Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

1/18/2022

A excepção de não cumprimento


É consabido que o cumprimento do pagamento das comparticipações havidas orçadas e aprovadas em sede plenária para suportar as despesas de fruição, conservação e serviços de interesse comum, são a obrigação primeira dos condóminos, sob pena de, incorrendo no não cumprimento, se sujeitarem às sanções previstas no Regulamento do condomínio ou na lei aplicável.

No entanto porém, existem excepções à regra, isto é, existem algumas (poucas) situações nas quais, os condóminos podem furtar-se à obrigação do cumprimento, sem com isso, incorrerem em incumprimento e nas sanções previstas para o mesmo, como por exemplo, no caso replicado infra, do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 3/11/2016, que ensina:

"A excepção de não cumprimento do contrato (cfr. art. 428º do CC) é aplicável, não apenas aos contratos bilaterais, mas as todos os casos em que, por força da lei, se crie entre as partes uma situação análoga, o que nomeadamente sucederá perante obrigações proper rem, como a obrigação do condómino participar nas despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício (uma vez que o sinalagma que é fundamento do funcionamento da exceptio tem mais relação com o aspecto funcional do que com o aspecto genético das obrigações em causa).

Nesta conformidade, não actua em abuso de direito (cfr. art. 334º do CC), por exemplo, um condómino que se recuse o pagamento de prestações de condomínio (v.g. quotas mensais) reportadas a um determinado período de meses ou anos, enquanto o condomínio, não efectuar obras de impermeabilização da cobertura do edifício, por forma a fazer cessar as infiltrações, humidades e escorrências que, desde esse mesmo período de incumprimento, impedem a utilização conveniente da sua fracção autónoma".

Nesta conformidade, lê-se, a propósito, no art. 428º, nº 1 do CC que, «se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo», logo, o funcionamento da exceptio non adimpleti contractus a que se refere este artigo pressupõe a existência de um contrato com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra (o que se verifica nos chamados contratos bilaterais ou sinalagmáticos).

Por outras palavras, mercê da sua própria natureza, esta excepção é aplicável apenas aos contratos bilaterais com obrigações reciprocamente interligadas por um sinalagma genético-funcional, já que só aí o contraente fiel pode sustar o cumprimento da sua prestação como meio idóneo de coagir a contraparte a cumprir também a sua prestação sinalagmática. Mas pressupõe igualmente que não estejam fixados prazos diferentes para as prestações, já que, devendo uma delas ser cumprida antes da outra, a exceptio não teria razão de ser.

Contudo, «a fórmula legal “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimentos das prestações” não é inteiramente rigorosa, pois o que a excepção supõe é que um dos contraentes não esteja obrigado, pela lei ou pelo contrato, a cumprir a sua obrigação antes do outro: se não estiver, pode ele, sendo-lhe exigida a prestação, recusá-la, enquanto não for efectuada a contraprestação ou lhe não for oferecido o cumprimento simultâneo desta. Por conseguinte, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes, dado poder sê-lo pelo contraente cuja prestação deva ser feita depois da do outro contraente, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro» (cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 105, pag. 283, e ano 108, pag. 155).

Vem-se, ainda, precisando que, sendo os contratos bilaterais o âmbito natural da excepção de não cumprimento, a mesma poder-se-á ainda aplicar a outras situações em que se esteja perante obrigações que se justifiquem reciprocamente, não necessariamente por um sinalagma genético (em que a correspectividade se refere ao momento constitutivo, não podendo uma obrigação surgir sem a outra), mas sim por um sinalagma funcional (em que a correspectividade se refere a obrigações já constituídas, significando que elas se vão desenvolver solidariamente).

Será precisamente esse o caso das obrigações reais ou propter rem, isto é, das obrigações a que o respectivo titular está vinculado, não por via de um contrato, mas por ser titular de um determinado direito real, que não deixam por isso de consubstanciar verdadeiras relações obrigacionais (cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, pag. 21).

Com efeito, «o entendimento de que as obrigações “propter rem” fazem parte do conteúdo do “ius in re” não significa que, por esse motivo, elas devam ser qualificadas como relações de natureza real, ou de natureza mista, ou como figuras de fronteira entre os “iura in re” e as obrigações. Estruturalmente, é de verdadeiras obrigações que se trata, ou seja, de vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita a realizar uma prestação em benefício de outra» (cfr. M. Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pag. 102 e 103).

