Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

03 julho 2025

Natureza jurídica do sótão


A este respeito, o Tribunal da Relação de Lisboa (proc. nº 257/13.7T2MFR.L1-7 de 26/4/2017) raciocinou nos seguintes termos: 

«Não se subsumindo os espaços existentes entre o pavimento que serve de teto ao último piso e o telhado, a qualquer um dos elementos estruturais da edificação que ao abrigo do n.º 1 do preceito em último lugar referido são imperativamente comuns7, e não constando os mesmos da descrição de cada uma das fração autónomas da titularidade dos aqui demandados – como ressuma evidente do julgamento de facto -, nem sequer a título de afetação exclusiva do respetivo uso, então há que presumir que os referidos espaços se constituem como partes comuns, da titularidade do conjunto dos condóminos e, portanto, para uso comum de todos – cf. artigos 1421.º, n.º 2, alínea e) e 1420.º, ambos do Cód. Civil.

Isto porque pese embora o adquirido de 11. a 14. do julgamento de facto, a verdade é que não se pode escamotear o que deriva do ponto 10. do mesmo local da presente. A existência da porta aí referida, na localização melhor descrita e cuja destinação é somente, permitir o acesso ao que existe por cima das frações dos RR., a saber o desvão em apreciação, mais a mais sem qualquer indício de que semelhante porta foi ali colocada ou aberta em momento posterior à construção do prédio dos autos, não permite considerar evidente, antes pelo contrário, que o desvão do sótão se destina à exclusiva utilização pelos condóminos proprietários das frações da titularidade dos RR..

Na verdade, a existência de um acesso exterior, localizado numa parte comum do edifício e portanto acessível a qualquer condómino, arreda a ponderação de uma exclusiva afetação material e objetiva do desvão aos aqui RR., já que franqueado fica o acesso ao sótão sem qualquer necessidade de a utilização dos alçapões existentes nas frações em causa.

Donde, repisa-se, a conjugação da factualidade adquirida nos autos não permite valoração que sustente a conclusão de que os espaços de sótão a ocupados pelos RR. apenas são passiveis de objetiva e exclusivamente servir os condóminos titulares das frações autónomas que se situam imediatamente abaixo.

Toda a argumentação acima expendida foi-o com base na posição doutrinal e jurisprudencial acima já referida e segundo a qual a ilisão da presunção constante na alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º do Cód. Civil é possível ainda que semelhante afetação exclusiva não conste do título constitutivo ou em qualquer sua alteração válida, sendo certo que se adotasse posição mais restritiva, a saber, aquela que pugna por só ser atendível se constar na magna carta 10 da propriedade horizontal, por maioria de razão dever-se-ia concluir pela natureza comum do sótão em questão.

Pelo exposto, dúvidas não sobejam quanto ao facto de os espaços em apreço serem da titularidade do conjunto dos condóminos, nos termos da compropriedade especial a que se encontram adstritos as partes comuns no âmbito do direito real da propriedade horizontal.»

 


A análise havida efectuada no Acórdão do sobredito tribunal não merece qualquer reparo neste circunspecto, porquanto, o sótão é uma parte presuntivamente comum nos termos do art. 1421º, nº 2, do CC, conforme se refere, por exemplo, no Acórdão do STJ de 4/7/2013: 

« (…) o vão de telhado não é naturalisticamente identificável com os conceitos de telhado ou terraço de cobertura, pois que não representa a estrutura de cobertura em si mesma e com a específica função de tapagem superior do edifício, mas um espaço ou área a que é possível dar determinadas utilizações, usualmente de armazenamento, mas sem que se exclua o próprio alojamento habitacional.

Em consonância, a jurisprudência e doutrina dominantes, vêm entendendo que os sótãos ou vãos de telhado, não integram a estrutura do edifício nem são, pela função que desempenham, partes do mesmo relativamente às quais seja de exigir a afetação ao gozo de todos os condóminos, para caberem na previsão da al. b) do nº 1 do art. 1421º, como coisa obrigatoriamente comum (cfr. acs. RC, de 9-12-86 (CJ XI-5-83), STJ, de 28-9-1999 (proc. 98B703), de 08-02-2000 (BMJ 494-338) e de 16-12-2004 (proc. 04B3814); RUI V. MILLER, “A Propriedade Horizontal No Código Civil”, 3ª ed., 163 e F. RODRIGUES PARDAL e M. B. DIAS DA FONSECA, “Da propriedade horizontal”, 5ª ed., 213).

