Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

12/15/2023

Forma da procuração - III



c) Representação voluntária: a procuração

Na representação voluntária(17), os poderes do representante procedem da vontade do representado, exteriorizada numa declaração negocial designada por procuração (cfr. artigo 261.° do CC).

Quanto aos poderes outorgados, a procuração pode ser geral, se abrange os actos de natureza patrimonial(18), ditos de administração ordinária(19), ou especial, quando ao representante é permitida a prática dos actos especificamente previstos bem como dos actos necessários à sua execução.(20)

Para a procuração ser eficaz não é necessária a aceitação, pelo que o beneficiário tem de renunciar a ela no caso de não querer ser procurador (cfr. artigo 265.°, n.° 1, do CC), isto é, estamos perante um negócio jurídico unilateral(21).

Trata-se de um negócio jurídico unilateral receptício(22)(23), cujo destinatário, de acordo com a melhor doutrina(24), é o terceiro com quem o representante contrata em nome do representado, e não o representante(25) ou o público(26). Deste modo, no plano da interpretação negocial (cfr. artigo 236.° do CC(27)), impera o entendimento de Ferrer Correia: “ nós ponderamos que os principais interessados (no caso da procuração) são aqui o constituinte e o terceiro; consideramos, depois, que o constituinte, querendo contratar com o terceiro por intermédio do procurador, não pode deixar de querer comunicar-lhe a autorização representativa de que o último está munido: e logo concluímos ser o terceiro quem mormente carece das atenções que, na teoria geral da interpretação, se dispensam ao destinatário da declaração de vontade, á contraparte – e quem principalmente as merece.”(28)

A classificação da procuração como negócio jurídico unilateral tornou-se clara a partir da afirmação da autonomia entre o poder de representação e a relação fundamental de ligação entre representado e representante.

Na verdade, durante muito tempo, doutrina e jurisprudência não distinguiam procuração de mandato, considerando o poder de representação mero efeito deste contrato(29). Actualmente, porém, é pacífica a cisão conceptual entre o acto jurídico de que emerge o poder representativo e os negócios que estão na base da relação entre representante e representado(30).

Dito de outro modo, a procuração é um negócio abstracto(31), cujo efeito é a outorga de poder representativo ao procurador, não cumprindo qualquer função económica ou social típica, isto é, a procuração pode ter causas várias(32).

No entanto, a procuração apresenta alguns traços de causalidade, podendo notar-se várias manifestações de influência da relação de base sobre o poder de representação. Podemos mesmo falar de uma “relativização do carácter abstracto da procuração”.(33)

Exemplificativamente, a possibilidade de o procurador poder fazer-se substituir por outrem se tal resultar da relação jurídica que determina a procuração (cfr. artigo 264.°, n.° 1 do CC) e a cessação do negócio – base implicar a cessação desta, salvo se outra for a vontade do representado (cfr. artigo 265.°, n.° 1, do CC)(34), constituem limitações importantes à autonomia do poder de representação(35).

Notas:

(17) A representação voluntária distingue-se da representação legal, resultando aqui os poderes representativos da lei, e da representação orgânica ou constitucional. Segundo Manuel de Andrade, a representação das pessoas colectivas obriga à autonomização desta categoria, “que aliás não será verdadeira representação mas organicidade”. Vide Manuel de Andrade, Ob. cit., págs. 288 e 289.

(18) Excluem-se, assim, os actos meramente pessoais (v.g., testamento — cfr. artigo 2182.° do CC). Como afirma Carvalho Fernandes, “são meramente pessoais, hoc sensu, aqueles actos em relação aos quais a lei exclua exercício representativo, ou que, pela sua natureza devem seguir regime análogo. Está aqui em causa, em geral, uma particular ligação com o seu autor, pela índole dos interesses envolvidos, que exigem uma avaliação pessoal, não se compadecendo com a interferência de terceiros. O exemplo de escola é o direito de testar, sendo o testamento um acto pessoal hoc sensu.” Vide Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II – Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2001, pág. 212.
Quanto ao casamento, um dos nubentes pode ser substituído por procurador, devendo a procuração conter poderes especiais para o acto, a designação do outro nubente e a indicação da modalidade do casamento (cfr. artigos 1616, alínea a), e 1620.° do CC).

