Qual é a valoração das filmagens recolhidas por um sistema de video-vigilância colocado por um condómino? Pode-se invocar que as gravações de imagens foram obtidas de forma ilegal, porquanto não obtiveram o consentimento dos demais consortes e por isso violam do disposto no art. 126° do Código de Processo Penal (doravante, CPP)?
Nos termos do art. 125º, do CPP “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, daqui decorrendo que não foi estabelecido o princípio da tipicidade dos meios probatórios mas antes o da legalidade.
Quanto aos métodos proibidos de prova, estes foram consignados no art. 126º, do CPP, e estão intimamente associados às garantias constitucionais de defesa consagradas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, a consagração do nº 8 desse art. 32º da CRP de que “São nulas todas as provas obtidas mediante …abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” aparece legalmente transposta no nº 3, do citado art. 126º, que estatui, além do mais, que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (…) sem o consentimento do respectivo titular”.
Todavia, ressalvadas as situações de intromissão no núcleo duro na vida privada (mormente, o interior da fracção autónoma), actualmente é quase um entendimento uniforme da jurisprudência portuguesa de que não constituem provas ilegais e como tal podem ser valoradas pelo tribunal a gravação de imagens por particulares em locais públicos ou acessíveis ao público assim como os fotogramas oriundos dessas gravações, «desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada (onde se inclui a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas)» – Ac. do TRP de 23/10/2013 (proc. 585/11.6TABGC.P1, relatora Maria do Carmo Silva Dias).
No mesmo sentido, entre outros, Ac. do STJ de 28/9/2011 (proc. 22/09.6YGLSB-S2, relator Santos Cabral), Ac. do TRG, de 19/10/2015 (proc. 1348/13.0PBBRG, relator Luís Coimbra), Ac. TRP de 16/1/2013 (proc. 201/10.3GAMCD.P1, relator Ernesto Nascimento), Ac. TRL de 28/5/2009 (proc. 10210/08.9, relatora Fátima Mata-Mouros) e Acs. do TRC de 10/10/2012 (proc. 19/11.6TAPBL.C1, relatora Elisa Sales e proc. 148/12.9PBLMG, de 18/05/2016, relatora Maria Pilar Oliveira, que seguimos de perto), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Ora, o art. 126º do CPP, que tem por epígrafe “Métodos proibidos de prova” e que traduz o consagrado no art. 32º nº 8 da CRP, prevê assim nos nºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no nº 3 as provas relativamente proibidas.
Porém, este normativo não é suficiente para compreender ou comprometer a questão da validade das provas em processo penal, nomeadamente no caso das provas obtidas por registos e reproduções mecânicas. É isso que resulta do art.167º do CPP (cuja epígrafe é “Valor probatório das reproduções mecânicas) quando no seu nº 1 refere que as mesmas «só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal», ou seja, há uma influência do direito penal no regime de proibição das provas.
Sobre esta ligação ao direito penal substantivo, refere o supra mencionado Ac. do TRL de Lisboa de 28/5/2009: «na verdade, ao estabelecer-se, no art. 167º do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.»
Dispõe o art.199º do Código Penal, sob a epígrafe “Gravações e fotografias ilícitas”:
1. Quem, sem consentimento:a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; oub) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.2- Na mesma pena incorre quem, contra vontade:a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; oub) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197º e 198º.
Verifica-se, pois, que o direito à imagem está tutelado criminalmente neste normativo, mas na medida em que não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude.
É nessa medida que se vem entendendo que não é crime a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, abertos ao público, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente – cfr., entre outros, os Ac. do TRP de 23/11/2011 (proc. 1373/08.2PSPRT.P1, relator Mouraz Lopes) e de 29/02/2015 (proc. 349/13.2PEGDM.P1, relatora Maria Deolinda Dionísio), ambos também acessíveis in www.dgsi.pt.
À video-vigilância, como decorre do art. 4º nº 4 da Lei nº 67/98, de 26/10, aplica-se o regime da protecção de dados pessoais estabelecido na referida Lei.
No entanto, e a menos que a questão respeitasse ao tratamento de dados sensíveis (o que não é o caso porque Dados Sensíveis são os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos», conforme decorre do nº 2 do art. 7º deste diploma), a lei não exige o prévio licenciamento por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
A video-vigilância, independentemente de ter sido ou não comunicado à CNPD e ou ter ou não algo a anunciar que estava accionado, constitui prova válida, e nessa medida pode ser valorada pelo tribunal, por existir justa causa para a captação das imagens, concretamente documentar a prática de infracção criminal consistente num crime de furto ocorrido em área particular contígua à condominial, não sendo atingidos dados sensíveis da pessoa visionada nem o “núcleo duro” da sua vida privada.
Em conclusão, esta prova constitui prova válida, e como tal, pode e deve ser valorada pelo tribunal.