Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

1/19/2022

Impugnação após 60 dias

A questão colocada prende-se com a contagem do prazo de caducidade, previsto no nº 4 do art. 1433º do Código Civil, da acção anulatória das deliberações das assembleias de condóminos contrárias à lei ou aos regulamentos (nº 1 do mesmo artigo), proposta pelo condómino ausente (embora notificado para comparecer na assembleia). 

Há duas grandes correntes doutrinais e jurisprudenciais sobre tal matéria.
 
No Ac. TRL, de 22/6/1999, CJ 1999 III-121 e do STJ, de 11/1/2000 – defendeu-se que o início de contagem do prazo se faz a partir da data da deliberação impugnada. Ou seja, “actualmente os condóminos faltosos terão de diligenciar no sentido de conhecerem o teor das deliberações para, se o desejarem, poderem impugná-las no prazo dilatado de 60 dias sobre a data da deliberação e não da comunicação da deliberação, como primitivamente se estipulava”.
 
É esta a tese que melhor se coaduna com uma interpretação histórico-actualista, sistemática e teleológica (racional), onde se presume que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nº s 1 e 3).
 
Por sua vez, outra tese – estribando-se no acórdão do STJ, de 21/1/2003 e na opinião de autores como Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 2ª edição, página 86 e Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos", página 241 - vai no sentido de que a contagem de tal prazo só se inicia a partir da comunicação da deliberação impugnada
 
Como é sabido, a actual redacção do artigo 1433º do Código Civil - aplicável foi-lhe dada pelo DL 267/94 de 25/10. Na anterior redacção, o nº 2 do referido artigo não deixava margem para dúvidas, ao prescrever expressamente que o prazo em causa se contava da comunicação da deliberação ao condómino ausente.

Numa interpretação literal, o correspondente número (o nº 6) do actual 1433º também não nos deixa margem de dúvida, pois que não faz qualquer referência a essa comunicação como início da contagem do prazo, fazendo apenas distinção entre os prazos para a propositura das acções – 60 dias para a anulação da primitiva deliberação e 20 dias para a anulação da deliberação da assembleia extraordinária.

Dispõe o art. 1433º:
- «as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado» (nº 1);
- «no prazo de 10 dias contado da deliberação, para os condóminos presentes, ou contado da sua comunicação, para os condóminos ausentes, pode ser exigida ao administrador a convocação de uma assembleia extraordinária, a ter lugar no prazo de 20 dias, para revogação das deliberações inválidas ou ineficazes» (nº 2);
- «no prazo de 30 dias contados nos termos do número anterior, pode qualquer condómino sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem» (nº 3);
- «o direito de propor a acção de anulação caduca no prazo de 20 dias contados sobre a deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não tenha sido solicitada, no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação» (nº 4).

Como se vê, a lei fez iniciar a contagem do prazo para o condómino ausente requerer, quer a assembleia extraordinária, quer a intervenção do centro de arbitragem, da comunicação - que lhe deve ser feita, nos termos do nº 6 do art. 1432º do CC - da deliberação impugnanda. Mas - claramente - já não usa o mesmo critério relativamente ao prazo de caducidade das acções anulatórias. Seguramente foi pensado pelo legislador.

Se é certo que a interpretação da lei não deve ser meramente literal (cfr. nº 1 do art. 9º do CC), não é menos verdade que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, sendo sempre de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. nºs 2 e 3 do mesmo artigo).

Ora, o legislador de 1994 foi tão minucioso nas alterações que introduziu ao regime da propriedade horizontal, através do referido DL 267/94, que só podemos entender como sendo querida expressamente esta diferença de regime.

A intenção do legislador foi fundamentalmente, de privilegiarem os meios extrajudiciais (a assembleia extraordinária) ou para judiciais (o centro de arbitragem) para a apreciação e eventual revogação das deliberações anuláveis a que se reporta o nº 1 do art. 1433º do CC. Aragão Seia, ob. cit., páginas 185/186 escreveu que com tal alteração se pretendeu:
-«obstar a recurso a tribunal, evitando o inconveniente de criar antagonismos entre os condóminos e de protelar no tempo a eficácia definitiva da decisão, permite-se no prazo de 10 dias"exigir ao administrador a convocação de uma assembleia extraordinária"»;
-« procurar evitar o recurso a tribunal permite-se que possa sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem.».
 
Esta finalidade tem a sua plena expressão no caso de condómino ausente que só tenha tido conhecimento da deliberação através da comunicação a que alude o nº 6 do art. 1432º e já depois de decorridos os 60 dias referidos no nº 4 do art. 1433º, ou seja, sobre a data daquela, como diz a lei.

Neste caso e no nosso entender, porque já não pode intentar a acção anulatória dessa deliberação, para a revogar tem necessariamente de, nos respectivos prazos legais, recorrer:
-ou à assembleia extraordinária;
-ou ao centro de arbitragem.

E se, lançar mão da assembleia extraordinária, a respectiva deliberação lhe vier a ser desfavorável, ainda poderá recorrer aos meios judiciais, instaurando a respectiva acção de anulação desta deliberação extraordinária, no prazo de 20 dias, contados sobre ela, como permite o nº 4 do art. 1433º do CC.

A deliberação extraordinária se for confirmatória da primitiva deliberação – sendo revogatória não há fundamento para a intervenção judicial, como é óbvio, o objecto da acção de anulação é aquela e não esta. O direito de anulação da primitiva deliberação morreu com o decurso do prazo de 60 dias - prazo este que, evidentemente, jamais poderá renascer.

O que nasce com a deliberação extraordinária é o prazo de 20 dias para o condómino ausente pedir a anulação judicial desta mesma deliberação e não da primitiva (não obstante esta ter sido objecto daquela). Se o condómino ausente optar pelo recurso ao centro de arbitragem, precludirá o seu direito à acção anulatória, pois que a decisão arbitral tem, nos termos do art. 26º da Lei nº31/86, de 29 de Agosto, a mesma força e os mesmos efeitos jurídicos que uma sentença judicial.

Em suma, o condómino ausente nunca ficará cerceado no seu direito de recorrer aos tribunais para anular as deliberações das assembleias de condóminos que considere anuláveis à luz do nº 1 do art. 1433º do CC. Basta estar atento – como atento terá que estar no caso de haver lugar à 2ª reunião da assembleia, a qual se considera convocada para uma semana depois, na mesma hora e local (cfr. nº 4 do art. 1432º do CC), para não deixar esgotar o prazo de 60 dias a contar da data da deliberação que pretende impugnar e, por sua iniciativa (independentemente da comunicação que lhe deve ser feita nos termos do nº 6 do art. 1432º do mesmo Código), tomar conhecimento do respectivo teor.

De qualquer forma, se não tiver esse cuidado e só vier a ter conhecimento da deliberação através da referida comunicação e depois de decorrido o prazo de 60 dias sobre ela, ainda assim lhe restará a possibilidade da sua (indirecta) apreciação judicial, caso a assembleia extraordinária a que necessária e previamente terá que recorrer, nos termos legais atrás explanados – não a revogue.

Entendimento diverso - no sentido de a contagem do prazo de caducidade da acção anulatória se iniciar só com a comunicação nos termos do nº 6 do art. 1432º do CC - propiciará o laxismo/absentismo e a indefinição das questões condominiais, ao contrário do que, naturalmente, é pretendido pela lei. 

Nesta conformidade, concluindo-se, como se conclui, que o prazo de caducidade de 60 dias a que alude o nº 4 do art. 1433º do CC se conta a partir da data da deliberação, mesmo para os condóminos ausentes.

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