Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/26/2022

Reverter a imputação das comparticipações

Decorre do nº 1 do art. 1424º do CC, que o regime regra de imputação das comparticipações condominiais, salvo disposição em contrário inserida no título constitutivo da propriedade horizontal, é proporcional ao valor das respectivas fracções.

Para aprovação de imputação das comparticipações condominiais de modo diverso do regime regra - ficarem as despesas de fruição e serviços comuns a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição -, é exigível que a deliberação seja aprovada por uma maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, sem qualquer oposição (cfr. nº 2 do art. 1424º do CC).

No entanto, após a alteração da forma de imputação das comparticipações, isto é, deixando-se de pagar na forma proporcional ao valor das respectivas fracções (percentagem ou permilagem), passando a fazer-se em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição, caso no futuro se pretenda regressar ao regime regra de imputação das comparticipações condominiais de forma proporcional ao valor das respectivas fracções, isto é, deixando-se de pagar em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição para se regressar à forma proporcional ao valor das respectivas fracções, não é exigível a maioria qualificada de 2/3 sem oposição para reverter a alteração ao regime regra ao pagamento de despesas de condomínio, pois é incomparável a situação de a lei exigir tal maioria qualificada para a imputação das comparticipações condominiais de modo diverso do regime regra (em função da permilagem, de acordo com o art. 1424º, nº 2 do CC), e exigi-la para o regresso ao regime regra.

Assim é, mesmo que a assembleia pretenda, neste âmbito, alterar anterior deliberação aprovada por maioria qualificada, pois as deliberações da assembleia de condóminos não “determinam um vínculo contratual permanente, e são sempre susceptíveis de revogação e de modificação, ainda que tomadas por unanimidade. A decisão da assembleia em sede de gestão é sempre contingente e transitória, e não pode precludir novas e diversas deliberações que possam surgir no decurso da vida do condomínio” (cfr. Sandra Passinhas, em “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, Almedina, 2ª ed., p. 246 a 247)”, isto é, não era aqui exigida a maioria qualificada, sendo incomparável a situação de a lei exigir uma maioria qualificada para a imputação das comparticipações condominiais de modo diverso do regime regra (em função da permilagem, de acordo com o art. 1424º nº 2 do CC), e exigi-la para o regresso ao regime regra –, como, as deliberações das assembleias de condóminos que sejam contrárias à lei ou a regulamentos são anuláveis, nos termos do art. 1433º, nº 1 do CC, e não nulas, sem prejuízo de situações excepcionais, onde não se incluem as suscitadas nos embargos como pretende a recorrente, poderem implicar a nulidade ou até a inexistência – como vem sendo maioritariamente sustentado na doutrina e jurisprudência.
 
À luz destes ensinamentos, para se alterar a imputação das comparticipações (quotas), exige-se a maioria qualificada indicada no nº 2 do art. 1424º do CC. Para se reverter esta decisão, basta que um qualquer condómino se oponha, suscitada que seja o regresso ao regime regra (leia-se, pagamento das quotas por percentagem ou permilagem). 

Cumpre outrossim ressalvar que, tudo quanto se houve aqui lavrado, refere-se à imputação das despesas de fruição e pagamento dos serviços de interesse comum. A alteração da imputação das comparticipações relativas às despesas de conservação, requer uma deliberação aprovada por unanimidade a qual apenas pode ser revertida mediante nova deliberação (com um voto contra ou abstenção) e enquanto a mesma não se tiver transporta para o título constitutivo da propriedade horizontal. 
 
Após o seu competente registo, a reversão só será possível mediante uma nova deliberação aprovada por unanimidade. No limite, poderá equacionar-se a reversão pela via judicial, se se provar que a deliberação enferma de manifesto e grosseiro abuso de direito. Existe abuso de direito, nos termos do disposto no art. 334º do CC, quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito (cfr. Ac. STJ de 3/10/2019).
 
Neste concreto, importa ressalvar que de acordo com o disposto no art. 334.º do CC, a existência ou não de abuso do direito afere-se a partir de três conceitos: (i) a boa fé; (ii) os bons costumes; e (iii) o fim social ou económico do direito; porém, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto.

A boa fé comporta dois sentidos principais: no primeiro, é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude; no segundo, apresenta-se como princípio de actuação, significando que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. Os bons costumes constituem o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente. O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.
 

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