Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

08 julho 2025

Art. 1346º comentado

O art. 1346º do CC tem em vista as emissões de gazes, vapores (...) com carácter de continuidade ou, pelo menos, periodicidade que tenham a sua fonte em determinado prédio e perturbem a utilização normal do prédio vizinho.

Antunes Varela dá tal interpretação apoiando-se em Enneccenes - Wolff, Tratado de Derecho Civil, trad. espanhola, volume III, 1, parágrafo 53, páginas 314 e seguintes, sendo certo que o sentido dado por Martin Wolff ao parágrafo 906 corresponde à interpretação que se dá ao artigo 1346, pois diz:

I. Em certos casos permite-se a produção de gazes, vapores, cheiros, resíduos... que procede de uma coisa e se propaga a outrém (os chamados imponderáveis).
II. a penetração dos imponderáveis noutra coisa permite-se só numa medida limitada.
1) uma penetração que não produza dano algum ou não produza "prejuízo essencial" para a utilização da coisa.
2) Permite-se inclusivamente os danos essenciais se resulta utilizar-se a coisa em forma corrente segundo os usos locais" (Martin Wolff, Derecho de cosas, 10 revision por Martin Wolff e Ludwig Laiser, páginas 350 a 352).


Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1972, o Código Civil de 1867 não se referia às emissões (ou imissões, se atendermos ao prédio atingido). Os problemas que se suscitavam neste domínio eram resolvidos pelos princípios gerais que regulavam o direito de propriedade.

Citava-se o art. 2170º e invocavam-se os preceitos dos art. 14º, 15º e 16º do mesmo Código (cfr. Ac. do STJ de 6/5/69, in Bol. do Min. da Just. nº 187, pág. 121), além de regulamentos e posturas municipais.

Porém, os códigos mais modernos, elaborados já num período de grande incremento da indústria, e de consequente agravamento dos inconvenientes de algumas instalações fabris para a saúde, repouso e bem-estar das pessoas, regularam esta matéria.

Foi o que sucedeu com o Código alemão (§ 906º), com o Código italiano de 1942 (art. 844º), com o Código suíço (art. 684º) e com o Código brasileiro (art. 554º). Mas foi especialmente a disposição do § 906º do Código alemão que inspirou a nossa lei, pelo que, a doutrina do art. 1346º é, fundamentalmente, a doutrina alemã.

Refere-se este preceito à «emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidação e outros quaisquer factos semelhantes».

A enumeração é, como resulta do próprio texto, meramente exemplificativa. No entanto, só estão sujeitos ao regime fixado, como nota o Dr. Henrique Mesquita (Direito Reais, lições dactilog. nº 33), «as emissões de elementos que tenham natureza incorpórea (vapor, ruídos, correntes eléctricas, raios luminosos) e as de elementos corpóreos de tamanho ínfimo (fuligem, poeira, cinza, etc.).

Às emissões de outros corpos sólidos (v.g. fragmentos de granito provenientes de pedreira em exploração) ou líquidos poderão sempre os proprietários opor-se (cfr. Ennenccerus-Wolff, Direito das coisas, I-II, § 53º, 1).

E acrescenta o mesmo autor, em nota: «Há-de tratar-se sempre, no entanto, de elementos de natureza material ou física. À influência ou reflexos de natureza diversa provindos de determinado prédio não se aplica o preceito do art. 1346º (assim, o proprietário de um prédio urbano não poderá reagir contra o facto de no prédio vizinho funcionar um clube de dança, ou uma piscina ao ar livre, ainda que isso afecte substancialmente o seu imóvel - tornando, por exemplo, mais difícil o respectivo arrendamento ou a venda a pessoa com certa formação moral).

Cita-se, neste sentido, Eichler. Parece ser exacta a doutrina. Todavia, ela não tem sido bem aceite em Itália ( onde a jurisprudência tem considerado como imissão proibida a existência de uma casa de tolerância na propximidade de uma casa de habitação), embora se reconheça aí ser duvidosa a base jurídica da solução oposta (cfr. De Martino, art. 844º, 3).

Não deixa de ser interessante atender a que, no nosso direito, certas disposições especiais, como a da al. b) do nº 2 do art. 1322º, proibindo aos condóminos destinar a sua fracção a usos ofensivos dos bons costumes, partem da inexistência de uma regra geral de direito civil (podem existir providências de polícia), que permita ao vizinho fazer, como tal, oposição a esses usos.

