Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/26/2022

Barulho de animais

Acórdão: Supremo Tribunal de Justiça
Data: 3/10/2019
Descritores: Direito ao repouso
                      Relações de vizinhança                        
                     
Ruído

                      Abuso de direito
                      Boa fé
                      Direitos de personalidade
                      Direito de propriedade
                      Colisão de direitos

Súmula: I. Existe abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

II. O juízo sobre o abuso de direito está, assim, dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade.

III. Não obstante a vivência nos meios rurais, impor que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, a verdade é que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram. 
 
IV. Assim, demonstrado que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,395 metros da casa dos autores, impõe-se ter por prevalecente o referido direito dos autores, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre o direito de propriedade dos réus e os interesses destes em fazer criação de galinhas e galos.

Fundamentação:

Segundo o artigo 334º do C. Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Perante o preceituado neste artigo e na esteira dos ensinamentos de Manuel de Andrade[2], Vaz Serra[3] e Antunes Varela[4], poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Segundo Menezes Cordeiro[5], a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram.

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 25.06.2009 (processo nº 599/04.2TBCNT.S1), «o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou execução de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros, criando uma desproporção entre os respectivos exercícios, de forma ofensiva e clamorosa dos valores sociais que se têm como adquiridos».

No caso dos autos, está provado que as galinhas e galos, em número pelo menos de 10, que os réus criam no anexo que construíram junto ao muro que separa o prédio deles do dos autores e dista apenas 4,395 metros da janela da cozinha destes, virada a sul, «todas as manhãs, entre as 3 e as 5h, fazem um barulho estridente que acorda os AA., interrompendo o seu descanso e não mais conseguindo adormecer de uma forma regeneradora, adequada e razoável» e que os autores «por causa dos ruídos produzidos pelas referidas aves, várias vezes se levantam com sintomas de falta de repouso».

Ora, pese embora desconhecer-se o grau de dificuldade dos autores em voltarem a adormecer, dada o carácter genérico das expressões “uma forma regeneradora, adequada e razoável ”, bem como o grau de intensidade da incomodidade sofrida pelos autores, atenta a falta de caracterização dos “sintomas de falta de repouso”, sofridos, em concreto, pelos autores, a verdade é que os factos dados como provados demonstram, claramente, que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas, o que não só constitui uma lesão do seu direito ao repouso e sossego e ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade no interior do seu domicílio durante o período noturno, como envolve também afetação do seu direito à saúde e integridade física e psicológica.

E porque assim é, não podemos deixar de ter por prevalecente o direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente do direito à integridade moral e física, à proteção da saúde e a um ambiente de vida sadio dos autores, sobre os interesses dos réus, em fazer criação de galinhas e galos.

Acresce ainda que, numa perspetiva substancial e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos lesados, não podemos também deixar de afirmar a essencialidade da imposição aos réus de remoção das aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores como forma adequada de assegurar aos autores, um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio, e, desse modo, minimizar a afetação da sua saúde e integridade física e psicológica.

É que, como é consabido, a privação do sono e do descanso provoca, no mínimo e para além de muitas outras, alterações fisiológicas como cansaço e fadiga, tudo com repercussões muito nefastas a nível pessoal, profissional e social.

Daí que, face às demonstradas condições do local - galinheiro construído a apenas escassos 4,395 metros de distância da janela da cozinha da casa de habitação dos autores - se considere que o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos autores e o direito de propriedade privada dos réus implica a deslocação das aves para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores, assim se minimizando os efeitos nefastos o seu “barulho estridente” provoca nas pessoas dos autores.

Assim, ponderando tudo o que deixou dito e na esteira do decidido no Acórdão do STJ de 01.03.2016 (proc. nº 1219/11.4TVLSB.L1.S1)[15], tem-se como meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade dos autores a limitação imposta ao direito de propriedade dos réus pelo acórdão recorrido, por não afrontar, em termos intoleráveis, os princípios da boa fé e dos bons costumes nem ultrapassar os limites do socialmente tolerável, dadas as circunstâncias de facto demonstradas, inexistindo, por isso, qualquer abuso de direito por parte dos autores.

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