Com efeito, como, em sede argumentativa, tem sido convocado, a inclusão desse espaço do edifício entre as partes obrigatoriamente comuns tornaria impossível, em contradição com a realidade conhecida, a individualização e afetação exclusiva do sótão, ou de parte dele, com a inerente consequência de vedar qualquer especificação com esse sentido ou conteúdo, ou de adotar qualquer cláusula tendente a excluir a comunhão, no título constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de violação do seu próprio regime imperativo.

Acresce que, exigindo-se a inclusão da afetação no título constitutivo, resultaria inútil a admissão das presunções de comunhão, especificadas ou residualmente previstas, contempladas no n.º 2 do artigo, pois que haveriam de se considerar obrigatoriamente comuns todas as partes sem destino fixado no título.

Em suma, a natureza e utilidade dos sótãos ou vãos de telhado não impõem, em sede interpretativa, a sua obrigatória qualificação como “instrumentos de uso comum do prédio”.

Conclui-se, no seguimento do expendido, que, embora presuntivamente deva ser, como efetivamente é, considerado parte comum do edifício, o sótão ou vão de escada não é de considerar parte imperativamente comum.»

No mesmo sentido, o Acórdão também do STJ de 16/12/2004 (proc. 04B3814).

Contudo, esta presunção de comunhão pode ser ilidida mediante a prova da afectação material ab initio do sótão a algum condómino. Conforme se refere no Ac. do STJ de 15/5/2012:

«(…) não se encontrando especificadas como privativas, no título constitutivo da propriedade horizontal, todas as coisas que não estejam afetas ao uso exclusivo de um deles, devem ainda as mesmas ser consideradas, presumivelmente, como partes comuns e, portanto, compropriedade de todos os condóminos, com possibilidade de afastamento dessa presunção, nos termos do estipulado pelo artigo 1421º, nº 2, e), do CC.

Quer isto dizer que deixam de ser comuns aquelas coisas que estejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos, bastando, para o efeito, a fim de afastar a presunção de comunhão, uma afetação material, uma destinação objetiva, mas já existente à data da criação do condomínio, embora não se exija que ela conste do respetivo título constitutivo da propriedade horizontal (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e atualizada, 1987, 423; STJ, de 8-2-2000, BMJ n º494, 338).

Esta destinação objetiva verificar-se-ia, por exemplo, na hipótese de uma parte do edifício que deixaria de ser comum para passar ao uso exclusivo do condómino, em virtude de só poder ter acesso ou comunicação, através de uma fração autónoma desse condómino, isto é, à qual só fosse possível aceder, mediante a fração adjacente, devendo entender-se, então, que esse espaço pertence à mesma fração, ainda que a respetiva afetação não conste do título constitutivo da propriedade horizontal, não sendo uma parte comum.»

Na expressão do Acórdão do STJ de 19/5/2009, relator Salazar Casanova (proc 1793/05):

«(…) se do título constitutivo da propriedade horizontal não constar a afetação de parte de um prédio a alguma fração autónoma, a presunção derivada da alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º pode ser ilidida, nomeadamente se se demonstrar que ab initio essa parte esteve afeta em exclusivo a determinada fração, não se exigindo que a afetação material conste do respetivo título executivo.

Encontramos esta tese sufragada, entre outros, pelos Acs. do STJ de 28.09.99, www.dgsi.pt, de 08.02.2000, CJ/STJ, T I: 67, RL de 18.02.97, www.dgsi.pt, de 29.06.99, www.dgsi.pt, de 07.05.2002, www.dgsi.pt, e RC, de 26.02.2002, www.dgsi.pt.

