Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

29 maio 2025

Uso da coisa comum


Nos termos do art. 1406.° do Código Civil, "Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que têm direito."

Na ausência de qualquer acordo, qualquer consorte pode utilizar a coisa, dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização. Essa utilização pode ser exercida quanto á totalidade da coisa, independentemente da dimensão quantitativa que a quota traduz.

Por outro lado, a estatuição do art. 1403º, nº 2, do CC, referindo os direitos dos consortes como qualitativamente iguais, pese embora a diferença quantitativa, afasta a ideia de uma unidade do direito, com pluralidade de titulares. A compropriedade tem a natureza de um direito único com pluralidade de titulares, qualitativamente idêntico, mesmo quando quantitativamente distinto.

Em consequência, deve entender-se a faculdade de uso da coisa por cada consorte como referindo-se à coisa em si mesma, na sua totalidade, independentemente da dimensão quantitativa que a quota traduz. Porém, tal direito, tem a limitação legal de não privação do uso pela outra consorte.

Deve entender-se que esta privação do uso tem carácter abstracto, decorrendo da consideração da própria natureza da coisa em conjunção com a utilização a que se destina, ou que tem carácter concreto, decorrendo de uma impossibilidade de utilização efectiva e concretamente pretendida pelo outro consorte?

Ou seja, deve considerar-se que, na falta de acordo, a utilização por um consorte de uma coisa que não permite a utilização simultânea pelos demais implica a privação do uso por estes?

Ou, pelo contrário, mesmo neste caso, só se verificará a privação se em concreto o consorte não utilizador pretender utilizar, vendo-se impedido de o fazer, pela utilização dada pelo consorte utilizador?

A primeira solução, implicaria a derrogação do regime art. 1406º, do CC, quanto às coisas que apenas permitissem o uso exclusivo por um dos consortes, instituindo a obrigação do gozo indirecto e impossibilitando o gozo directo.

É essa a solução quando haja desacordo, mas não parece que seja quando o acordo falte no sentido de nada ter sido estabelecido. A tal se parecendo referir a expressão «falta de acordo» utilizada pelos Autores citados no inciso acima transcrito. O acórdão do STJ de 15 de Fevereiro de 2007, proferido no processo 06B4630 (Cons. Bettencourt de Faria), embora possa inculcar a defesa de posição diversa da defendida, fá-lo fundando-se numa situação de colisão de direitos nos termos do art. 335º, do CC, de que o art. 1406º, nº 1, é exemplo. Porém, a colisão de direitos tem de ver-se não em abstracto, mas na dinâmica concreta do seu exercício.

É nesta concretização da faculdade de usar que se afigura que os Professores Pires de Lima e Antunes Varela exprimem a diferença entre os regimes português e italiano: «o segundo limite do uso da coisa pelo comproprietário é ditado pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se serviram dela (…).

A restrição só funciona, porém, em relação às utilizações da coisa que os outros comproprietários possam fazer ou tenham necessidade de fazer. (…) Neste aspecto afigura-se mais feliz a fórmula do Código português, falando no uso a que os outros consortes têm direito (sendo certo que a existência do direito pressuporá, neste caso, a existência da necessidade correspondente), do que a do art. 1102º do Código italiano, que alude à necessidade de o uso feito por um dos consortes não impedir os outros participantes de usarem igualmente a coisa» (sublinhado nosso).

Do que decorre a licitude da utilização exclusiva da coisa em compropriedade por um dos consortes, mesmo quando a coisa não seja susceptível de utilização simultânea por todos. Aliás, tal ocorrerá, na generalidade dos casos, quando apenas um consorte estiver interessado no gozo directo e nenhum dos outros esteja interessado num gozo indirecto a que aquele obste, sem que nada tenha sido em concreto estipulado.

Refere a esse respeito o Professor Carvalho Fernandes: «como é evidente, os problemas surgem, quanto a este limite, nos casos em que não se mostre praticável um fraccionamento do uso. Suponha-se uma situação de compropriedade que tenha por objecto uma fracção autónoma e esta não permita o uso simultâneo de todos os comproprietários. Na falta de acordo, as alternativas são as de não permitir o uso de qualquer dos comproprietários e a de encontrar uma solução sucedânea da prevista na lei. Poderia ela ser a de o comproprietário, que venha a ter o uso exclusivo, compensar os demais pelo valor do uso que exceda a sua quota. Do ponto de vista económico-social, afigura-se-nos ser esta uma solução acertada».

Nessa situação, embora o gozo pelos demais consortes não seja materialmente possível, os mesmos não estão dele privados porque não o pretendem em concreto exercer e enquanto tal se verificar. Caso o pretendam, podem fazer cessar de imediato a utilização exclusiva, pela declaração dessa pretensão; quando a mesma não seja acatada, cessa a licitude da utilização, na medida em que passa a ocorrer

A privação da utilização pelos demais consortes tem de ser apreciada em concreto e não em abstracto pela mera consideração da natureza ou fins a que a coisa se destina; quando assim não fosse, ficaria derrogado o regime do art. 1406º, nº 1, quanto às coisas que apenas permitam o uso exclusivo, impossibilitando o gozo directo por qualquer dos comproprietários.

A restrição a que a norma alude, deve ser apreciada em concreto, cabendo ao consorte não utilizador alegar e demonstrar a privação do uso concreto da coisa. Caso contrário, a mera falta de estipulação consensual poderia privar todos os consortes do uso da coisa em benefício de nenhum deles, pois até o uso indirecto poderia estar vedado; o que, do ponto de vista socioeconómico seria absurdo, podendo até constituir abuso de direito.

A colisão de direitos nos termos do art. 335º, do CC, de que o art. 1406º, nº 1, é uma sub-espécie, tem de ver-se não em abstracto, mas na dinâmica concreta do seu exercício.

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