Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

02 julho 2025

O conceito de pluralidade de seguros

Princípios gerais convocados pelo instituto 

Ao começar a identificação do conceito de pluralidade de seguros e do seu conteúdo, devem chamar-se à colação os princípios que definem, ainda em traço grosso, os respectivos contornos. Em geral, pode dizer-se que não são princípios exclusivos desta área do direito mas verdadeiros princípios genéricos de direito privado que, todavia, neste ramo, pelas características do mesmo, ganham matizes próprias, que de seguida se procurarão apresentar. A ordem por que serão apresentados respeita a relevância que aos mesmos se atribui para a disciplina do tema tratado.

Princípio indemnizatório 

Trata-se de um princípio comum a todos os regimes de contrato de seguro, que está expressamente consagrado na secção III da LCS, no capítulo relativo a seguro de danos, art. 128º e ss. Em síntese, estabelece uma limitação das prestações do segurador ao montante dos danos sofridos pelo lesado e ao valor do capital seguro. É um princípio estruturante de todo o direito de seguros, decorrendo directamente da sua função no sistema jurídico e que traduz, sobretudo, a recíproca transferência e assunção de riscos diversos da vida social, do comum dos sujeitos de direito, particulares ou empresas, para entidades especialmente vocacionadas para tal fim, as sociedades seguradoras (1). 

Neste prisma, repescando o que se disse antes, o princípio indemnizatório, elemento estruturante das regras de responsabilidade civil, tem na área de direito dos seguros uma conformação própria (2). Sabe-se que a responsabilidade civil no nosso ordenamento jurídico tem função meramente ressarcitória, não havendo uma função sancionatória natural nos mecanismos de ressarcimento de danos (3). 



A particularidade do princípio indemnizatório em direito de seguros é a que decorre precisamente da função primacial desta área de direito no conjunto do ordenamento jurídico. O direito de seguros, se reduzido à expressão mínima e excluindo aquilo que se possa qualificar de regulação de seguros financeiros de capitalização, traduz a regulação dos mecanismos de transferência onerosa de riscos da vida em sociedade para entidades especializadas, que garantem concretização de indemnização aos beneficiários, desonerando, ou não, consoante os casos, os responsáveis diretos pelos eventos lesivos, se os houver. Isto é, em síntese, podemos afirmar que a primeira e básica função do direito de seguros, no conjunto do ordenamento jurídico e, mais vastamente, da própria organização social, é de garantir a beneficiários, tomadores ou não nos contratos, que, caso sofram prejuízos contratualmente previstos, serão efetivamente ressarcidos, verificada a ocorrência de determinado evento lesivo. 

Este princípio indemnizatório constitui, assim, o que se pode qualificar de verdadeiro tronco central do direito de seguros. A transferência de riscos na ordem jurídica para entidades especializadas é onerosa, sendo a garantia de ressarcimento de danos a correspetiva prestação da empresa seguradora.

O princípio indemnizatório nesta área implica uma imputação de segundo grau da obrigação de indemnizar um dano (da esfera de quem o sofreu para a esfera do responsável e da esfera deste para a esfera da seguradora) (4). A disciplina da pluralidade de seguros será um dos diversos corolários desse princípio indemnizatório, como será também, por exemplo, a disciplina do sobresseguro. 

Partindo desta base, pode chamar-se à colação, a este propósito, uma primeira definição, ainda muito imprecisa, do que deve entender-se por pluralidade de seguros. Pluralidade de seguros referir-se-á a situações em que o mesmo evento danoso esteja previsto, seja regulado e o seu ressarcimento seja estabelecido em mais que um contrato de seguro. O princípio indemnizatório, aplicado a esta área dogmática do estudo do contrato de seguro, imporá que a indemnização adveniente das regras dos diversos contratos de seguro nunca possa exceder, em conjunto, o valor global dos danos sofridos pelo lesado e também, claro, o valor dos capitais seguros. 

Quer isto dizer, por outro lado, que pelas regras do nosso ordenamento, não é admissível enriquecimento do património de lesados ou beneficiários por via de contrato de seguro, seja este um único, seja em situação, como a que se estuda, de dois ou mais contratos preverem ocorrência de um mesmo evento lesivo. 

