Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

1/10/2024

Alterações ao regime da PH - art. 1424º e 1424-A - III


4. A NOVIDADE DO ARTIGO 1424º-A, Nº 1 E 2 
 
Nos termos do art. 1424º-A/1 do CC, actualmente a escritura ou o documento particular autenticado de alineação da fracção tem de ser instruída com a declaração emitida pelo administrador da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio, em vigor relativamente à fracção, com especificação da sua natureza, respectivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respectiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento (28). 
 
De acordo com o nº 2 do citado artigo, o alienante antes da alienação terá de requerer ao administrador a dita declaração, que este emitirá no prazo máximo de 10 dias, e que será um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fracção em causa (salvo o disposto no nº 3). Esta declaração, por um lado terá de descrever todas as obrigações inerentes ao condomínio no que concerne aos encargos e por outro lado terá de conter as obrigações reais vencidas e não vencidas. 
 
Pretendeu assim, o legislador com esta imposição assegurar que o adquirente tome conhecimento das suas obrigações, enquanto condómino. Preocupante parece-nos o constante do art. 1424º-A/3 do CC que consigna que será civilmente responsável o administrador de condomínio se não emitir a declaração, não a emitir a atempadamente, ou não a emitir de forma exacta e completa. Na verdade, a imposição desta obrigação e as consequências advenientes do seu incumprimento, farão com que muitos condóminos venham a recusar assumir o cargo de administrador, com receio de não conseguirem cumprir de forma adequada a sua obrigação e incorrerem em litígios judiciais indesejáveis. 
 
Julgamos que, sendo o negócio realizado entre o alienante e o adquirente da fracção, deveria ser o alienante, ao abrigo do princípio da boa-fé, a fornecer as informações constantes da dita declaração e não o administrador, que não é sequer um dos contratantes. Por outro lado, esta solução legal provocará uma crescente profissionalização da administração de condomínio, que penalizará os pequenos edifícios, com encargos crescentes. 
 
Tal como anteriormente se referiu, é responsável pelo pagamento das dividas, o proprietário da fracção no momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, mas de forma surpreendente, o art. 1424º-A/3 estabelece que se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fracção, que prescinde da declaração do administrador, aceitará, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor para com o condomínio. 
 
Temos dificuldade em aceitar esta solução como equilibrada e correcta. Isto significa que na sequência de tal declaração, o adquirente irá assumir a responsabilidade pelo pagamento de serviços e despesas dos quais não beneficiou, nem irá beneficiar (29). 
 
Para além disso, o regime do direito das obrigações em geral, particularmente quanto à transmissão singular de dívidas - art. 595º e ss. do CC (assunção de dívida) que exige a intervenção do credor ratificando ou intervindo contratualmente - é aqui preterido, sendo uma alteração que retira coerência e unidade ao sistema jurídico. 
 
5. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 6º, Nº 5 DO DL 268/94 ALTERADO PELA LEI 8/2022 
 
O artigo 6º nº 5 do DL 268/94 com a redacção que lhe foi dada pela lei 8/2022 de 10 de Janeiro pretende “obrigar” o administrador a cobrar os créditos do condomínio, fixando-lhe para tal um prazo de 90 dias, a partir do primeiro incumprimento. No entanto, mais uma vez, a sua redacção não nos parece a mais feliz, levantando-se dúvidas interpretativas, senão vejamos: consta do referido nº 5 que “A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil”. 
 
Ora, o legislador pretende impor duas condições cumulativas para que o administrador não tenha de interpor a acção, nomeadamente a existência deliberação e estar perante dívidas de pequeno valor. A exigência de duas condições cumulativas parece resultar da utilização do “e”? Ou pelo contrário, basta estarmos perante uma dívida de pequeno montante para o administrador não esteja obrigado a intentar a acção? De igual forma, se existir apenas a deliberação da Assembleia já não será o administrador obrigado a intentar acção, independentemente do valor do crédito? 
 
Na verdade, parece que o legislador terá tido a intenção de obrigar o administrador a intentar acção judicial no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento, sem necessidade de qualquer autorização da Assembleia, quando que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil. 
 
O administrador só não estará obrigado a fazê-lo quando a Assembleia deliberar no sentido da não cobrança judicial. Assim o refere Márcia Passos, uma das autoras do Projecto de Lei 718/XIV/2 (30). Se esta foi a intenção de legislador parece-nos que a redacção do nº 5 do art. 6º do DL 268/94 deveria ter sido outra, pelo que deveria ter constado: A acção judicial referida no número anterior deve ser instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento do condómino, desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, salvo deliberação em contrário da assembleia de condóminos. 
 