Dizer que a elisão da presunção relativa, contida na citada norma, está dependente da demonstração de que ab initio a parte do prédio esteve afeta ao uso exclusivo de determinado condómino, tem algo de ambíguo. Ambiguidade que fica afastada se se concretizar que é entendimento maioritário na jurisprudência o de que o termo inicial coincide com o momento da constituição da propriedade horizontal ou, a fortiori, com a construção do prédio (cfr. Acs. STJ de 28.09.99, 08.02.2000 citados).
(…)

Ora, à luz da aludida interpretação do artigo 1421.º/2, alínea e), continua a assegurar-se um critério distintivo válido e operante fundado no momento da constituição do condomínio por se considerar relevante a afetação objetiva ao uso exclusivo de um dos condóminos existente à data da constituição do condomínio, excluindo-se, portanto, do seu âmbito os casos em que a afetação se verifica ulteriormente, não deixando, assim, de subsistir um critério objetivo, impondo-se apenas averiguar se ocorria ou não uma afetação material objetiva anterior cujo ónus incumbe a quem pretende que seja reconhecido o seu exclusivo domínio sobre a coisa (artigo 342.º/1 do Código Civil).

17.-Esta é a orientação que também promana dos Acs. do S.T.J. de 17-6-1993 (Araújo Ribeiro) C.J.,2, pág 158, de 14-10-1997 (Torres Paulo) C.J.,3, pág 80 , de 28-9-1999 (Machado Soares) B.M.J. 489-358, de 8-2-2000 (Garcia ...) C.J.,1, 67. E, quanto a outros, a orientação contrária ou se funda numa realidade de facto diversa, tal o caso do Ac. do S.T.J. de 9-5-1991 (Tato Marinho), B.M.J. 407-545 em que a afetação ocorreu depois de constituída propriedade horizontal, ou o caso do Ac. do S.T.J. de 31-10-1990 (Figueiredo de Sousa) B.M.J. 400-646 em que o proprietário construiu no edifício que depois constituiu em propriedade horizontal dependências em águas furtadas que não integraram o título como frações autónomas nem tão pouco ficaram afetas ao uso exclusivo dos condóminos.»

No mesmo sentido da ilisão da presunção pela afetação exclusiva ab initio, cf. Acórdãos do STJ de 17/6/1993, relator Araújo Ribeiro (proc. 81725), e de 8/2/2000 (proc. 1115/99), ambos acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com. No que tange à ilisão da presunção, no Acórdão da Relação do Porto de 17/11/2015, relator Augusto Carvalho, discorreu-se nestes termos:

«(…) deve entender-se que, não constando do título que o sótão se encontra afetado ao uso exclusivo da fração dos réus, daí resulta que aquele se presume parte comum, presunção que pode ser ilidida. De facto, "se fosse intenção do legislador considerar comuns todas as partes cuja afetação ao uso exclusivo de um dos condóminos não constasse do título, então não faria sentido o nº 2 falar em presunção, bastaria o preceito dizer: São comuns, salvo menção em contrário no título constitutivo da propriedade horizontal". Acórdão de 8.2.2000, CJ/STJ, Ano VIII, Tomo I, pág. 71.

No título constitutivo da propriedade horizontal não se especificou o sótão como correspondendo a qualquer fração e, portanto, encontramo-nos perante uma situação concreta compreendida na presunção prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 1421º, presunção que pode ser afastada pela prova daquilo a que Pires de Lima e A. Varela designam por afetação material.

Na citada alínea e) presumem-se ainda comuns "as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos".

No dizer daqueles autores, "a afetação a que se alude aqui é uma afetação material - uma destinação objetiva - existente à data da constituição do condomínio. Se, por exemplo, determinado logradouro só tem acesso através de uma das frações autónomas do rés-do-chão, deve entender-se que pertence a esta fração (...). E o mesmo se diga, ainda a título de exemplo, do sótão ou das águas furtadas do edifício, quando, no todo ou por parcelas, estejam apenas em comunicação com a fração ou as frações autónomas do último piso (faltando esta afetação material, o sótão será comum) ". Ob. cit., pág. 423.No mesmo sentido, refere-se no acórdão do STJ, de 17.6.1993, que "deixa de ser considerada parte comum de prédio constituído em propriedade horizontal a que, desde início, foi adquirida juntamente com a fração autónoma para ser utilizada em exclusivo por determinado (s) condómino (s), ainda que tal exclusividade não fosse referida no título constitutivo". CJ/STJ, Ano I, Tomo II, pág. 158.
(…)

De acordo com esta matéria de facto, desde o início da construção do prédio, o sótão esteve afetado em exclusivo à fração autónoma dos réus, apenas com esta tendo comunicação, e, por conseguinte, deve considerar-se que foi ilidida a presunção estabelecida na alínea e) do nº 2 do artigo 1421º. A afetação material do sótão à fração dos réus, existindo à data da constituição do condomínio, afasta-o do âmbito das coisas comuns mencionadas no citado preceito.»

