Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

10/03/2023

Legitimidade passiva


4.2.1.3 Legitimidade passiva
 
Quanto à questão de saber quem deve ser demandado numa acção de impugnação de deliberações condominiais (ou no respectivo procedimento cautelar, como veremos) não existe, uma vez mais, consenso na doutrina nem na jurisprudência. Se por um lado há quem entenda que devem ser demandados os condóminos que aprovaram a deliberação em causa, representados pelo administrador (tese que não reconhece personalidade judiciária ao condomínio nas acções de anulação), por outro há quem defenda que o condomínio tem personalidade judiciária nas acções de anulação e, como tal, deve a acção ser instaurada contra o próprio, representado, também aqui, pelo administrador.
 
Por outras palavras, há quem entenda que nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos não se está no âmbito dos poderes funcionais do administrador e quem defenda que a personalidade judiciária do condomínio abrange as acções de anulação das deliberações da assembleia, por considerarem que as mesmas integram o “âmbito dos poderes” do administrador. Esta problemática chama novamente à colação os arts. 12º, e), CPC, 1433º, nº 6 e 1437º, nº 1. 
 
Para os defensores da tese da personalidade judiciária do condomínio nas acções para anulação das deliberações da assembleia de condóminos,(179) é o condomínio que deve ser demandado, representado pelo administrador que deve ser citado nessa qualidade. 
 
Como argumentos aponta-se o facto de ter sido concedida personalidade judiciária ao condomínio com a reforma processual de 1995/96,(180) que se manteve no art. 12º, e), CPC, pelo que deixa de haver razão para demandar os condóminos individualmente; as deliberações exprimirem a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados) ou dos que aprovaram a deliberação;o legislador ter dito, no art. 1433º, nº 6, menos do que queria dizer, devendo ser feita uma interpretação extensiva e ler-se “a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador”; um dos poderes do administrador ser precisamente a representação judiciária dos condóminos contra quem sejam propostas acções de anulação das deliberações, pelo que este age em nome e no interesse do condomínio; esta solução evitar uma série de problemas decorrentes da necessidade de demandar os condóminos em litisconsórcio necessário, como o possível elevado número de condóminos e a frequente impossibilidade de identificar, na acta da assembleia, os condóminos que votaram a favor de tal deliberação.

Por seu turno, a tese negatória da personalidade judiciária do condomínio, com forte apoio jurisprudencial,(181) entende que o condomínio apenas tem personalidade judiciária quando a lei ou a assembleia atribuem ao administrador determinadas competências funcionais, das quais se excluem as acções de impugnação das deliberações condominiais. Assim, para as acções que excedam os limites dos poderes conferidos ao administrador para personalizar o condomínio processualmente é obrigatória a intervenção singular dos condóminos, tal como decorre do art. 1433º, nº 6. Do mesmo preceito legal resulta que aqueles devem ser representados judiciariamente pelo administrador do condomínio ou por pessoa que a assembleia designar para esse efeito.

Sendo esta última a tese que sufragamos, apresentaremos os argumentos pela doutrina aduzidos.(182) Em primeiro lugar, mesmo tendo elementos para personalizar a propriedade horizontal,(183) o legislador nunca optou por reconhecer personalidade jurídica ao condomínio que, a ser reconhecida, significaria a sua personalidade judiciária (art. 11º, nº 2, CPC). Por outro lado, a já referida reforma processual de 1995/96 relativa ao reconhecimento de personalidade judiciária do condomínio e a manutenção dos seus termos até hoje só vem reforçar a posição do legislador no sentido de limitar a personalidade judiciária do condomínio ao que se encontre no âmbito dos poderes do administrador. 
 
Não existindo um reconhecimento legislativo da generalização das competências do administrador, não faz sentido fazer uma interpretação extensiva do nº 6 do art. 1433º. Com efeito, é verdade que as acções em análise respeitam à formação da vontade da assembleia geral de condóminos, só que nestas votações não entra a vontade do administrador enquanto órgão executivo. 
 
