Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/17/2022

Interpretação do nº 3 art. 1424º CC

Art. 1424º
(Encargos de conservação e fruição)

1 – Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das fracções no momento das respectivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas fracções.
2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento de condomínio, aprovada, sem oposição, por maioria dos condóminos que representem a maioria do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição, desde que devidamente especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação.
3 – As despesas relativas às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem.
 
Escreve Aragão Seia, in " Propriedade Horizontal", 2ª ed., 202, pág 129: " se no último piso houver um terraço de uso comum ou na cave existirem arrumos de todos os condóminos, ao lado de fracções utilizadas individualmente, todos os condóminos terão que suportar os encargos com as escadas que lhe dão acesso, embora as utilizem esporadicamente". E acrescenta: "não se pode considerar isento de responsabilidade pelos encargos de conservação e fruição das partes comuns do prédio, qualquer condómino cuja fracção esteja objectivamente em condições de ser servida por essas partes, só porque delas se não quer servir".
 
E claro é que a assembleia de condóminos sempre poderá deliberar a adopção de um critério equitativo/proporcional em função da regularidade ou da intensidade da utilização das partes comuns, como por exemplo dos diversos lanços das escadas comuns de acesso aos andares superiores (cfr. nº 2 art. 1424º do CC). Porém, neste caso concreto, o autor refere-se aos condóminos das fracções habitacionais. E se no prédio houverem fracções comerciais ou outras, sem acesso ao interior? 
 
Neste caso, torna-se patente que as escadas comuns servem exclusivamente algum ou alguns condóminos, não se prestando a poderem servir (também) as demais fracções autónomas do prédio (com saída directa para a via pública), pelo que não se encontram objectivamente em condições de afectação ao uso comunitário de todos os condóminos.
 
O nº 1 do art. 1424º, salvo disposição em contrário (leia-se, incluída no Título Constitutivo da Propriedade Horizontal), contém um princípio geral que se traduz na obrigação de todos os condóminos terem de suportar, na proporção do valor das respectivas fracções autónomas, as despesas necessárias à conservação, serviços de interesse comum e as de fruição das partes comuns do edifício (o nº 2 contém uma segunda excepção sobre a forma como ficam a cargo dos condóminos, a qual, para o caso vertente, não nos aproveita).

O nº 3 do art. 1424º contém uma terceira excepção, esta ao referido princípio ao estabelecer que as despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem, i.e., dos titulares das fracções a que dão serventia exclusiva aqueles lanços de escada ou partes comuns (como sucede por exemplo com um terraço que serve de cobertura a apenas uma parte do prédio).

Há, porém, que distinguir, dentro dessas despesas, as chamadas (i) despesas de conservação/manutenção das (ii) despesas de reparação resultantes, não do uso normal das partes comuns do edifício pelos condóminos que delas se servem, mas de deficiência na construção ou de falta de manutenção de espaços exteriores a essas partes comuns que não são utilizados por aqueles condóminos:

- as primeiras (i) ficam a cargo dos condóminos que usam e fruem dos lanços de escadas por serem eles os beneficiários exclusivos do mesmo e, em princípio, terem sido eles que deram origem ao desgaste ou deterioração dos materiais desses lanços;

- já as segundas (ii) ficam necessariamente a cargo de todos os condóminos por as reparações a realizar constituírem um benefício comum de todos eles (por exemplo, para se poder aceder ao telhado, parte imperativamente comum e ao serviço de todo o condomínio, necessário é utilizar os lanços de escadas).

Neste mesmo sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 9/6/2016, com jurisprudência nacional fixada (Ac. do STJ de 1/6/2010, proc. nº 95/2000). Da decisão recorrida, defendia-se que o o nº 3 do art. 1424º do CC compreendia na sua previsão quer as despesas de manutenção quer as despesas de fruição de um terraço de cobertura, que é de uso exclusivo de um condómino, imputando tais encargos com partes comuns à responsabilidade dos condóminos que as usam exclusivamente, com exclusão dos demais condóminos.