Destarte, não sendo sido ilidida a presunção de que o sótão/desvão é parte comum, assiste direito aos condóminos a aceder ao mesmo nos termos das disposições conjugadas dos art. 1422º, nº 1 e 1406º, nº 1, do CC.

Refira-se a este propósito que há sempre que sopesar juridicamente as consequências de estar estabelecido probatoriamente que os condóminos por que titulares de fracções autónomas que constituem o prédio são comproprietários dos espaços de sótão naquele existentes.

É que, por expressa remissão ínsita no nº 1 do art. 1422º do CC, à compropriedade das partes comuns no âmbito da PH aplica-se o regime ínsito no art. 1406º, nº 1 do mesmo diploma, como, de resto, acima já se afirmou para sustentar a legitimidade substantiva de qualquer condómino, desacompanhado dos demais comproprietários reivindicar a propriedade.

Assim, na falta de acordo, qualquer um dos contitulares pode servir-se da coisa comum, contante que a não empregue para fim diferente daquela a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente tem direito (cfr. nº 1 do art. 1406º do CC), donde, somente quando a utilização de parte de comum se faça em termos tais que impossibilite os demais contitulares dela usufruírem é que se revelará cristalino que tal utilização constitui esbulho dos poderes de fruição dos demais, proibida nos termos do preceito em referência.

Razão pela qual o comunheiro pode reivindicar a coisa de outro comunheiro que o esbulhou, já que se um titular de um direito real viola com a sua posse ou detenção o direito real de gozo de outro titular, tendo ambos os direitos a mesma coisa por objeto, o titular do direito real violado pode reivindicar a coisa do violador.

Ou como verte Abílio Neto Habitualmente, essas perturbações, esbulhos ou ameaças provêm de terceiros, mas se forem da autoria de algum condómino, que exceda o uso que faz das partes comuns, ou se arrogue, em relação a elas, direitos exclusivos, o administrador é obrigado, …, a agir como se tratasse de atos ou pretensões de um estranho ao condomínio.

Ora, pese embora apenas um condómino utilize os espaços de sótão, sobre ele inclusivamente arrogando-se direitos de exclusividade, tal não impede que os demais contitulares fruam daquelas partes comuns na medida em que, desconhecendo-se o concreto uso realizado do sótão, existirá um acesso que franqueia o acesso àquela parte comum, que é assim susceptível de ser usada por todos os condóminos, bastando para o efeito a colocação de escadas que permitam a sua utilização.

Donde, não se pode concluir por existir uma utilização exclusiva à qual seja inerente a violação dos direitos dos demais titulares de fracções autónomas sobre as partes comuns em apreço, por exprimir uma fruição que excede o que lhes permite a situação de contitularidade forçada em que se encontram, nomeadamente o vertido no art. 1406º, nº 1 do CC, ex vi art. 1420º, nº 1 do mesmo diploma, por privar os demais consortes do uso a que igualmente têm direito.

Na verdade, repisa-se, integrando-se na esfera jurídica condómino. a fruição do sótão, nos termos conjugados do disposto nos art. 1421º, nº 2, al. c), 1420º, nº 1 e, finalmente, 1406º, nº 1, todos do compêndio legal em citação, ainda que desconhecendo-se o concreto uso que é feito e não se encontrando vedado ao acesso aos demais condóminos, que lhes é facultado pelo acesso havido, nada permite julgar que aquela fruição viola os direitos dos demais comunheiros.

No mais, se houver a necessidade da colocação de uma escada basculante de acesso ao acesso do desvão/sótão tem de ser, em primeira linha, objecto de deliberação em AG nos termos dos art. 1425º, nº 1, 1430º, nº 1, 1431º, nº 1, e 1436º, al. i), todos do CC. Só após a efetivação de tal deliberação é que todos os condóminos devem contribuir para a colocação de tal escada na proporção da respetiva permilagem (cfr. art. 1426º, nº 1 e 1424º, nº 1, do CC).

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