Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

7/16/2021

Deliberações inexistentes

O legislador substantivo não reconhece a figura das "deliberações inexistentes", não havendo, assim, qualquer regime processual que lhes seja especificamente aplicável, pelo que ou estamos perante deliberações sociais — que, por esse facto podem ser objecto da providência cautelar especificada de suspensão das deliberações sociais, desde que verificados todos os respectivos requisitos, incluindo o do "dano apreciável" - ou não estamos perante deliberações sociais (por nem sequer na aparência poderem ser imputadas à sociedade, o que não é o caso concreto) e, nesse caso, não poderão ser objecto da providência requerida, mas apenas de procedimento cautelar comum, desde que verificados todos os respectivos pressupostos;

Em síntese, diremos que, em regra, para aqueles que aceitam a figura da inexistência jurídica das deliberações sociais, como Raúl Ventura (Sociedades por quotas, II, Almedina, Coimbra, 1996, p. 247), uma deliberação será inexistente se falta absolutamente algum dos seus elementos essenciais específicos. 

Paulo Olavo e Cunha (Impugnação de Deliberações Sociais, Almedina, 2015, p. 180 e ss.), na tentativa de identificar os elementos específicos para que haja uma deliberação social, ainda que inválida, identificou 4 elementos, a saber: (i) existência de uma realidade que seja imputável aos sócios sobre a qual se possam pronunciar; (ii) emissão de votos os sócios de modo a formar um deliberação; (iii) os votos têm de ser expressos numa quantidade mínima; (iv) a deliberação tem de observar um processo estabelecido ou permitido pela lei ou regulado contratualmente.

Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, Vol. II, 6.ª ed., Almedina, 2019, p. 457) também enuncia dois tipos de hipóteses onde pode haver cabimento para as deliberações inexistentes: (a) não correspondência dos factos (invocados como deliberativo-sociais) a qualquer forma de deliberação dos sócios; (b) não correspondência dos factos à forma de deliberação invocada.

Alberto Pimenta, «Suspensão e anulação de deliberações sociais», cit., p. 445, nota 173, defendia que «o pedido de suspensão das deliberações só pode ser formulado como acto preparatório da acção de impugnação prevista no art. 146° do Cód. Com.»). A favor da possibilidade de suspensão de deliberações nulas, cfr. o Ac. STJ de 20/03/1962, BMJ, 115°, p. 541 (que admite também a suspensão de deliberações inexistentes) e o Ac. STJ de 21/12/1976, BMJ, 262°, p. 168.

Para Raúl Ventura, uma deliberação será inexistente se falta absolutamente algum dos seus elementos essenciais específicos. No Ac. STJ de 4/12/96, sustentou-se que a deliberação inexistente é o acto a que falte o mínimo dos requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria de uma deliberação ou que não seja adequado, nem sequer na sua aparência material, a vincular a sociedade. Mas no referido aresto entendeu-se que não se pode recorrer ao procedimento de suspensão de deliberações sociais relativamente a deliberações inexistentes porque aquele procedimento pressupõe uma efectiva deliberação. Para reagir cautelarmente contra uma deliberação inexistente, seria ainda assim possível recorrer a uma providência cautelar não especificada.

Todavia, a grande dificuldade encontra-se na concretização das situações que possam enformar o conceito «inexistência jurídica».

Como nota Vasco Lobo Xavier (Regime das deliberações sociais no Projecto de Código das Sociedades, in: Temas de direito comercial/Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Almedina, 1986, p. 15 e ss.), a maior parte dos exemplos colhidos na doutrina estrangeira como exemplos de deliberações inexistentes, tem hoje diferente tratamento entre nós, face ao regime consagrado no CSC, sendo enquadradas como deliberações nulas (a falta de convocação de assembleia, é sanável se que todos os sócios estiverem presentes ou representados) ou como deliberações anuláveis (a falta de quórum constitutivo conduzirá em princípio à anulabilidade da deliberação que se considere tomada, o mesmo valendo para a falta de quórum deliberativo se for revelado exteriormente algo que possa considerar-se uma deliberação positiva).

Este autor também tratou o tema em Anulação de deliberação social e deliberações conexas, cit., p. 196, nota 94, referindo-se a outros casos em que a doutrina e a jurisprudência se dividiram quanto à caracterização do vício da deliberação. Deliberação inexistente seria desde logo aquela em que não-sócios deliberam sobre assuntos da sociedade. Outros casos seriam mais duvidosos, mas a maior parte daqueles que a doutrina estrangeira tratava como exemplos de deliberações inexistentes tem hoje diferente tratamento entre nós, face ao regime consagrado no CSC. 

Assim: 
a) a falta de convocação de assembleia conduz à nulidade das deliberações tomadas na assembleia, a não ser que todos os sócios tenham estado presentes ou representados; 
b) a falta de quórum constitutivo conduzirá em princípio à anulabilidade da deliberação que se considere tomada, o mesmo valendo para a falta de quórum deliberativo se se revela exteriormente algo que possa considerar-se uma deliberação positiva (se nem sequer se revela exteriormente algo que se possa configurar como deliberação positiva, então a deliberação positiva não existe: cfr. Vasco Lobo Xavier, «Regime das deliberações sociais no Projecto de Código das Sociedades», Temas de direito comercial, Almedina, Coimbra, 1986, p. 16); 
c) quanto à falta de acta, o n.° 1 do art. 63.° do CSC parece revelar que não acarreta inexistência.

Também alguns arestos têm considerado que pode haver deliberações inexistentes juridicamente, secundando a doutrina que acolhe a inexistência como uma invalidade aposta a certas deliberações sociais, ainda que não haja unanimidade nesse entendimento.

Assim, e nomeadamente, pronunciaram-se sobre a inexistência jurídica o Ac. STJ, de 04-12-1996 «III. Deliberação inexistente é aquela a que falte o mínimo dos requisitos essenciais ou a que, nem na aparência, é adequada a vincular a sociedade.» e o Ac. TRP de 19-05-2010 «O direito societário comina a inexistência jurídica e não somente uma invalidade para as deliberações ditas por tomadas em assembleia-geral universal de sócios que não ocorreu afinal com a presença de todos eles, nem contou com o assentimento de todos a que tal conclave se constituísse e deliberasse sobre os assuntos referidos na acta (art. 54° do CSC», mas, em sentido oposto, o Ac. RP, de 19/05/2010 «I. O Código das Sociedades Comerciais não reconhece a inexistência jurídica enquanto categoria autónoma e distinta da nulidade ou da ineficácia stricto sensu das deliberações de sociedades comerciais, não constituindo, assim, vício passível de consubstanciar fundamento típico da impugnação das mesmas.»

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