Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

27 junho 2024

Art. 6º/5 DL 268/94, introduzido pela Lei nº 8/2022, de 10/01


O DL nº 268/94, de 25 de Outubro pretendeu, entre outros aspectos conseguir o “objectivo de procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros” (cfr. o seu preâmbulo).Na sua versão original, o artº 6º, sob a epígrafe “dívidas por encargos de condomínio”, tinha a seguinte redação:

1 - A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
2 - O administrador deve instaurar acção judicial destinada a cobrar as quantias referidas no número anterior.

A Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro, procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal e alterou determinados preceitos do Código Civil, bem como do DL nº 268/94. Em particular, alterou o art. 6º, nos seguintes termos:

1 - A acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio menciona o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações.
2 - A acta da reunião da assembleia de condóminos que reúna os requisitos indicados no nº 1 constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
3 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.
4 - O administrador deve instaurar acção judicial destinada a cobrar as quantias referidas no nº 1 e 3.
5 - A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.

Importa aqui atentar à interpretação do nº 5 deste art. 6º resultante desta alteração.

Alguma jurisprudência entende que o preceito impôs um novo pressuposto à cobrança judicial das dívidas por encargos de condomínio, ou seja, a acção só poderia ser intentada se o valor em dívida for igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais no respetivo ano civil. (1)

Começando pela letra da lei, o art. 6º constitui uma norma complexa, na medida em que estatui sobre matérias diversas, umas de índole substantiva, outras adjectivas. Assim:

● A epígrafe do preceito estabelece o âmbito, ou seja, regula sobre as dívidas por encargos de condomínio.
● O nº 2 confere força executiva à acta da reunião da assembleia de condóminos para efeitos de reagir contra o proprietário que deixar de pagar.
● No nº 1 estabelecem-se os requisitos para que essa acta tenha força executiva - a acta só constituirá título executivo se contiver o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações (condições de exequibilidade).
● No nº 3 refere-se que se consideram abrangidos pelo título executivo os juros de mora e as sanções pecuniárias. Contudo, também estabelece uma condicionante: os juros e sanções só integrarão o título executivo se (“desde que”) estiverem aprovados em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio.
● Depois, no nº 4 impõe-se um comando ao administrador – é ele quem tem de instaurar a acção judicial para cobrar as quantias em dívida.
● Por fim, no nº 5 refere-se que essa acção judicial deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.

Daqui decorre que: (i) a acção judicial tem de ser instaurada no prazo de 90 dias a seguir ao primeiro incumprimento; (ii) só não o será se a assembleia tiver deliberado em contrário; (iii) a acção judicial só terá de ser instaurada nos 90 dias no caso em que o valor em dívida tenha já um montante igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil.

Duas hipóteses se podem prefigurar:

i. a limitação do valor em dívida reporta-se à obrigação do administrador em instaurar a acção;
ii. a limitação do valor em dívida reporta-se à exequibilidade do título.

Em nosso entender, estamos perante a 1ª hipótese. A estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais pretende referir-se à responsabilidade do administrador em propor a acção, e não às condições de exequibilidade do título.

Em termos gramaticais, o nº 5 do art. 6º constitui uma oração subordinada adverbial condicional que, como se sabe, exprime condição ou uma hipótese.(2)

Assim, a oração subordinada (“desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil”) tem de ser perspetivada em função da oração subordinante (“A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino”).

Não faria sentido que esta oração subordinada do final do nº 5 estivesse a completar o sentido de uma outra oração (subordinante), designadamente das contempladas nos números 2 e 3 do preceito que são as que se referem à força executiva do título.

Cremos que esta interpretação é também a que melhor se enquadra no elemento sistemático de interpretação.

A Lei nº 8/2022 procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal olhando-a como um todo, pelo que além do DL nº 268/94, alterou também preceitos do Código Civil (CC) e do Código do Notariado.

No que toca às funções do administrador do condomínio foram introduzidas inovações em termos de maior responsabilização.

Assim, nos termos da actual redacção do art. 1436º do CC, compete ao administrador exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas, incluindo os juros legais devidos e as sanções pecuniárias fixadas pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia (nº 1 al. f).

E, no nº 3 desse preceito, ficou expressamente consignado que o administrador de condomínio que não cumprir as funções que lhe são cometidas neste artigo, (…) é civilmente responsável pela sua omissão, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, se aplicável.

Certamente que o legislador não desconhece que existem quotas mensais de condomínio de valor que se pode considerar “irrisório” (dívidas de pequeno valor), pelo que a posição dos administradores ficaria gravemente comprometida se tivessem de instaurar acções judiciais por todas e quaisquer quotas, independentemente do seu valor mensal, sob pena de incorrerem em responsabilidade civil. Além dos congestionamentos que uma tal imposição provocaria nos tribunais.(3)

Nessa medida, a estipulação do valor em dívida por referência ao valor do indexante dos apoios sociais funciona como uma limitação da obrigação imposta ao administrador em intentar acção de cobrança das dívidas.

Ou, noutra perspetiva, como uma delimitação da responsabilidade: o administrador só incorre em responsabilidade civil por omissão no caso de o valor das quotas em dívida igualar ou for superior ao indexante de cada ano civil.

Face ao exposto, conclui-se que tem existido erro na interpretação da lei.

Notas:

(1) Em 2024 é de 509,26€.
(2) «As conjunções subordinativas estabelecem uma relação de dependência entre duas orações, uma subordinante e uma subordinada, tendo esta última a função de completar o sentido da primeira (a subordinada depende da subordinante e, regra geral, pode ser anteposta)», podendo ser causais, temporais, condicionais, etc. - in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
(3) Pode ler-se na exposição de motivos do Projeto de Lei nº 718/XIV/2.ª, que deu origem à Lei nº 8/2022: «São evidentes as crescentes exigências que se apresentam a quem vive, trabalha ou simplesmente é proprietário de fracções autónomas em prédios em regime de propriedade horizontal, bem como as idênticas exigências que se colocam a quem, pessoa singular ou coletiva, tem a seu cargo a administração dos respetivos condomínios. Muitos dos condomínios apresentam um elevado número de fracções, o que, só por si, torna mais complexa a administração das partes comuns e, consequentemente, as deliberações acerca dos encargos de conservação e fruição que devem ser pagas por todos os condóminos. Tal realidade contribui, muitas vezes, para a criação de inúmeros obstáculos para quem administra os condomínios, o que, consequentemente, potencia o atraso nas decisões e, por isso, a deterioração dos prédios, acarretando prejuízo para todos os condóminos, nomeadamente prejuízos inerentes ao acréscimo de despesas futuras na recuperação dos mesmos. (…) Depois, o presente Projeto-Lei introduz mecanismos facilitadores da convivência em propriedade horizontal, nomeadamente agilizando procedimentos de cobrança, os quais a administração do condomínio pode e deve concretizar no sentido de responder às necessidades dos condóminos, de forma mais célere e eficaz.
Pretende-se também conferir um maior grau de responsabilidade, por um lado, aos próprios condóminos e, por outro lado, a quem administra o condomínio.
O diploma pretende ainda contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, os requisitos de exequibilidade da ata da assembleia de condóminos, a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e encargos devidos pelos condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas, colocando fim, neste último aspeto, à vasta e sobejamente conhecida discussão acerca das características de tais obrigações.

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