personalidade dos condóminos, e, em concreto, o direito ao repouso e ao descanso sobre o direito ao exercício da sua actividade económica. Essa prevalência não significa, contudo, como tem sido decidido na doutrina e na jurisprudência (cfr. Ac. TRC de 16.3.2010), que o direito hierarquicamente inferior não deve ser respeitado até onde for possível, e a sua limitação só deve verificar-se na exacta medida em que o imponha a tutela do direito de personalidade.

Mesmo assim, defende-se que, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. "Nessa perspectiva poderá dar-se primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade, e noutros casos, aos de outro tipo, com eles conflituantes" (Capelo de Sousa, “A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição”, II, 1978, pág. 547).

Ruído de vizinhança

A jurisprudência tem vindo a seguir o entendimento que em caso de colisão entre o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono num ambiente ecologicamente equilibrado e o direito de uso, fruição que o proprietário tem sobre a coisa que lhe pertence, deve prevalecer o primeiro. Com efeito, tal direito, porque contende com a integridade física e moral do indivíduo, afectando os direitos de personalidade de uma pessoa, deve preponderar sobre o direito de propriedade.

Não obstante, as regras de proporcionalidade e da justa composição dos interesses justificam que mesmo o direito inferior (v.g. o direito de propriedade) deva ser respeitado até onde for possível e a sua limitação deve circunscrever-se à exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.

Certo é que no âmbito dos direitos de personalidade não se deve ter por referência os parâmetros de um homem médio ou cidadão normal e comum, pois, “como direitos eminentemente pessoais, inerentes a cada pessoa per se, tais direitos devem ser entendidos como corporizados numa pessoa individualizada, ao lesado com a sua individualidade própria, com a sua sensibilidade.” Mas “respeitando a sensibilidade dos autores, o critério judicial de conformação do quadro factual não pode deixar de apelar a conceitos de normalidade, razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de bastar a prova de qualquer ruído para conduzir à procedência de toda e qualquer oposição à sua emissão.” (cfr. Ac. do TRC de 16-03-2010).

Destarte, para efeitos do funcionamento da prevalência do direito superior, será necessário provar-se que a acção ilícita viola o direito ao repouso, tranquilidade e sono dos autores, para efeitos do estatuído no art. 1346º do CC.

Assim, para que os donos de um prédio vizinho se possam opor à emissão de ruídos (ou à produção de trepidações e outros factos semelhantes provenientes de outro prédio) devem tais emissões importar num uso anormal do imóvel, ou num prejuízo substancial (ou seja, um dano considerável) para uso do seu imóvel. Nestas circunstâncias, sendo inconciliáveis os direitos em disputa, deve prevalecer, enquanto direito de personalidade, o direito ao repouso, descanso e saúde das pessoas lesadas (cfr. neste sentido, Ac. do STJ 1/03/2016).

Os ruídos, cheiros, incómodos ou devassa suportados têm, de acordo com os mencionados critérios de razoabilidade, de considerar-se substanciais? Não necessariamente, mas estando sob confronto direitos de natureza pessoal e direitos de natureza patrimonial, haverá que, atendendo às circunstâncias concretas do caso, encontrar a solução para aquela antinomia de interesses, de modo a causar o menor prejuízo possível para ambos.

Haverá assim que, no caso concreto, ponderar as especificidades da situação concreta por via da ponderação das respectivas especificidades e a avaliação dos interesses em jogo, de modo a permitir a coexistência dos dois direitos, num sacrifício recíproco e num juízo de proporcionalidade e razoabilidade que faculte a menor lesão possível dos direitos conflituantes.

Resulta desde logo do que acaba de se expor que, embora os transtornos e incómodos causados pelo ruído provocado pelo vizinho no âmbito do normal uso da sua fracção ou pelo barulho de um estabelecimento tal não lhes confere direito de proibir o uso da fracção ou o encerramento do estabelecimento.

Esta solução não é contudo tolerada pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e é rejeitada pelos princípios ínsitos à colisão de direitos: primeiro prossegue-se a harmonização dos direitos conflictuantes e só esgotada essa via se dá primazia ao direito prevalecente. Não podemos esquecer que vivemos numa sociedade ruidosa, em que todos os equipamentos de uso diário, mesmo doméstico, geram barulhos e trepidações e, nem por isso, deixamos de a eles recorrer.

Acresce que todos devem cultivar um aceitável nível de tolerabilidade aos ruídos por si gerados, aos ruídos envolventes e, consequentemente, também aos ruídos provenientes das fracções e dos estabelecimentos vizinhos, no caso destes últimos, com quem assumidamente decidiram conviver, ao adquirir uma habitação na zona mais movimentada da cidade, desde que sejam reduzidos a mínimos aceitáveis.

No entanto, no que concerne a uma actividade desenvolvida por um estabelecimento a funcionar até de manhã, não é tolerável, perante as regras da normalidade e da convivência pacífica da vizinhança onde aquele estabelecimento funciona – quando sito numa zona habitacional. Neste concreto, incumbe pois ao infractor do direito a um ambiente sadio, a mobilização dos meios técnicos existentes, em ordem à insonorização e isolamento acústico do estabelecimento, como mecanismo indispensável a poder continuar a exercer o seu direito à iniciativa privada e ao desenvolvimento da actividade económica.

Nesta perspectiva há que considerar as condições particulares de cada caso. Ou seja, haverá que preservar o direito dos condóminos ao seu sossego e descanso – direito prioritário – mesmo com o sacrifício – não o aniquilamento – do direito da exploração do estabelecimento.

Neste sentido decidiram os Ac. do TRP de 27-04-95 e do TRC de 16-05-00: "Não podemos ignorar que no âmbito dos direitos de personalidade, não atendemos aos parâmetros de um homem médio ou cidadão normal e comum; como direitos eminentemente pessoais, inerentes a cada pessoa per se, tais direitos devem ser entendidos como corporizados numa pessoa individualizada, ao lesado, com a sua individualidade própria, com a sua sensibilidade"

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