Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

2/09/2022

Uso do sótão

Nos termos do art. 1414º do CC, as fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos, em regime de propriedade horizontal. Foi a tendência para o crescimento no sentido vertical dos centros urbanos que veio conferir relevância e actualidade à propriedade horizontal. 

Com efeito, nesta forma de crescimento ou urbanização, «há a maior vantagem em admitir e fomentar a propriedade horizontal». Por um lado, ela proporciona o acesso à propriedade urbana a classes económicas que, de outra forma, não conseguiriam alcançá-la. «Por outro, potencia a construção imobiliária e o próprio crescimento vertical dos centros urbanos, na medida em que permite canalizar para a edificação de grandes imóveis poupanças que não possibilitariam aos titulares a construção de edifícios independentes» (cfr. Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume III, págs. 391 e seguintes).

Na propriedade horizontal, os titulares das várias fracções ou unidades independentes são ainda comproprietários das partes do edifício que constituem a sua estrutura comum ou estão afectadas ao serviço daquelas fracções (cfr. art. 1421º do CC). O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária – o que, necessariamente, há-de criar especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer pelo que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo pelo que respeita às fracções autónomas.

A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais – por forma que, entre dois planos, se compreenda uma ou várias unidades independentes – ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas (cfr. Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 393). Quanto às fracções autónomas, elas pertencem em propriedade aos condóminos e, como tal, poderão ser alienadas pelo respectivo titular, oneradas, dadas de arrendamento, etc.. 

No que respeita às partes comuns, os condóminos estão sujeitos, antes de mais, às regras especialmente fixadas no capítulo da propriedade horizontal. Nos pontos em que não exista regulamentação específica, valerá o regime geral da compropriedade.

Sobre a matéria, rege o art. 1421º do CC, que especifica no seu nº 1 as partes do edifício necessariamente comuns e descreve no nº 2 as partes presumidamente comuns, dispondo o nº 3 sobre a possibilidade de, no título constitutivo da propriedade horizontal, se afectarem ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns. Ao que aqui importa pôr em evidência, o nº 1 do citado preceito identifica como necessariamente comuns “b) O telhado ou os terraços de cobertura ainda que destinados ao uso de qualquer fracção”, do mesmo passo que o nº 2 declara que se presumem comuns “e) Em geral, as coisa que não sejam afectas ao uso exclusivo de um dos condóminos”.

A introdução no preceito desta cláusula geral residual determina que, diferentemente do que sucede em relação às partes imperativamente comuns, a enumeração constante do nº 2 deve considerar-se meramente exemplificativa, de sorte que por ela podem ser abrangidos, como pertencentes em compropriedade aos condóminos, partes do edifício não especificamente destinados ou afectados pelo título constitutivo, mediante a especificação prevista no art. 1418º do CC.

No caso sob apreciação, se houver uma absoluta omissão do título constitutivo relativamente ao sótão ou vão de telhado, a cuja existência nem sequer se aluda (sua natureza e afectação), coloca-se, então o problema de saber se, apenas por isso, ou seja, por falta dessa especificação, deve considerar-se parte necessariamente comum, esteja ou não no gozo exclusivo de um dos condóminos. Em síntese, poder-se-à dizer que em edifício submetido ao regime de propriedade horizontal, o sótão ou vão de telhado não é de considerar parte imperativamente comum, mas apenas presuntivamente comum.

Portanto, o vão de telhado não é identificável com os conceitos de telhado ou terraço de cobertura, pois que não representa a estrutura de cobertura em si mesma e com a específica função de tapagem superior do edifício, mas um espaço ou área a que é possível dar determinadas utilizações, usualmente de armazenamento, mas sem que se exclua o próprio alojamento habitacional.