Desoneração da seguradora em caso de contratação plural fraudulenta Pode fazer-se uma autonomização conceptual deste princípio, que não é uma mera decorrência do princípio indemnizatório antes referido. 

O corolário lógico do princípio indemnizatório em situação de pluralidade de seguros, no caso de ocorrer evento lesivo em que o valor das indemnizações contratadas exceda o valor dos danos, será a desoneração proporcional da obrigação das seguradoras. Nos casos, porém, em que seja possível estabelecer que o tomador dos contratos de seguros, ao segurar, procurou enriquecer o seu património por via de execução fraudulenta de contratos de seguro plurais, a sanção legalmente imposta não se atém à desoneração proporcional da responsabilidade das diversas seguradoras mas a desoneração total da responsabilidade de todas. 

Quer isto dizer, o legislador não se limita, nesta matéria, a consagrar o princípio indemnizatório. O regime da pluralidade de seguros, ao estabelecer verdadeira sanção de desoneração da responsabilidade dos seguradores, em caso de contratação e tentativa de perceção de prestações de forma fraudulenta por tomador ou segurado, permite identificar um princípio sancionatório autónomo (5). Bem se percebe, aliás, que assim seja. 

De entre as fraudes relativas a seguros configuráveis, a que decorra de contratação plural de seguros, máxime com falsas declarações quanto a tal circunstância, será uma situação facilmente prefigurável e merecedora de tutela. Sabendo-se, a priori, que existe uma especial propensão a fraude nesta área de ordenamento civil, atenta a circunstância de um dos contratantes ser entidade economicamente forte e, por outro lado, sendo a possibilidade de fraude por contratação plural especialmente patente, não bastaria, para uma adequada regulação, na perspetival, que se reputa correcta, do legislador, meramente consagrar o princípio indemnizatório. Se assim fosse, i.e., se se tratasse de mera consagração de princípio indemnizatório, a dissuasão da fraude, que é claramente pretendida pelo legislador, não seria conseguida. 

O beneficiário que tentasse fraude por contratação plural, na pior das hipóteses, veria o seu crédito indemnizatório ser reduzido aos danos. Com a consagração deste princípio de desoneração em casos de contratação plural fraudulenta, existe instituição de um verdadeiro critério dissuasor da fraude que merece autonomização. Isto é, a posição do tomador de seguro, beneficiário ou não, apenas é merecedora de tutela, na perspetiva do legislador, quando a contratação plural de seguros que concretize tenha por estrita finalidade garantir, ou reforçar a garantia, de ressarcimento integral de danos ou, pelo menos, quando não se concretize de má-fé. 

Autonomia privada no regime de pluralidade de seguros 

A autonomia privada, em geral, entendida como permissão genérica de produção de todos os efeitos jurídicos não proibidos (6) decorre, antes de mais, da ampla capacidade jurídica de todos os sujeitos (art. 67º do CC) e, mais especificamente, a liberdade contratual, como estatuída pelo art. 405º do CC, é um dos pilares do direito civil e, por consequência, encontra-se genericamente garantida na área de direito dos seguros, pelo art. 11º da LCS7. É um princípio operante e dominante no que concerne à contratação plural de seguros, garantindo, desde logo, validade e eficácia a dois ou mais contratos com idêntico objecto. 

Sabendo-se que a conformação do princípio da autonomia privada é, em larga medida, obra do legislador e não se podendo dizer que constituísse entorse inadmissível ao mesmo a consagração da regra oposta, i.e., a proibição de contratação plural de contratos para um mesmo evento, não deixa de merecer referência esta opção legal de alargar a área de liberdade de cidadãos e empresas nesta matéria. É, assim, válida a celebração de mais que um seguro com o mesmo objeto contratual. 

Por outro lado, este princípio de relevância da autonomia privada, nesta área da pluralidade de seguros, também encontra consagração clara na supletividade das regras de repartição das prestações entre os diversos seguradores (art. 133º n.º4 da LCS). Quer isto dizer que o legislador não só permite validamente celebrar mais que um contrato para cobrir o mesmo evento, como permite que a repartição de responsabilidade das seguradoras entre contratos seja livremente estipulada. 