Na secção relativa aos direitos de personalidade não ficou nenhuma disposição que possa servir de fundamento a um alargamento da reacção do proprietário contra inconvenientes que não atinjam directamente o uso ou fruição do imóvel.

Devem as emanações provir, diz a lei, de prédio vizinho.

Para o Dr. Henrique Mesquita, esta expressão é equivalente à de prédio alheio. Temos muitas dúvidas de que assim seja. Prédio vizinho é normalmente o prédio contíguo, como se vê do significado com que é empregada essa expressão em numerosíssimos artigos (cfr. art. 1347º, 1348º, 1350º, 1360º, 1362º, 1363º, 1365º, 1366º, 1557º e 1558º).

A expressão prédio alheio apareceu já no art. 1349º, quando se não tem em vista qualquer relação de contiguidade entre prédios. Por outro lado, tratando-se de uma restrição grave ao direito de propriedade, ela não deve ser admitida senão em limites apertados. Por último, a não se entender restritivamente a lei, ficaria ela sem conteúdo certo, pois não poderá saber-se onde acabam as relações de vizinhança relevantes. Por exemplo, os cheiros desagradáveis duma fábrica de celulose podem atingir quilómetros. Onde acabam os vizinhos?

Para que seja fundada a oposição, exige o art. 1346º que se verifique um destes dois casos: que as emissões importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou que não resultem da utilização normal do prédio de que emanam. Não se exige a verificação conjunta dos dois requisitos. Basta que ocorra um deles, pois que funcionam em alternativa. Se houver um prejuízo substancial para o prédio vizinho, pouco importa que as emissões resultem da utilização normal do prédio donde emanam. E se não corresponderem à utilização normal deste, pouco adianta também que o prejuízo causado pelas emissões não seja substancial.

Exigindo-se um prejuízo substancial, põem-se de lado as emissões que produzam um dano não substancial. O prejuízo deve ser apreciado, além disso, objectivamente, atendendo-se à natureza e finalidade do prédio, e não segundo a sensibilidade do dono. É esta a doutrina de Wolff, que acrescenta: «O que não produz dano a uma fábrica, pode prejudicar uma habitação; o que é licito em relação a uma vivenda, pode não o ser em relação a um hospital. É também indiferente que o facto causador do prejuízo seja ou não anterior ao destino dado ao prédio vizinho: se um edifício se transforma em clinica, o seu proprietário pode impedir daí por diante as emissões até então inofensivas, que se tenham produzido durante muitos anos, salvo se tais emissões forem usuais na localidade (cfr., no mesmo sentido, Dr. Henrique Mesquita).

Pelo próprio texto da lei e pela análise atenta dos dois requisitos de que depende, disjuntivamente, a possibilidade de oposição por parte do proprietário, é fácil concluir que esta solução, assente em pressupostos objectivos, pouco ou nada tem de comum com os actos emulativos, de raiz subjectiva, a que se referia o direito medieval.

O segundo caso é o de as emissões não resultarem da utilização normal do prédio de que emanam. A lei utilizou neste ponto o critério dos jurisconsultos romanos que atendiam de facto ao exercício normal da propriedade, e não o do Código italiano (art. 844º), que apela para os limites da tolerabilidade normal do proprietário do prédio vizinho.

O uso normal do prédio depende do seu destino económico, que deve ser também apreciado objectivamente, e em relação a cada caso. Não manda a nossa lei atender, como a alemã e a italiana, às circunstâncias locais ou às condições do lugar. Mas é seguro que a utilização normal dum prédio depende sempre, em alguma medida, das condições e dos usos locais. Numa localidade, por exemplo, onde são correntes as indústrias caseiras, não deve poder o ruído provocado pelo trabalho fundamentar, sem mais, a oposição. Por isso, escreve Wolff, «a medida e a classe dos males consentidos são, pois, diferentes no centro duma capital, num bairro fabril, numa povoação, ou numa aldeia». 

Estabelece o Código alemão, na disposição que nos serviu de fonte, que a condução especial duma emissão para um prédio vizinho nunca é permitida. A nossa lei não formula expressamente tal doutrina, mas cremos que ela se impõe. O que a lei prevê são as emissões que seguem um curso natural. Estas é que estão sujeitas ao regime e aos limites do art. 1346º. Sendo a emissão dirigida para um certo prédio, há um dano provocado, e esse dano está sujeito ao regime geral da responsabilidade civil (neste sentido, Dr. Henrique Mesquita).

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