Destarte, o sótão - espaço compreendido entre o tecto da fracção ou fracções superiores e o telhado - não se confunde com o telhado, não faz parte da estrutura do edifício, não está compreendido no art. 1421, n. 1 b) do CC. O sótão cabe no art. 1421 n. 2 b) do CC desde que nada se disponha em contrário no título constitutivo, o sótão presume-se parte comum quando não afecto ao uso exclusivo de uma das fracções autónomas. Neste sentido, replico algumas competentes decisões:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-1999:
I – Os espaços compreendidos entre o tecto do último andar de um edifício e as telhas (vão, sótão ou águas furtadas), não sendo telhado ou terraço de cobertura, não têm de ser considerados obrigatoriamente coisa comum, nos termos do art.º 1421, n.º 1, al. b), do CC.
II – Não se trata de parte do edifício que, pela função que desempenha, careça de ficar afecta a todos os condóminos, como sucede com todas aquelas que se enumeram no citado n.º 1.
III – Deixam de ser comuns as coisas que estejam afectas ao uso exclusivo de um dos condóminos, para tal bastando uma afectação material, uma destinação objectiva, mas já existente à data da constituição do condomínio, não se exigindo que ela conste do respectivo título constitutivo.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2000:
I – O sótão (ou “vão do telhado”) não é parte necessariamente comum do edifício, não integrando os conceitos de estrutura do prédio ou de telhado, para efeitos do artigo 1421º do Código Civil.
II – O sótão (ou “vão do telhado”) trata-se antes de parte do edifício que se presume comum, se do título constitutivo da propriedade horizontal não constar a sua afectação a alguma fracção autónoma, podendo, pois, tal presunção ser ilidida.
III – Se um sótão, desde o início da construção do prédio, esteve afecto em exclusivo a uma fracção autónoma, só através dela tendo comunicação, deve considerar-se que não é parte comum e que pertence a essa fracção autónoma, ficando, por conseguinte, ilidida aquela presunção.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07-05-2002:
I - Nos termos do artigo 1421 nº2 alínea e) do Código Civil os sótãos dos prédios constituídos em propriedade horizontal presumem-se integrados nas partes comuns do respectivo condomínio .
II - Essa presunção pode ser ilidida através de prova de que o mesmo sótão se encontra afectado "ab initio" ao uso exclusivo de qualquer condómino.
 
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/11/2014:
I - O sótão ou vão do telhado, como o espaço compreendido entre o tecto do último andar do edifício e as telhas, não sendo telhado ou terraço de cobertura, não constitui a estrutura do edifício e, portanto, não deve ser incluído nas partes obrigatoriamente comuns.
II - Não constando do título constitutivo da propriedade horizontal que o sótão se encontra afectado ao uso exclusivo de qualquer fracção, daí resulta que aquele se presume parte comum, presunção que pode ser ilidida.

Quanto ao uso

Do art. 1305º do CC dimana que "O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas". Este preceito coloca ao lado dos poderes de que goza o proprietário, as restrições ou limites impostas por lei. Tais restrições podem ser de direito público, como a expropriação por utilidade pública, ou de direito privado, como as que derivam de relações de vizinhança, que têm em vista regular conflitos de interesses que surgem entre vizinhos.

De facto e atenta a estrita letra do art. 1305º CC, o legislador entendeu que o conteúdo do direito de propriedade se encontra perfeitamente preenchido quando "o proprietários goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso", o que lhe possibilita destinar os usos dos diversos cómodos em função dos seus interesses e necessidades. Assim, nada obsta a que, um condómino proprietário de um T2 converta uma sala num terceiro quarto ou vice-versa; ou até que derrube a parede entre dois quartos para os converter num quarto.

Numa outra situação mais extrema, se um proprietário não possuir uma viatura automóvel, ou já não a puder utilizar por um qualquer constrangimento, vê-se aquele necessariamente obrigado a manter a garagem fechada, sem qualquer uso ou aproveitamento? Obviamente que não. Constituiria mesmo um manifesto abuso de direito tal exigência, pelo que, nessa situação, poderia utilizar aquela como armazém ou atelier. Mas também o poderia fazer aquele que, possuindo uma garagem com 40m2, espaço mais do que suficiente para parquear uma viatura.

O mesmo é válido para os sótãos. Sendo muito diferentes as suas configurações, no que às suas destinações se refere temos que dar o devido relevo à sua materialidade concreta desvendada a partir da factualidade aparente, isto é, para poderem ser utilizados (mesmo como mansardas) para habitação, devem ter as condições próprias já atrás ressalvadas e consideradas desde o início da construção, constando do próprio projecto. Se assim não for, os sótãos não passam de simples caixas de ar do telhado.

Portanto, para se aferir da legalidade, importa saber-se o que resulta do TCPH quanto à afectação, se própria, exclusiva ou comum e subsequentemente, caso se enquadre nas duas primeiras opções, se aquele espaço - por possuir evidentemente divisões - se presta a uma qualquer outra utilidade, além de arrumos de coisas, nomeadamente, de habitação de pessoas.

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