(19) Nas palavras de Manuel de Andrade, actos de administração ordinária ou “Actos de mera administração serão pois os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas – que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado. Ao mero administrador são proibidos os grandes voos, as manobras audaciosas, que podem trazer lucros excepcionais, mas também podem levar a perdas catastróficas.” Vide Manuel de Andrade, Ob. cit., pág. 62.

(20) No CC, esta distinção é feita em relação ao mandato, dispondo o artigo 1159.°:
“1. O mandato geral só compreende os actos de administração ordinária.
2. O mandato especial abrange, além dos actos nele referidos, todos os demais necessários à sua execução.”
Seguindo Menezes Cordeiro, consideramos “esta distinção aplicável à procuração, na base dum argumento histórico, dum argumento sistemático e dum argumento lógico a fortiori. Historicamente, (…) o facto de toda esta matéria se ter vindo a desenvolver a partir do mandato. O argumento sistemático aponta a unidade natural que deve acompanhar o mandato com representação: o mandatário irá receber os poderes necessários para executar cada ponto do mandato. Finalmente, o argumento lógico explica que não faz sentido ter uma lei mais exigente para um mero serviço – o mandato – do que para os poderes de representação, que podem bulir com razões profundas de interesse público e privado”. Vide Menezes Cordeiro, “ A Representação no Código Civil…”, cit., pág. 405.

(21) Mota Pinto afirma expressamente: “Nos negócios unilaterais há uma só declaração de vontade ou várias declarações mas paralelas, formando um só grupo. Se olharmos os autores das declarações, constataremos haver um só lado, uma só parte. É o caso do testamento, da renúncia à prescrição, da procuração.” (negrito nosso) Vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., pág. 385.

(22) Nas palavras de Manuel de Andrade, “Quanto às variantes que podem assumir os negócios unilaterais, (…) só queremos destacar a mais importante de todas e a mais corrente, que os agrupa em receptícios e não receptícios. Nos receptícios (ou com declaração de vontade receptícia), a declaração tem de ser dirigida e levada ao conhecimento de pessoa determinada, não valendo sem isso. É o caso da denúncia de um contrato (de arrendamento, de prestação de serviços), da revogação ou renúncia a uma procuração, etc. Nos não receptícios (com declaração de vontade não receptícia), a declaração vale logo que é emitida, sem necessidade de comunicação a pessoa determinada (embora possa ser preciso o concurso de algum outro facto ou circunstância). Estes negócios são, de longe, mais raros do que os outros. O exemplo mais típico é o testamento; mas costumam-se citar outros, como o negócio de fundação.” (negrito nosso) Vide Manuel de Andrade, Ob. cit., pág. 42.
Tradicionalmente, na Faculdade de Direito de Lisboa, fala-se em declarações negociais recipiendas e não recipiendas, por se considerar esta terminologia “ mais consentânea com o étimo das expressões”. Vide Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 548.

(23) Em sentido contrário, Carvalho Fernandes afirma: “Enquanto negócio, por procuração identifica-se um negócio jurídico unilateral não recipiendo. Esta última qualidade não exclui, porém, no plano prático, a necessidade de materialmente o documento em que se consubstancia esse acto ter de chegar ao poder do procurador. Sem ele, este não está em condições de agir sempre que a procuração seja um negócio formal e, portanto, se torne necessário exibir o correspondente documento para fazer a sua prova.” Vide Luís A. Carvalho Fernandes, Ob. cit., pág. 213.