O art.1424º nº 1 do CC contém um princípio geral que se traduz na obrigação dos condóminos suportarem, na proporção do valor da sua fracção, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício.

As obrigações referidas neste artigo quanto às despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício, constituem um exemplo típico de obrigações “propter rem”, isto é, de obrigações impostas, em atenção a certa coisa, a quem for titular desta. Dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa: é obrigado quem for titular do direito real.

O nº 3 do art.1424º estabelece uma excepção ao princípio geral dizendo que: “As despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem”.

Quando a lei fala em escadas ou partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos quer referir-se, ao mencionar estes, às respectivas fracções autónomas, atribuindo a responsabilidade das despesas aos titulares das fracções a que dão serventia exclusiva aqueles lanços de escada ou partes comuns.

Mais diz aquele, que o legislador ao considerar os terraços como coisas comuns teve em vista a integração dos mesmos na estrutura do prédio e afectos à função de cobertura como de telhado se tratasse, seja de parte seja da totalidade do edifício. Fundamentalmente interessa a função de protecção do edifício contra os elementos atmosféricos. O mesmo princípio é válido para o vão de escadas que também integra a estrutura do prédio, com a função de acesso vertical, seja de parte ou da totalidade do edifício, e mesmo que destinado ao uso exclusivo de alguns dos condóminos, não deixando por isso de ser forçosamente comum pela função capital de acesso ao interior e/ou telhado do imóvel que no interesse colectivo exerce em relação a toda a construção.

Dúvidas não subsistem que as ditas despesas de manutenção são a cargo dos condóminos que usam e fruem do terraço (e por extensão interpretativa, dos lanços de escadas) por serem eles os beneficiários exclusivos do mesmo e, em princípio, terem sido eles quem deram origem ao desgaste ou deterioração dos materiais do mesmo terraço (leia-se também, lanços de escadas).

Argumenta-se ainda no competente Acórdão que "Ora as deficiências estruturais da obra e a manutenção de materiais situados em espaços não utilizados pelos condóminos do primeiro piso não podem implicar despesas que onerem apenas alguns condóminos já que as reparações a realizar serão benefício comum de todos os condóminos.

Assim, sendo as obras, a reparar no terraço, resultantes, não do uso normal das mesmas pelos condóminos que dele se servem em exclusividade, mas de deficiência na construção ou de não manutenção de materiais exteriores ao dito terraço, todos os condóminos devem participar no custo das reparações, na proporção do valor das suas fracções."
 
Algumas situações concretas:
 
I) Em um edifício com arrumos no sótão, todos os condóminos, sem excepção, contribuem para as despesas de conservação/manutenção e de reparação resultantes, não do uso normal dos lanços de escadas comuns do edifício pelos condóminos que deles se servem, mas de deficiência na construção ou de falta de manutenção desses espaços ou partes comuns;
 
II)  Em um edifício sem arrumos no sótão, apenas os condóminos que fruem dos respectivos lanços, contribuem para as despesas de conservação/manutenção, mas nas despesas de reparação resultantes, não do uso normal das partes comuns do edifício pelos condóminos que delas se servem, mas de deficiência na construção ou de falta de manutenção desses espaços ou partes comuns, são da responsabilidade de todos, mesmo quando não são utilizados por aqueles condóminos;
 
III)  Em um edifício com fracções que tenham saída directa para a via pública (i.e., fracções comerciais e análogas), apenas os condóminos que fruem dos respectivos lanços, contribuem para as despesas de conservação/manutenção, mas nas despesas de reparação resultantes, não do uso normal das partes comuns do edifício pelos condóminos que delas se servem, mas de deficiência na construção ou de falta de manutenção desses espaços ou partes comuns, são da responsabilidade de todos, mesmo quando não são utilizados por aqueles condóminos;
 
Nestas exemplificações, a título meramente ilustrativo, consideram-se despesas de conservação/manutenção a pintura das paredes ou o arranjo de azulejos caídos das paredes ou tijoleiras partidas dos pavimentos; já as despesas de reparação cingem-se por exemplo, ao surgimento de fissuras quer nas paredes ou lanços de escadas...

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