Viver em condomínio

Viver em condomínio não é um processo pacífico face à dificuldade de harmonizar e conciliar a dupla condição de proprietários e comproprietários, pelo que, importa evitar situações susceptíveis de potenciar o surgimento de conflitos de vizinhança. O desiderato deste blogue é abordar as questões práticas inerentes ao regime jurídico da propriedade horizontal, atento o interesse colectivo dos condóminos em geral e administradores em particular.

12/13/2023

Forma da procuração - I



PROCURAÇÃO

(art. 116º do Código do Notariado e art. 38º do DL nº 76-A/2006, de 29 de Março)(*)

Pelo Mestre João Nuno Calvão da Silva(**)

I - Representação: breves notas

a) Pressupostos

Regulada nos art. 258° a 269° do CC(1)(2), a representação caracteriza-se pela actuação de alguém (representante) em nome de outrem (representado)(3), não se limitando aquele a exprimir a vontade deste.

Decisiva é, por um lado, a existência da contemplatio domini, assim se distinguindo a representação do contrato de mandato, através do qual alguém (mandatário) fica vinculado a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem (mandante)(4).

Não é também pressuposto da figura em análise a actuação do representante no interesse do representado(5), porquanto o nosso ordenamento jurídico parece admitir a concessão de poderes representativos no interesse exclusivo do representante e/ou de terceiro(6).

Por outro lado, o representante não se limita a comunicar a mensagem que alguém lhe transmite, possuindo, em maior ou menor grau, uma margem de decisão própria quanto aos actos a praticar. Por isso, o representante distingue-se do núncio(7).

b) Efeitos e representação sem poderes(8)

No ordenamento jurídico-civilístico português, o instituto da representação é definido em função dos seus efeitos. Dispõe o art. 258° do CC: “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”

Da disposição transcrita resulta a característica fundamental da representação: a produção de efeitos na esfera jurídica de uma pessoa distinta da que manifesta a vontade negocial(9).

Assim, é essencial a existência de legitimação representativa, só podendo o representante actuar em nome do representado, vinculando-o às consequências jurídicas do acto praticado, se dispuser de poderes para tal. Não existindo o necessário poder de representação, apenas a ratificação do representado torna o negócio eficaz na sua esfera jurídica(10). Neste sentido, estabelece o art. 268°, n° 1, do CC: “O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.”

Notas:

(*) Para a elaboração deste trabalho foi fundamental o contributo do Mestre João Maia Rodrigues, notário e jurista de grande qualidade. A ele temos de agradecer o alerta para a importância prática do problema e sugestões que em muito valorizaram o nosso estudo.

(**) Assitente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

(1) Segundo Heinrich Ewald Hörster, a sistematização adoptada pelo nosso Código Civil “pode ser considerada como não sendo inteiramente feliz”, defendendo aquele Professor que “o lugar mais indicado para a própria subsecção (…) seria a seguir à perfeição da declaração negocial.” Vide Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª reimpressão da edição de 1992, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 478.

(2) Adiante identificado por CC.

(3) Dispõe o art. 258° do CC: “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.” (negrito nosso)

(4) Nos termos do art. 1157° do CC, “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.” (negrito nosso) Nem sempre foi clara a distinção entre mandato e representação: o CC de 1867, na linha do Code Civil, identificava-os e a doutrina nacional da época não discernia claramente a diferença entre estas figuras (v.g, Guilherme Moreira, Paulo Merêa, Cunha Gonçalves, entre outros). A distinção parece ter surgido nítida apenas com Manuel de Andrade, Galvão Telles, Magalhães Collaço e, sobretudo, com Ferrer Correia. Vide Maria Helena Brito, A Representação nos contratos internacionais – Um contributo para o estudo do princípio da coerência do direito internacional privado, Almedina, Coimbra, 1999, págs. 87 e 88, e Menezes Cordeiro, “A Representação no Código Civil: sistema e perspectivas de reforma”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 393 a 396.
Actualmente, na doutrina nacional, parece consensual a não coincidência entre os conceitos analisados, podendo haver mandato sem representação (v.g, o contrato de mandato sem representação, regulado nos termos dos artigos 1180.° e seguintes do CC, e o contrato de comissão, regulamentado pelos art. 266° e segs do Código Comercial) e representação sem mandato (v.g, a representação legal e a procuração que coexista com um contrato de trabalho ou de agência, por exemplo). Vide, por todos, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição (por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), Coimbra Editora, 2005, págs. 541 e 542. Sobre o mandato sem representação, vide Fernando Pessoa Jorge, O Mandato Sem Representação, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2001.
Na jurisprudência, a questão também é pacífica, considerando-se que a procuração e o mandato podem coexistir ou andar dissociados. Exemplificativamente, cfr. Acórdãos do STJ de 10-03-98 e de 22-02-96, in www.dgsi.pt.