Quanto à jurisprudência,(184) o principal argumento – e também aquele que é, a nosso ver, o mais importante e esclarecedor, tendo sido já mencionado – é o de que o exercício do direito de impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos se encontra fora do âmbito demarcado dos arts. 12º, e),CPC e do art. 1437º, por não respeitar directamente ao condomínio a se - ente sem personalidade jurídica própria, e com a limitada personalidade judiciária assinalada -, mas antes aos condóminos entre si, enquanto membros do órgão deliberativo que é a dita assembleia de condóminos. Estamos, assim, no âmbito do nº 6 do art. 1433º, pelo que o autor da acção poderá pedir a citação dos condóminos na pessoa do administrador ou de representante ad hoc.(185)(186)
 
Numa última nota, no que concerne aos condóminos que devem ser demandados, ainda que não exista, também aqui, consenso na jurisprudência, partilhamos novamente do entendimento vertido no ac. STJ de 06/11/2008,(187) quando refere que “só devem ser demandados, na acção de anulação da deliberação, os condóminos que, estando presentes ou representados na assembleia em que foi tomada a deliberação anulanda, votaram a favor da sua aprovação”. Com efeito, são estes os únicos que têm interesse em contradizer e aos quais podem ser imputados quaisquer vícios de que a deliberação eventualmente enferme, porque foi com os seus votos que tal deliberação nasceu.(188)

Poder-se-ia colocar a dúvida relativamente àqueles que, não tendo estado presentes nem representados, vieram a comunicar o seu assentimento ou se silenciaram sobre a sua posição, pois que também eles se consideram favoráveis à deliberação. Porém, a deliberação terá sido aprovada mesmo sem os votos dos condóminos ausentes, pelo que estes não detêm
legitimidade passiva. Outro entendimento não se afigura materialmente possível, já que o condómino ausente, ao dispor de um prazo que pode exceder os 120 dias( cfr. nºs 6 (189) e 7 do art. 1432º) para manifestar a sua concordância ou discordância com a deliberação aprovada em assembleia poderá, na sua resposta (ou falta dela) ultrapassar os 60 dias previstos para propositura da acção de anulação (contados desde a data da deliberação). “Haveria, pois, uma insanável contradição intrassistemática do regime de anulabilidade das deliberações em apreço”.(190)

Notas

179. Vide, a título de exemplo, ac. STJ de 29/05/2007; ac. TRL de 25/06/2009; acs. TRP de 19/11/2009, de 08/09/2014 e de 13/02/2017; ac. TRE de 18/09/2008; acs. TRG de 06/01/2011, de 03/04/2014 e de 30/11/2016. Na doutrina: Aragão Seia, op. cit., pp. 216 e ss., Sandra Passinhas, op. cit., p. 337 e José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2017, p. 41.
180. DL nº 329-A, de 12 de Dezembro, com a redacção do DL nº 180/96, de 25 de Setembro

181. Acs. STJ de 02/02/2006, de 29/11/2006, de 24/06/2008, de 06/11/2008 e de 13/07/2017; acs. TRL de 18/10/2006, de 12/02/2009, de 28/04/2009, de 13/07/2010, de 25/01/2011, de 31/03/2011 e de 03/05/2011; acs. TRP de 27/01/2011, de 04/10/2012, de 03/02/2014 e de 24/03/2014; acs. TRE de 17/10/2013 e de 19/05/2016; acs. TRG de 09/03/2017 e de 24/11/2016.
182. Abílio Neto, op. cit., p. 731, João Vasconcelos Raposo, op. cit., p. 69, Rui Vieira Miller, op. cit., p. 280, Menezes Leitão, op. cit., p. 302.
183. Elemento pessoal (condóminos), elemento patrimonial (prédio) e elemento teleológico (o seu aproveitamento) – Pais de Vasconcelos, op. cit., p. 128.
184. A título de exemplo, ac. STJ de 06/11/2008 e ac. TRL de 12/02/2009.

185. A designação de representante especial é bastante comum, uma vez que a assembleia, antes de deliberar, prevê a possibilidade de impugnação das suas deliberações. Além disso, caso o administrador seja o autor da acção - o que, como referimos supra, entendemos só poder acontecer quando este seja também condómino -,deixa de ser possível a sua citação como representante dos réus,daí que seja de todo o interesse a designação de representante especial, pois que, não existindo esta pessoa, então o autor terá de citar individualmente todos os réus.
186. “Destina-se essa representação, permitida por lei, a facilitar o desenvolvimento da acção e a evitar a intervenção efectiva de todos, o que significa que o autor poderá requerer a citação de todos os réus apenas na pessoa do administrador ou do representante especial, se o houver” –a c. TRG de 24/11/2016. No mesmo sentido,vide ac. STJ de20/09/2007.
187. Com o mesmo entendimento, ac. TRP de 27/01/2011.
188. Em sentido contrário, ac. STJ de 22/09/2016.

189. A este propósito, vide nota de rodapé 157.
190. Abílio Neto, op. cit., p. 733.
 

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