Em conclusão se dirá que, a interpretação do pensamento legislativo que parece mais adequada, será no sentido de que:
 - Se o administrador se deparar com um primeiro incumprimento superior a 90 dias, de valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, não está obrigado a intentar acção judicial; 
- Estando perante valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, só poderá intentar a competente acção se a assembleia deliberar nesse sentido, conferindo-lhe poderes para o efeito. 
- Se a dívida for superior ao valor indexante de apoios sociais do respectivo ano civil e se o primeiro incumprimento do condómino for superior a 90 dias, não só o administrador não necessita de deliberação ou autorização, como estará obrigado a intentar acção (salvo deliberação da Assembleia no sentido da não cobrança).

6. CONCLUSÃO 
 
Da análise que fizemos às alterações introduzidas nas normas referidas, cumpre salientar em conclusão que não nos parece necessária, nem feliz a alteração efectuada ao art. 1424º/1 do CC tanto mais que esta norma já definia quem era o responsável pelo pagamento das despesas condominiais, embora não o fizesse em caso de alienação. 
 
Acresce que, a redacção constante do art. 1424º/1 do CC, encontra-se em contradição com os nº 3 e 4 do art. 1424-A, o que veio provocar dúvidas quanto à sua interpretação, que poderão fomentar a litigiosidade dentro e fora dos tribunais. Não podemos afirmar que o nº 1 do art. 1424º estabelece a regra, e que o nº 3 e 4 do art. 1424º-A, contêm uma excepção, uma vez que o art. 1424º/1 do CC e o art. 1424º-A nº 3 e 4 tratam agora da mesma questão de saber quem será o responsável pelo pagamento das dívidas ao condomínio, em caso de alienação. 
 
De qualquer forma, o art. 1424º-A do CC vem estabelecer que a responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas (nº 3) e os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fracção, são da responsabilidade do novo proprietário (nº 4). 
 
Neste sentido, em caso de alienação da fracção, resulta que o adquirente só será responsável pelo pagamento das dividas condominiais que se vençam após a sua aquisição. Foi assim abandonada a doutrina e a jurisprudência dominante que efectuavam uma análise casuística tendo em atenção a clássica relação entre a obrigação de cumprimento e o gozo da coisa, o que permitia uma solução justa e equilibrada. No entanto, em abono da verdade, a solução legal ao terminar com a análise casuística permite uma maior segurança e certeza na aplicação do direito. 
 
O constante do art. 1424º-A/3 do CC consigna que será civilmente responsável o administrador de condomínio se não emitir a declaração, não a emitir atempadamente, ou se a emitir de forma inexacta e incompleta. A imposição desta obrigação e as consequências advenientes do seu incumprimento, farão com que muitos condóminos venham a recusar assumir o cargo de administrador, provocando uma maior profissionalização da administração de condomínio e um aumento de despesa para os condóminos. 
 
É responsável pelo pagamento das dividas, o proprietário da fracção no momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, mas o art. 1424º-A/3 estabelece que se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fracção, que prescinde da declaração do administrador, aceitará, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio. 
 
Temos dificuldade em aceitar esta solução como equilibrada e correcta. Isto significa que o adquirente irá suportar o pagamento de serviços e despesas dos quais não beneficiou, nem irá beneficiar. Acresce que a punição sofrida pelo facto de não ter pedido uma declaração – suportar o pagamento de dívida alheia - não se mostra adequada, nem razoável. No que diz respeito ao art. 6º, nº 5 do DL 268/94 com a redacção que lhe foi dada pela Lei 8/2022, podemos concluir que se administrador se deparar com um primeiro incumprimento superior a 90 dias, de valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, não está obrigado a intentar acção judicial. 
 
Por outro lado, estando perante valor inferior ao valor do indexante dos apoios sociais do respectivo ano civil, só poderá intentar a competente acção se a assembleia deliberar nesse sentido, conferindo-lhe poderes para o efeito. Por fim, como já se referiu, se a dívida for superior ao valor do indexante de apoios sociais do respectivo ano civil e se o primeiro incumprimento do condómino for superior a 90 dias, não só o administrador não necessita de deliberação ou autorização, como estará obrigado a intentar acção (salvo deliberação da Assembleia no sentido da não cobrança).
 
Notas:

28 Em consonância foi alterado o Código do Notariado - art. 54º/3:” Os instrumentos pelos quais se partilhem ou transmitam direitos sobre prédios, ou se contraiam encargos sobre eles, não podem ser lavrados sem que se faça referência à declaração prevista no nº 2 do art. 1424º-A do CC, sem prejuízo do disposto no nº 3 do mesmo artigo.” 
29 Veja-se a este propósito, Margarida Costa Andrade na exposição de 4/5/2022, efectuada online, denominada “Alterações ao regime da propriedade horizontal – Lei 8/2022 de 10 de janeiro” acedida em 5/9/2022 em https://www.youtube.com/watch?v=prBpoywiLmY
30 Assim o refere Márcia Passos, uma das autoras do Projecto de Lei 718/XIV/2 - https://observatorio.almedina.net/ index.php/2022/01/13/propriedade-horizontal-resumo-das-alteracoes-ao-regime-lei-n-o-8-2022-10-01/. Consultado em12/05/2022

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