Supletivamente disciplina as regras de repartição no caso de as partes o não fazerem, mas não retira às partes de cada contrato o direito de, querendo, o estabelecerem. Importa atentar que esta eventual convenção em contrário na repartição de ressarcimento de danos entre seguradores, na proporção que cada um teria que pagar se existisse um contrato único, constitui uma verdadeira desqualificação dogmático-conceptual da pluralidade de seguros em sentido próprio. 

Essa convenção, na prática, converte o seguro plural em seguro complementar ou seguro subsidiário, consoante o acordo assente no funcionamento cumulativo ou alternativo de dois contratos de seguro, ante a verificação de danos com a extensão que as partes previrem em cada contrato. É evidente, assim, que esta convenção em contrário é a convenção entre tomador e segurador em cada um dos contratos e não, portanto, convenção entre seguradoras, caso em que a situação se converteria em cosseguro. 

Nesse caso deveria tal acordo ser taxado de inválido, por dever entender-se que as normas do art. 62º e 63º impõem, no regime nacional, que o cosseguro seja operado com um único contrato. 

Imperatividade relativa no regime de pluralidade 

A despeito do que se disse antes sobre autonomia privada, deve relevar-se, também a este propósito, o princípio estatuído no art. 13º n.º1 da LCS. Estabelece este preceito, ao nível da regulação geral do contrato de seguro, que as regras deste regime são imperativas para a seguradora mas não para o segurado, i.e. não admitem qualquer derrogação mais favorável ao segurador, admitindo-a, por outro lado, a favor do tomador. Isto é, procurando sintetizar, vigora a autonomia privada mas, na medida em que o regime consagra direitos ou vantagens aos segurados, não podem as regras deste regime ser derrogadas a favor da seguradora. 

Tal impossibilidade de derrogação contratual manifesta-se, desde logo, na impossibilidade de, por via contratual, impedir a mera possibilidade de contratação de outros seguros com o mesmo objeto. Salvaguardas as supra referidas situações de fraude do segurado, é ilícita limitação desse tipo, se introduzida em cláusula contratual, por contender com a referência expressa ao regime de pluralidade de seguros (art. 133º da LCS) feita pelo art. 13º. 

Em qualquer caso, mesmo sem essa referência expressa, sempre deveria entender-se que uma cláusula contratual de impossibilidade de contratação de idêntico seguro sempre contenderia com o princípio de imperatividade relativa, por ter cariz vantajoso para tomador e segurado esta previsão. De facto, tal natureza vantajosa da permissão de contratação plural parece impor-se como conclusão, por constituir, na perspetiva do tomador, um reforço da garantia de ressarcimento. É questão a que se voltará mais detidamente à frente a propósito de cláusulas limitativas de responsabilidade em situação de pluralidade.

Notas:

1 Cfr., a propósito, ENGRÁCIA ANTUNES, O contrato de seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, jul. Set. e out. Dez. 2009, p. 816 a 818.
2 Sobre fundamento geral da responsabilidade civil, em geral, cfr. Carlos Alberto da MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra ed., 1996, p. 114-117, Pedro PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 17-20. 
3 Sobre responsabilidade civil no ordenamento nacional, seus fundamentos e estruturação, cfr. António MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina 2014, p. 429 a 589 (responsabilidade delitual) e 591 a 747 (responsabilidade pelo risco); João ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina 2000, p. 518 a 715, Inocêncio GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7ª ed., Coimbra ed., 2014, p. 208 a 218 e José ALBERTO GONZALEZ, Responsabilidade Civil, Quid Juris, Lisboa, 2013.
A propósito, sobre responsabilidade civil, diz MENEZES CORDEIRO que esta é a ocorrência jurídica na qual um dano registado numa esfera é imputado a outra, através da obrigação de indemnizar – Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, T. I, Almedina 2009, p. 421. 
5 Cfr., a propósito, Antonio LA TORRE, (coord.), Le Assicurazione, Giuffré Editore, Milão, 2007, p. 186. 
6 José Manuel SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Almedina, Coimbra, 2003, p. 439. 7 Sobre autonomia privada, por todos, cfr. HEINRICH EWALD HÖRSTER A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p. 52 a 57, cfr. também p. 60 e seguintes sobre limitações à liberdade e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 15 e 16. 

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