Logo, apesar da letra do art. 428º do CC e da sua inserção na disciplina dos contratos, poder inculcar o contrário, definindo o art. 397º do mesmo diploma a obrigação sem fazer qualquer menção à sua origem, admite-se que a excepção de não cumprimento seja aplicável às obrigações propter rem, uma vez que o sinalagma que é fundamento do funcionamento da exceptio tem mais relação com o aspecto funcional do que com o aspecto genético das obrigações em causa, isto é, mais com a reciprocidade das obrigações do que com a sua origem (cfr. Ac. da RL, de 08.05.2008, Pedro Lima Gonçalves, Processo nº 1824/2008-8. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 4ª Edição, p. 406, Almeida Costa, RLJ, ano 119, p. 143, e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, p. 847. Na jurisprudência, e em sede da obrigação do condómino concorrer para os encargos de conservação e fruição de partes comuns de um edifício, verdadeira obrigação propter rem, Ac. da RP, de 01.04.1993, CJ, Ano 1993, Tomo II, p. 201, e Ac. da RL, de 09.05.1996, CJ, Ano 1996, Tomo III, p. 87).

Desta forma, pode «dizer-se, de um modo geral, que a “exceptio” tem ainda aplicação nos casos em que, por força da própria lei, embora contra a vontade das partes, se cria entre elas uma situação análoga à proveniente de um contrato bilateral» (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, pag. 271, nota 3). Dir-se-á assim, agora com maior rigor, que a excepção peremptória de não cumprimento do contrato é uma excepção de direito material, que se destina a permitir que o contraente fiel não cumpra enquanto o contraente faltoso não cumprir também. Não legítima, por isso, o incumprimento definitivo do contrato pelo contraente fiel, mas apenas o cumprimento dilatório do contraente fiel como forma de coagir o contraente faltoso a cumprir também aquilo que tem que cumprir. Pressupõe, por isso, que o cumprimento das obrigações interconexionadas ou seja simultâneo, ou que a obrigação do excipiente deva ser cumprida em último lugar já que então - à data do respectivo adimplemento - ele sabe se a contraparte cumpriu, ou não a prestação, a que está vinculada (cfr. Ac. do STJ, de 18.02.2003, Azevedo Ramos, CJ AcSTJ, Ano 2003, Tomo I, p. 103-106; e Ac. do STJ, de 18.11.2004, Borges Soeiro, in www.dgsi.pt).

Logo, «a exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral. Por isso ela vigora, não só quando a outra parte não efectua a sua prestação por que não quer, mas também quando ela a não realiza ou a não oferece porque não pode» (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 4ª Edição, p. 406). 

Compreende-se, assim, que se afirme que «a excepção do contrato não cumprido não pressupõe a culpa do devedor da contraprestação no seu atraso. A inexecução por parte deste pode ser-lhe imputável ou não, isto é, tanto pode ele constituir-se em mora como não. Ainda que o incumprimento não lhe seja imputável, antes obedeça a circunstâncias fortuitas, independentes da vontade, a excepção é invocável pelo outro contraente» (cfr. João José Abrantes, A excepção de não cumprimento do contrato no Direito Civil, p. 88).

Também no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso é comummente aceite pela doutrina o recurso à exeptio non rite adimpleti contractus: a mesma «vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos artigos 227º e 762º, nº 2», ambos do C.C. (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Limitada, 4ª Edição, p. 406).

Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm realçado que, no aferir da legitimidade da invocação da excepção de não cumprimento do contrato, importa ponderar: a regra da boa fé; e a verificação da proporcionalidade (ou do equilíbrio) entre as prestações. É que, por um lado, «seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo»; e, por outro, «na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quando se torne necessário para garantir o seu direito» (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, «Anotação ao Ac, do STJ, de 11 de Novembro de 1984», RLJ, ano 119, 1986/1987, p. 144).

Assente, e face à sua invocação, o contraente a quem é oposta a excepção do não cumprimento tem de provar que cumpriu a sua prestação para obviar aos respectivos efeitos substantivos (cfr. Ac. do STJ, de 24.06.1999, Noronha do Nascimento, CJ AcSTJ, Ano 1999, Tomo II, p. 163, com bold apócrifo). Deverá por isso, para obstar ao seu válido exercício, oferecer o cumprimento simultâneo, em termos completos e rigorosos.

Por fim, a excepção de não cumprimento do contrato tem de ser invocada pela parte que se pretende valer da mesma, de forma expressa ou tácita, não podendo ser conhecida oficiosamente pelo juiz (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, p. 334). A sua invocação tácita terá de resultar de factos alegados pelo excipiente que inequivocamente a exprimam (cfr. Ac. da RC, de 08.06.93, Francisco Lourenço, CJ, Ano 1993, p. 55; e Ac. da RG, de 09.04.2003, Arnaldo Silva, CJ, Ano 2003, Tomo II, p. 281).


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