(5) Na representação legal, porém, o interesse do incapaz – representado é elemento essencial, na medida em que os poderes do representante constituem poderes-deveres ou “ofícios”, a terem de ser exercidos e do modo previsto pelo ordenamento jurídico. Para a noção de “direito funcional”, vide Rabindranath Capelo de Sousa, Teoria Geral do Direito Civil, volume I, Coimbra, 2003, pág. 185.

(6) No CC prevê-se expressamente a procuração “também no interesse do procurador ou de terceiro”, a qual “não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa” (art. 265°, n° 3, do CC), ao contrário da procuração no interesse exclusivo do representado, livremente revogável por este (art. 265°, n° 2, do CC).
Em termos paralelos, em relação ao contrato de mandato, estabelece o art. 1170° do CC:
“1—O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
2—Se, porém, o mandato tiver sido conferido, também, no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.” (itálico nosso) Sobre a admissibilidade das procurações no interesse exclusivo do procurador, de terceiro, ou de ambos, com uma interessante resenha das principais posições doutrinárias e jurisprudenciais, bem como uma análise do Direito Comparado sobre a questão, vide Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, em especial págs. 6 a 20. Mais recentemente, Pedro de Albuquerque pronunciou-se inequivocamente pela inadmissibilidade das procurações in rem propriam: “Também não nos parece poderem subsistir dúvidas quanto à circunstância de, em nosso entender, não ser admissível a existência de procurações ou poderes de representação concedidos no exclusivo interesse do representante ou de terceiro.” Vide Pedro de Albuquerque, A Representação voluntária em Direito Civil (Ensaio de Reconstrução Dogmática), Almedina, Coimbra, 2004, pág. 983.

(7) Pelo facto de o representante emitir uma declaração negocial própria, o artigo 259.°, n.° 1, do CC determina ser “na pessoa do representante que deve verificar-se, para efeitos de nulidade ou anulabilidade da declaração, a falta ou vício da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância dos factos que podem influir nos efeitos do negócio”.
Por outro lado, se “o procurador não necessita de ter mais do que a capacidade de entender e querer exigida pela natureza do negócio que haja de efectuar” (art. 263° do CC), pois a exigência da capacidade de exercício deste seria excessiva atenta a falta de interesse próprio na conclusão dos negócios, “ao núncio, bastará a capacidade natural para transmitir a declaração de vontade”. Vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., pág. 543.
Para uma análise das diferenças entre núncio e representante, vide Raúl Guichard, “Sobre a distinção entre núncio e representante”, in Scientia Iuridica, XLIV, n.os 256-258, 1995, pág. 317 e seguintes.

(8) A hipótese prevista no art. 261° do CC parece configurar um caso de representação sem poderes, porquanto o auto-contrato é anulável se o representado não tiver especificadamente consentido na celebração do negócio. Por outro lado, ao proibir-se o negócio consigo mesmo, visa-se evitar o risco de conflito de interesses entre o representante e o representado, pelo que o contrato será válido quando, por sua natureza, excluir esse risco.

(9) Dada a essencialidade desta nota, parte da doutrina considera-a requisito de existência da representação. Vide Menezes Cordeiro, “A Representação no Código Civil…”, cit., pág. 397, e Raúl Guichard, “Notas sobre a falta e limites do poder de representação”, in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXXVII, Lisboa, 1995, pág. 5. No sentido de que o poder representativo constitui um mero pressuposto de eficácia da representação, posição, em nosso entendimento, mais rigorosa, vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, (7.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 1992, págs. 302-303 e Carlos Alberto da Mota Pinto, Ob. cit., pág. 548.

(10) Naturalmente, pensamos aqui na representação voluntária, fundada na vontade do representado, e não na representação legal, a qual promana da lei e visa suprir incapacidades de exercício de certos indivíduos (v.g., menores, interditos), os quais, não podendo agir pessoal e autonomamente, não podem nomear um representante voluntário nem, obviamente, legitimar a posteriori os actos praticados sem poderes pelos seus representantes legais, isto é, em violação de limites imperativos da lei à sua actuação (v.g., art. 1889° e 1893°,1937° a 1940° do CC). Não olvidamos, porém, a possibilidade de confirmação de negócios anuláveis concluídos por incapazes de agir pelos próprios, cessadas as causas das respectivas incapacidades. Para uma distinção entre os regimes da ratificação e da confirmação de negócio anuláveis, vide Rui de Alarcão, A confirmação dos negócios anuláveis, Coimbra, 1971, pág. 118 e seguintes.

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