(24) Neste sentido, vide Ferrer Correia, “ A procuração na teoria da representação voluntária”, in Estudos Jurídicos, II – Direito civil e comercial. Direito criminal, 2.ª edição, (reimpressão), Coimbra, 1995, págs. 30-32 e Paulo Mota Pinto, Ob. cit., págs. 607 e 608.

(25) Segundo Januário Gomes, o destinatário natural da procuração é o representante, o qual não pode prevalecer-se dos poderes conferidos enquanto não receber a procuração ou tiver conhecimento desses poderes. No entanto este autor reconhece: “embora a relação de representação respeite apenas ao representado e ao representante, é perante terceiros que a mesma está mediatamente destinada a operar”. Vide Manuel Januário da Costa Gomes, Em tema de revogação do mandato civil, Coimbra, 1989, pág. 237.

(26) Para uma resenha da principal doutrina germânica e da jurisprudência helvética defensoras desta posição, vide Maria Helena Brito, Ob. cit., págs. 120 e 121.

(27) O artigo 236.° do CC estabelece:
“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Neste preceito, encontra-se consagrada a doutrina da impressão do destinatário, de cariz objectivista, embora com a limitação subjectivista (“salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”), decorrente dos ensinamentos de Larenz e, entre nós, de Ferrer Correia. Vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., págs. 443-445.

(28) Vide Ferrer Correia, Ob. cit., pág. 14.

(29) Sobre a evolução doutrinária em Portugal até à plena autonomização das figuras do mandato, da representação e da procuração, vide Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Ob. cit., págs. 35 a 42.

(30) Normalmente, o mandato é o negócio jurídico base, embora a relação subjacente à procuração possa emergir de outros negócios (v.g, contratos de trabalho e de agência).

(31) Seguindo a lição de Mota Pinto, “Os negócios em que estas (as causas) não relevam, por poderem preencher uma multiplicidade de funções e os efeitos do negócio serem separados da sua causa, designam-se como negócios abstractos – por exemplo, negócios cambiários, como o saque de um cheque ou o aceite de uma letra (…). Na generalidade dos negócios jurídicos, contudo, o direito não isola o seu conteúdo da respectiva causa – são negócios causais.” Vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., pág. 399.
Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, “ Os negócios abstractos ocorrem normalmente em situações nas quais a tutela da confiança no tráfego jurídico se impõe à autonomia privada. Esta situação verifica-se no caso da procuração. Se a procuração fosse um negócio causal, poucas seriam as pessoas que aceitariam celebrar negócios com um procurador, pois correriam o risco de o dominus vir mais tarde invocar a relação subjacente para impugnar parte ou a totalidade do negócio. A eficiência prática, a segurança e a utilidade da procuração, enquanto instrumento jurídico que permite a multiplicação e aceleração do tráfego jurídico através da legitimação de terceiros para agirem em representação de outrem, exige a abstracção.” Vide Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Ob. cit., pág. 62.

(32) Ferrer Correia afirma a “ natureza abstracta da procuração, para significar que ela não recebe em si o título que todavia materialmente o explica e justifica – o negócio jurídico fundamental. A procuração constrói-se como se, para além dela, não estivesse o mandato, a locatio operarum, a sociedade. Está. Mas procedemos como se não estivesse, fazemos abstracção desse outro negócio jurídico”. Vide Ferrer Correia, Ob. cit., págs. 27 e 28.

(33) Vide Paulo Mota Pinto, Ob. cit., pág. 600.

(34) A procuração pode também cessar por renúncia do procurador (cfr. artigo 265.°, n.° 1, do CC) e por revogação, livre, do representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação. Será, porém, irrevogável a procuração conferida no interesse comum do dominus e do procurador ou de terceiro, salvo acordo do interessado ou verificação de justa causa (cfr. artigo 265.°, n.os 2 e 3, do CC).

(35) Para mais exemplos de limites à abstracção da procuração, vide Maria Helena Brito, Ob. cit., págs. 123 e 124, e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Ob. cit., págs. 62 e 63.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Se pretender colocar questões, use o formulário de contacto.